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Jacob Burckhardt´s social & political thought – SIGURDSON (HP)

SIGURDSON, Richard. Jacob Burckhardt´s social & political thought. Toronto: University of Toronto Press, 2004. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. A crítica conservadora de Jacob Burkcardt: uma leitura política da História da cultura. Histórias & Perspectivas, Uberlândia, v.1 n.40 – jan./jun. 2009.    

É bem sabido que o percurso da história da historiografia é diferente das ciências exatas, porquanto não se deixa medir pela eficiência de seus resultados. Por outro lado, há uma marca deixada pelo tempo em cada página clássica da tradição historiográfica. Podemos considerar que o lugar da grande obra de história se situa entre as novas descobertas e a manutenção de questões ainda não esgotadas. É como disse certa vez um grande escritor italiano: “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.2 Ao enfatizar a dimensão política e as concepções sociais inerentes à história cultural em seu momento de fundação, o notável estudo de Richard Sigurdson, Jacob Burckhardt´s social & political thought [“O pensamento social e político de Jacob Burckhardt”], interpreta a obra do grande historiador suíço a partir deste lugar ambíguo, entre seu tempo e para além dele, determinado e premido por questões de sua época (que em parte são as nossas questões) e ainda bastante provocador. O retrato que sai da obra é de um Burckhardt polêmico, arguto e atual, em que o fundador da hoje quase hegemônica história da cultura se funde com a do anti-semita. O livro de Sigurdson, portanto, contribui bastante para a história da historiografia, e pode ser aproveitado não somente pelos interessados na obra do grande historiador suíço e nas origens da história da cultura, mas, também, por todos que, porventura, tenham vontade de conhecer um pouco melhor as críticas da modernidade feitas no século XIX por autores de filiação conservadora – caso de Burckhardt – que, assim, pode ser visto como um sucessor de Edmund Burke e um perfeito contemporâneo de Dostoievski. Trata-se, pois, de um belo volume de história da historiografia, história intelectual e história política. Como diz seu autor, os temas clássicos de Burckhardt permanecem bastante atuais: “(…) a relação entre o indivíduo e as massas; a tensão entre os ideais de igualdade e de excelência humana; a qualidade e a natureza da cultura na sua era massificada; e o papel do intelectual no Estado moderno – tais temas têm sido calorosamente debatidos pelos teóricos da política”. (SIGURDSON, 2004, p.7) Professor na Universidade de Manitoba (Canadá), Richard Sigurdson dividiu seu livro em duas grandes partes, cada qual com três capítulos. Na primeira parte, “Burckhardt e o nascimento da história cultural”, Sigurdson demonstra que a prevalência dada por Burckhardt à cultura, em detrimento do Estado e da Religião (conforme ele deixaria claro em suas preleções de 1868 sobre o estudo da história), não significa que seus comentários políticos sejam frívolos ou irrelevantes. Reconstruindo a trajetória formativa de Burckhardt, Sigurdson demonstra que a busca pela cultura como objeto privilegiado da história explica-se por uma dupla renúncia, a saber: a desistência em obter uma formação teológica (iniciada entre 1837 e 1839 na Universidade da Basiléia) trocada pelos estudos de História em Berlim, onde aprendeu com o já eminente Leopold von Ranke o rigor do método. Mas as aulas de Ranke o levaram à segunda recusa: o estudo da história política, preterida em relação ao seu projeto de vida, a saber, dar os primeiros passos para construção da história cultural. A opção de Burckhardt é percebida com muita argúcia por Sigurdson: tratase mais do que fundar mais uma área de estudos, mas, sobretudo, de ver qual a função da história cultural. Para ele, ao contrário da tendência providencialista dos argumentos de Ranke, nos quais o Estado aparece como amálgama de ordem providencialmente estruturada, para Burckhardt a cultura, o Estado e a religião eram essencialmente heterogêneos e conflituosos (cf. SIGURDSON, p.77).

O grande mérito do estudo de Sigurdson reside, portanto, em mostrar que a motivação de um historiador do porte de Burckhardt ultrapassa a do mero especialista laboriosamente interessado em fazer pequenos avanços em um campo seguro e bem estabelecido. Na segunda parte (homônima ao título do livro), torna-se mais clara a intenção de Sigurdson, qual seja, a de demonstrar que a obra de Burckhardt é uma crítica cultural politicamente conservadora O argumento do autor se baseia no ceticismo de Burckhardt em relação à natureza humana, para ele essencialmente imperfeita no que diz respeito às ações e à capacidade de conhecimento. Sem tal ceticismo, não se compreendem as críticas à democracia igualitária, aos movimentos revolucionários da Europa e à massificação da cultura que, lamentava-se Burckhardt, destruiriam toda a tradição cultural sedimentada desde a Grécia antiga. A concepção de continuidade histórica é fundamental para o autor da Cultura do Renascimento na Itália: afinal, se é a continuidade que pauta a escrita da história, também ela há de ser norma política e social.

O desenho geral do livro de Sigurdson, porém, não deve esconder outros motivos que motivam o leitor a abri-lo. Identifico pelo menos três razões que justifiquem a dedicação proveitosa do tempo do estudioso interessado nos temas abordados na obra.

Uma primeira discussão de peso decorre justamente do conservadorismo de Burckhardt, aqui entendido como uma posição do historiador perante o fluxo do tempo, isto é, de sua situação hermenêutica. Assim como Friedrich Nietzsche, o historiador suíço pode ser considerado “extemporâneo”, ou seja, um autor fora do compasso de seu tempo. Não devemos confundir tal posição com a pretensão de isenção e neutralidade.

Burckhardt, por mais que tenha se decidido por uma vida pacata na sua Basiléia natal e se recusado a participar da azáfama de Berlim, em momento algum se encastelou em uma torre de marfim. Sua obra, desde “A Era de Constantino Magno” (1852), é uma incansável reflexão sobre as crises históricas. Como vivesse no meio de uma Europa conturbada, Burckhardt lamentava a massificação da cultura, a politização da vida por meio de grandes unificações nacionais (Alemanha e Itália, por exemplo), e procurava se situar no meio das turbulências e da crise de orientação instaurada.

Um dos grandes problemas de sua época convulsionada era justamente o excesso de “egoísmo”, termo bastante utilizado em suas Reflexões sobre a história universal (datadas inicialmente de 1868, porém publicadas postumamente em 1905). O egoísmo do homem moderno, para Burckhardt, se expressa tanto no excesso de paixão política, que tenta amoldar o mundo de acordo com seus dogmas revolucionários, bem como no excesso de utilitarismo, que tenta se servir do mundo de acordo com necessidades fugazes e cambiantes. A relação do historiador do mundo não há de ser utilitária nem dogmática, mas antes contemplativa. Entenda-se contemplação aqui como a visão desinteressada e estética que, por sê-la, é capaz de perceber as formas em sua mutação histórica. É um problema hermenêutico: ao interpretar o passado, devo assumir os pressupostos de meu presente, ou devo calçar os sapatos alheios e buscar a empatia com uma outra época? É interessantíssima a abordagem de Sigurdson, mais ampla que a de Thomas Albert Howard, por exemplo, que, em seu livro Religion and the rise of historicism (Religião e o advento do historicismo) entende o fascínio de Burckhardt como fruto do reflexo de crises pessoais e exclusivamente pela secularização do mundo contemporâneo.

O estudo de Sigurdson contribui, portanto, para as discussões hermenêuticas, sobretudo, quando lembramos que Hans-Georg Gadamer, em 1960, haverá de colocar a tradição como eixo de sua filosofia hermenêutica em “Verdade e Método”, sem, todavia, sequer citar Burckhardt entre outros historiadores por ele abordados, como Ranke e Johann Gustav Droysen. Mais ainda: ao destacar a postura contemplativa de Burckhardt, o historiador ganha a chance de compreender uma forma de interpretação histórica de cunho estético sem cair nas conseqüências apressadas e hipersubjetivas do pós-modernismo de nossos dias. Nas mãos de Sigurdson, a aparentemente mofada e anacrônica contemplação burckhardtiana torna-se, portanto, tema atual de discussão.

E o autor tem razão ao considerar Burckhardt um historiador “extemporâneo”, porquanto praticamente irredutível às classificações habituais. É já conhecido o debate sobre a procedência em rotular Burckhardt como “historicista”, e o fato de trazê-lo a tona constitui uma segunda boa razão para ler a obra de Sigurdson, que faz um belo exercício ao tomar como parâmetro a definição de historicismo proposta por Pietro Rossi, segundo a qual o historicismo significa (a) a ênfase na individualidade das épocas históricas; (b) o caráter dinâmico da verdade, ao invés de estático e metafísico, e (c) a crítica a valores absolutos. Com tais parâmetros em tela, inserir Burckhardt no âmbito historicista é uma interpretação problemática, porquanto, de fato, ele destaca as individualidades, mas em momento algum (a) perde de vista a importância da continuidade histórica, (b) analisa as crises, mas elabora uma interessante teoria de relações estruturais entre Cultura, Estado e Religião, na qual estabelece constantes antropológicas, e (c) se de fato ele desconfiava das visões por vezes anti-históricas do iluminismo, Burckhardt preferia apresentar sua crítica de maneira cética, e jamais afirmativa.

Tal exame proposto por Sigurdson tem dois méritos. O primeiro deles consiste em ver aspectos historicistas na obra de Burckhardt, sem, todavia, deixar de ignorar as incongruências da obra do historiador suíço com tais parâmetros, e, assim, a posição ponderada de Sigurdson se destaca no debate em torno ao assunto. Não vemos nele a tentativa algo forçada de Jörn Rüsen3 em inserir Burckhardt, mesmo que marginalmente, na tradição historicista, uma vez que, diz Rüsen, a sensibilidade de Burckhardt pelas crises expressaria um sintoma clássico do historicismo. Mas também Sigurdson não pende para o outro lado, formado por autores como Alfred von Martin e Edgar Salins, para quem o apreço de Burckhardt pela cultura clássica4 e seu esforço em elaborar constantes antropológicas retirariam do cerne de seu pensamento a tendência historicista em equivaler as épocas e enfatizar as mudanças.

Neste sentido, o exame de Richard Sigurdson serve para solidificar uma hipótese que considero forte: o conceito de historicismo não explica a elaboração da consciência histórica no século XIX, sendo a idéia de Bildung (formação) bem mais eficaz. É digno da maior admiração o destaque dado por Sigurdson à idéia de formação, ou seja, de proporção e equilíbrio na construção da personalidade individual e nos contornos de uma cultura, virtudes ameaçadas em uma época de especialização crescente do trabalho industrial e intelectual. O mais notável é que tal idéia de Bildung não fica como valor abstrato e esfumaçado. Ela se fez presente no conceito de “estilo de época”, ou seja, nos traços uniformes identificáveis em realizações culturais de um determinado período, algo que Heinrich Wöllflin, discípulo de Burckhardt, realizou muito bem em obras como Conceitos fundamentais da história da arte5, na qual identificou os traços do Barroco e do Renascimento. Ao refletir através do conceito de Bildung sobre as possibilidades formativas da historiografia, toda a obra de Burckhardt mantém-se ainda interessante e digna de estudo. Mas tal faceta só se revela porque Sigurdson filia Burckhardt ao humanismo clássico alemão, dando aos estudos ao estudo da história da historiografia uma base mais ampla, que permite a interseção com outras áreas do conhecimento, sobretudo, a filosofia e a literatura.

Uma terceira razão para estudar atentamente a obra de Sigurdson provém justamente da anterior: uma análise da história da historiografia deverá ser feita em um campo interdisciplinar.

Desde finais do XVIII, o embate entre o saber empírico dos historiadores e o saber especulativo dos filósofos se trava com sutilezas e matizes. Se Kant criticara Herder por ser perder no mundo das aparências, e se Droysen tentava fundar filosoficamente a historiografia sem cair nas malhas da filosofia da história de Hegel, agora a situação se altera: Nietzsche era um grande admirador de Burckhardt, e este correspondia com reticências ao interesse demonstrado pelo autor de Zaratustra.

Mas a comparação entre estes dois grandes intelectuais do século XIX nos permite ir mais além. Ambos eram críticos da modernidade, conforme diz Sigurdson, o que indica algo bastante saudável em tempos “pós-modernos”: criticar a modernidade não implica abandoná-la ou enfrentá-la. Na base do confronto entre Burckhardt e Nietzsche encontra-se algo de mais substancial, a saber, os rumos da história da cultura, que oscila entre a necessidade de estabelecimento de sentido pela memória, de um lado, e pela crítica feroz aos rumos da cultura moderna, do outro. Portanto, até onde deve ir a reflexão do historiador sobre seu ofício e sua época? Ao tentar justificar sua tarefa, ele não se perderia na teia da epistemologia, da metafísica e da filosofia da história? O que pode somente ser explicado historicamente, e, mais ainda, o que adquire sentido somente a partir do texto historiográfico? O embate é antigo – pois vem desde Herder e Kant, tendo passado por Droysen, Marx e Hegel – e ainda precisa ser enfrentado. A questão é: no caso de Burckhardt, as reflexões são sempre sustentadas de um ponto de vista conservador, que procura, por um viés pessimista, estabelecer a continuidade na história.

A obra de Sigurdson, portanto, ao contribuir para o debate sobre a hermenêutica (o historiador como intérprete), sobre os limites do historicismo, e sobre a relação da teoria da história com a filosofia, torna-se uma referência importantíssima para os interessados em discussões de alto nível para os assuntos em tela.

Notas

2 CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.11.

3 Cf. RÜSEN, Jörn. Der ästhetische Glanz der historischen Erinnerung – Jacob Burckhardt. In: ______. Konfigurationen des Historismus: Studien zur deutschen Wissenschaftskultur. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, p.282.

4 Cf. MARTIN, Alfred Von. Nietzsche und Burckhardt: Zwei Geistige Welten im Dialog. Basel: Ernst Reinhardt Verlag, 1945, 3a.ed., p.43; SALIN, Edgar. Vom deutschen Verhängnis: Gespräch an der Zeitwende: Burckhardt – Nietzsche. Hamburg: Rowohlt, 1959, p.50.

5 V. WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio.

Consultar a publicação original

Itamar Freitas

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