IV Seminário Internacional de História do Tempo Presente/ Tempo e Argumento | 2021

IV SEMINARIO INTERNACIONAL HTP Tempo Presente

Apresentação do dossiê com textos do IV Seminário Internacional de História do Tempo Presente, iniciativa do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), ocorrido de forma remota entre os dias 17 e 19 de março de 2021.

A produção do conhecimento histórico em tempos de pandemia

No projeto das Passagens, o filósofo Walter Benjamin (2018, p. 759) abre o convoluto N, intitulado “Teoria do conhecimento, teoria do progresso”, com a afirmação de que “nos domínios de que tratamos aqui, o conhecimento existe apenas em lampejos. O texto é o trovão que segue ressoando por muito tempo”. A afirmação de que o conhecimento existe em imagens difíceis de fixação no tempo parece muito atual no cenário da pandemia de doença por coronavírus 2019 (COVID-19) que assolou o planeta no ano de 2020. Nesse período, o conhecimento, especialmente aquele construído pelas ciências ditas humanas, foi duramente atacado e vilipendiado e sua transmissão, outra questão chave para a reflexão benjaminiana, tem sido cada vez mais diluída em nossa sociedade. Se pensarmos na experiência que tínhamos na organização e convivência com eventos acadêmicos presenciais, nos quais os debates eram realizados por meio da ação direta com a comunidade acadêmica, os afetos projetos e parcerias eram consolidados e o aprendizado ia além do conteúdo formal apresentado, verificamos um impacto considerável tanto na produção quanto na disseminação da pesquisa científica.

É verdade que por meio das plataformas digitais também conseguimos melhor divulgar o conhecimento científico, mas o que acontece quando, ao invés de parceira, a virtualização das atividades se impõe no trabalho acadêmico, assumindo contornos de um imperativo sem volta? Se aprendemos a manejar plataformas virtuais, se tivemos que nos alfabetizar nos aplicativos e redes sociais para melhor nos comunicar pessoal e profissionalmente, conhecemos com essa virtualização da vida cotidiana uma completa indistinção das fronteiras do espaço de trabalho e o espaço da vida privada. O impacto de tudo isso na saúde física e mental vem ganhando contornos no abandono das escolas e das disciplinas na graduação e na pós, nos atrasos do desenvolvimento das pesquisas na pós-graduação. Não é o caso de opor as atividades remotas com as presenciais, afinal, graças aos avanços tecnológicos é que conseguimos garantir um verniz de normalidade ao trabalho e nos reinventamos como pesquisadores e professores.

Foi na condição de encontro remoto que ocorreu o IV Seminário Internacional de História do Tempo Presente, evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH/UDESC) desde 2012. A mudança não se limitou à estrutura de apresentação do seminário, as próprias reflexões e atividades se mostraram diferentes, entre elas o conjunto de vídeos com relatos dos discentes do PPGH/UDESC comentando o efeito da pandemia na pesquisa, na sala de aula e na vida pessoal1. Ainda impactados com a catástrofe sanitária, incluiu-se no evento nossa homenagem ao colega Luís Felipe Falcão, falecido no mês de abril de 2020 2.

A virtualização da vida acadêmica, com suas palestras síncronas, mesmo que gravadas e disponibilizadas on-line de forma aberta e irrestrita, pode contribuir para aumentar quantitativamente o acesso às atividades realizadas, mas, por outro lado, deixou aberta a porta para a invasão de hackers (cada vez mais frequentes em eventos relacionados à história recente), as interrupções do pensamento em função dos problemas de conexão, a individualidade na forma de acompanhar os eventos, a diluição e solidão do que é visto, lido e apreendido. As consequências desse tipo de relação social com o conhecimento acadêmico, produzido e compartilhado entre os pares, estão por ser estimadas pelas gerações futuras. Mas vale registrar que a participação em um evento científico mediante o burburinho do auditório, as conversas paralelas comuns em encontros nos cafés e restaurantes, o convívio complexo e contraditório da presença corporal (com seus afetos e tipos de interações peculiares) é diferente daquela vivenciada por quem acompanha um evento on-line na qualidade de expectador que assiste em casa, dividindo sua atenção com um entorno de lides familiares, televisão ligada e outras fontes de distração. Um recurso possível para remediar os males causados à produção e transmissão do conhecimento na era da virtualização do trabalho é confeccioná-lo em texto escrito.

A organização e apresentação das reflexões efetuadas no IV Seminário Internacional de História do Tempo Presente, materializados na estrutura de um artigo científico ganha, no contexto atual, papel político de suma importância. O primeiro aspecto a destacar é que as ideias surgidas no debate são estruturadas e organizadas em um texto acadêmico com notas de rodapé, citações e referências mais bem eladoradas do que na exposição oral. Em segundo lugar, reafirma-se o papel dos periódicos de ciências humanas como espaços fundamentais de divulgação, debate e amadurecimento das reflexões científicas. E, nesse cenário, a revista Tempo e Argumento tem se firmado como um dos periódicos de referência nacional e internacional no campo da História do Tempo Presente. Em terceiro lugar, levando em consideração a ausência de investimentos na produção de conhecimento que não tenha um caráter técnico-pragmático voltado ao mercado, publicar um dossiê com reflexões de historiadores(as) atentos aos passados que habitam o presente, que enfatizam o compromisso em pensarmos a responsabilidade ética e política diante da memória dos mortos e das demandas dos vivos, mostra-se vital para um desenvolvimento social e político à altura dos desafios da atualidade. Em quarto lugar, disponibilizar essas reflexões em formato de artigo científico reduz o impacto daquela dispersão decorrente da condição de expectador virtual. Diante do texto, o observador passa a ser leitor; diante do texto é possível acompanhar a estrutura da argumentação, anotar, recortar, citar e fazer usos outros dessa mesma reflexão.

Coerente com as observações apresentadas acima, merece destaque que ao publicar em formato de artigo científico parte das reflexões apresentadas no IV Seminário Internacional de História do Tempo Presente, ocorrido entre os dias 17 e 19 de março de 2021, não temos aqui uma reprodução do que foi exposto oralmente. As falas, organizadas em forma de conferências e mesas redondas, encontram-se disponíveis no canal do PPGH/UDESC no YouTube. Elas obedecem a outras regras de apresentação e de organização que têm, sim, papel social e político relevante, mas que não se confunde com o texto escrito. Para ganhar espaço em uma revista acadêmica as reflexões iniciadas no seminário tiveram que sofrer algumas alterações, especialmente quando estruturadas em texto, mas também porque os professores incluíram nos artigos provocações efetuadas durante o debate síncrono, inclusive aquelas que não foram possíveis de responder no momento da discussão. Soma-se a isso as discussões provocadas pelos pareceristas ad hoc, que sugeriram alterações e inserções após atenta leitura, apresentaram críticas construtivas, questionaram argumentos que careciam de maiores fundamentações teóricas e convidaram os autores a repensarem determinadas ideias e suas consequências para o desenvolvimento da historiografia.

As reflexões apresentadas nos seminários internacionais de História do Tempo Presente, desde sua primeira edição, sempre ganharam o formato de dossiê para publicação na revista Tempo e Argumento. Em 2012 foram publicados os textos de François Dosse, Michèle Lagny, Leonor Arfuch, Pablo Pozzi e Hernán Ramírez. Os debates do 2º seminário, ocorrido em outubro de 2014, ensejaram o dossiê publicado no volume 7, de 2015, majoritariamente com textos de pesquisadores membros do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) provenientes de diversos países da América Latina, entre eles Gerardo Necoechea, Patricia Pensado Leglise, Igor Goicovic Donoso e Mauricio Archila. O 3º dossiê nasceu do seminário de 2017. Trata-se do volume 10, número 23, de 2018 contendo textos de Christian Delacroix, Marieta Moraes Ferreira, Rodrigo Patto Sá Motta, Marina Franco, Verónica Valdivia Ortiz de Zárate, Mariana Joffily, Ana Maria Maud, Ricardo Santhiago, Viviane Borges, Javier Campo, Marcelo Róbson Téo e João Quartim de Moraes.

A publicação que ora se apresenta se insere na constelação mencionada acima e reforça o compromisso do PPGH/UDESC e da revista Tempo e Argumento de manter aceso o debate com as discussões mais recentes sobre as pesquisas no campo da História do Tempo Presente. Abrimos esta edição com os artigos das duas conferencistas. Primeiro, com o estado da arte da História do Tempo Presente no México, mediante a abordagem transdisciplinar e transnacional de Eugenia Allier Montaño (Instituto de Investigaciones Sociales de la Universidad Nacional Autónoma de México [UNAM]), em parceria com César Iván Vilchis Ortega e Laura Andrea Ferro Higuera, sob o título “La Historia del Tiempo Presente en México: desafíos y construcción de un campo”. Em seguida temos a reflexão proposta pela historiadora francesa Christelle Taraud (NYU Paris & Centre d’Histoire du XIXe Siècle ‒ Paris 1 et 4), “Théorie(s) féministe(s) et histoire(s) du temps présent: intersectionnalité, subalternité et décolonialité”. A autora realiza uma genealogia das experiências de intelectuais feministas para analisar as categorias de interseccionalidade e decolonialidade como ferramentas importantes para renovar as discussões e abordagens da História do Tempo Presente. Na sequência trazemos o texto “Medo, intolerância, resignação: algumas leituras sobre a imigração contemporânea na Itália”, do Prof. Luiz Fernando Beneduzi (Università Ca Foscari Veneza).

O segundo conjunto de textos aborda as questões problematizadas na mesa Políticas e Poéticas de Memória, coordenada pela Profa. Janice Gonçalves (PPGH/UDESC), que também é a autora do artigo com o título “Políticas e poéticas de memória: olhares e travessias”. Na sequência são apresentados os artigos “Las ‘Marchas del Silencio’ en Uruguay: poética y reivindicación memorial a través de las imágenes”, da Profa. Ana Maria Sosa Gonzalez (Uruguai), e “Fantasmagoría: imagen de la contradicción en un tiempo suspendido”, de Paola Helena Acosta Sierra (Universidad Pedagogica Nacional ‒ Colômbia).

Política e Religião: Interface para o Estudo da História é o título da mesa que deu origem aos artigos da Profa. Caroline Jaques Cubas (PPGH/UDESC), “Religião, tempo e memória: interfaces para o estudo da História do Tempo Presente”, e de Claudia Touris (Universidad Buenos Aires), “Los curas villeros en la Argentina actual: entre la herencia católica tercermundista y el Papa Francisco”.

Encerramos o dossiê com os textos construídos a partir do debate provocado na mesa redonda História do Tempo Presente e Ensino de História, inicialmente com o artigo “Como si la enseñanza de la Historia también fuera historia: consideraciones a la luz de las he-rramientas que utilizamos para entender el pasado”, da Profa. Ana Zavala (Centro Latino-Americano de Economia Humana, Uruguai), seguido de “Ensino de História: temporalidade, pós-verdade e verdade poética”, de Marcelo de Mello Rangel (Universidade Federal de Ouro Preto [UFOP]). Finalizamos com “Tempo-do-agora (Jetztzeit), História do Tempo Presente e Guerra do Contestado”, de Rogério Rosa Rodrigues (PPGH/UDESC).

É preciso registrar que temos aqui apenas um recorte das discussões ocorridas no IV Seminário Internacional de História do Tempo Presente. A quem se interessar, vale a consulta aos anais do evento. Nele encontrará quase uma centena de artigos contendo reflexões de pesquisadores de todo o Brasil. Não posso deixar de registrar aqui a presença, ainda que nas entrelinhas desse dossiê, da comissão organizadora que atuou de forma fundamental para que o seminário pudesse ocorrer: Mariana Joffily, Luciana Rossato, Janice Gonçalves, Caroline Cubas, Glaucia Assis, Fernanda Oliveira, Kelly Noll, Carlos Alberto Oliveira (Kadu), Carolina Witt e Igor Moreira. Embora os textos de alguns desses colegas não apareçam neste dossiê, seu apoio, suas reflexões e seus posicionamentos intelectuais atravessam boa parte daquilo que aqui é apresentado. Foi com essa comissão que os temas foram pensados, os pesquisadores convidados, a estrutura de apresentação remota e síncrona foi organizada. Essas reflexões também serão registradas em livro, previsto para 2022, com a organização das colegas Caroline Cubas e Fernanda Oliveira e o bolsista PNPD (Programa Nacional de Pós Doutorado) Leonardo Conedera. Nele serão avaliadas as temáticas desenvolvidas nos simpósios com os eixos de pesquisa em História do Tempo Presente. Registro também o agradecimento a CAPES, pois foi graças ao apoio financeiro do Edital PAEP (Programa de Apoio a Eventos no País) Auxílio n. 3118/2020 que conseguimos implementar muitos dos serviços prestados no evento.

Finalizamos retomando a citação de Walter Benjamin que abriu essa apresentação, a de que o conhecimento existe como lampejos, logo, difícil de ser apreendido e fixado. Estruturá-lo em formato de texto permite prolongar o debate, não mais em forma de clarão, mas como um som que ecoa no tempo. Que o dossiê que o leitor recebe, uma vez publicado e disponibilizado para consulta de forma aberta, gratuita e irrestrita, permita que as ideias lançadas no IV Seminário Internacional de História do Tempo Presente, reverberem para além das redes sociais. Que os textos ressoem no tempo e no espaço para ganhar abrigo em reflexões que permitam avançar as discussões sobre o estatuto epistemológico, político e ético da História do Tempo Presente que queremos, e que devemos fazer, em meio aos ataques ao conhecimento. Que amplifique as discussões sobre o papel social do(a) historiador(a) diante da catástrofe – sanitária, ambiental, política, social e moral ‒ que se avoluma em nosso planeta. Que esses textos sirvam de testemunho da ação reflexiva dos historiadores durante a pandemia, que façam o barulho capaz de registrar que estivemos reunidos, que não nos calamos, que atuamos com as armas que tínhamos à disposição.

Notas

1 Os vídeos estão disponíveis no canal do YouTube e podem ser acessados em: https://www.youtube.com/watch?v=gnpF1aU1Dyk&ab_channel=ProgramadeP%C3%B3sGradua%C3%A7%C3%A3oemHist%C3%B3riadaUDESC. Acesso em: 26 de agosto de 2021.

2 Para homenagear o colega, os professores do PPGH/UDESC leram fragmentos de sua produção intelectual. Os áudios estão disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=rM7kXLDwtrA&list=PLYYbs2o3fDHhGcKEA4Oo2L4RcV345f LYi&ab_channel=ProgramadeP%C3%B3s-Gradua%C3%A7%C3%A3oemHist%C3%B3riadaUDESC. Acesso em: 26 de agosto de 2021.


Organizadores

Rogério Rosa Rodrigues – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH/UDESC) lattes.cnpq.br/1738939950525949 orcid.org/0000-0002-5189-7095

Silvia Maria Fávero Arend – Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH/UDESC) lattes.cnpq.br/7367251417314346 orcid.org/0000-0002-3262-5596

Maria Teresa Santos Cunha – Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH/UDESC) lattes.cnpq.br/1895532605964830 orcid.org/0000 -0001-6200-6713

Reinaldo Lindolfo Lohn – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH/UDESC) lattes.cnpq.br/0899990656525100 orcid.org/0000-0002-7902-2733


Referências desta apresentação

RODRIGUES, Rogério Rosa; AREND, Silvia Maria Fávero; CUNHA, Maria Teresa Santos; LOHN, Reinaldo Lindolfo. Apresentação. Tempo e Argumento. Florianópolis, Número especial, 2021. Acessar publicação original [DR]

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