Há algo singular na apreciação das relações internacionais contemporâneas e na história das relações internacionais do século XX. Apenas um tema tem sido ultrapassado, em volume e proporção quantitativa, pelo estudo das questões Israel-Palestina: a Grande Guerra de 1914-1918. Isso evidencia algo a nos induzir a uma forte preocupação: mais do que a paz, como lembram os clássicos realistas, a guerra é ainda o cerne a dar fundamento epistemológico às relações internacionais.
Nesse sentido, à primeira vista, pareceria que o livro organizado por Dupas e Vigevani padeceria da síndrome do sucesso do tema em voga ou da pouco criativa recorrência ao lugar comum, ao já dito, ao já qualificado. Em outras palavras, ao déjà vu. Mas não é isso o que emerge ao longo da leitura da coletânea conduzida pelos colegas paulistas. O conflito Israel-Palestina é posto em tela de uma maneira original, no esforço teleológico da busca de caminhos da paz. Os autores, ao aceitarem o desafio, não reificam a guerra, mas a desconstroem, de fato, por meio de múltiplos olhares e binóculos distintos, mas a partir da mesma colina: a da vontade de celebrar a convivência de contrários.
Dupas chama logo a atenção para o fato de que o livro é estruturado a partir de um seminário organizado pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, datado, ademais, ao ano 2000. Isso não torna a avaliação atrasada no tempo. Ao contrário, a leitura das relações Israel-Palestina, em tempos menos sombrios que o de hoje, traz um ângulo mais altaneiro, elevado, menos episódico que eventos que nos cobrem de vergonha nesses dias de retorno às desinteligências no contexto do Oriente Médio. Ademais, o recurso à arqueologia do conflito e das possibilidades da paz é por demais útil, às vezes didaticamente apresentado, o que agrega valor adicional à obra coletiva.
O texto de Vigevani, Cintra e Kleines tem o intento de buscar entender as origens do conflito entre palestinos e israelenses na média duração. Do final do século XX ao início do século XXI, a história é recriada na forma da proposição da antinomia entre os anacronismos e a contemporaneidade. Demonstram os autores o quanto a desregulamentação global engendrada pela globalização e a fluidez do sistema internacional pós-Guerra Fria geraram novas condições, mas que se juntaram a outras que lhe são anteriores, propícias à intensificação do conflito. A participação brasileira, ainda que de forma discreta, é avaliada no processo de discussão acerca de posições e versões em favor da construção da paz.
O capítulo de Demant é bastante substantivo, a alinhar as razões do fracasso das negociações em favor da paz entre palestinos e israelenses. A leitura sobre o caráter anômalo da sociedade que se forma em Israel é muito interessante. O amálgama bizarro de modernidade e pré-modernidade, a moldar uma sociedade com ares colonialistas, ajuda a entender alguns dos problemas que são hoje postulados nas relações entre Israel e Palestina e mesmo de Israel em relação a parte do seu entorno árabe.
As chamadas questões substantivas são apresentadas no livro em torno das contribuições de Malki, relativas ao tema da tecnologia no processo de paz; daquelas de Kleiman, sobre o futuro, já meio passado, das relações econômicas Israel-Palestina; das de Kaufman e Bisharat sobre a importância dos direitos humanos na resolução de conflitos; da exposição de Hassassian sobre o tema da soberania palestina; além do retorno de Demant em torno do temas da identidades israelenses e palestinas.
Toda essa segunda parte, muito rica em informações e leituras críticas, ora sobre o campo das identidades, mentalidades e da imagem coletiva do outro, ora sobre o tema clássico das desigualdades estruturais entre fortes e fracos, passando pela valorização dos direitos humanos como o substrato a fornecer perenidade a qualquer ensaio de paz duradoura na região, é seguida por uma parte final do livro, dedicada às percepções brasileiras do conflito.
Na parte final, observadores atentos da academia, como Breda dos Santos e Oliveiros Ferreira, juntam-se diplomatas na carreira ou aposentados, como Vicente Pimentel e Porto de Oliveira. As leituras são múltiplas, desde uma posição mais livre e solta como aquela encaminhada por Oliveiros Ferreira, a refletir sobre o papel da religião e das ideologias que dividem os dois mundos, de forma dicotômica, a empurrar as ações para o espaço do fundamentalismo e não para a coerência de posições em bases de racionalidade mínimas.
Breda dos Santos enfatiza, de forma muito interessante, os elementos evolutivos das posições do Brasil nos temas do Oriente Médio, das décadas de 1950 a 1960. A participação brasileira na primeira missão de paz das Nações Unidas na região é avaliada por Breda dos Santos a partir de uma leitura rigorosa e cuidadosa da documentação brasileira do Centro de Documentação do Itamaraty bem como do Centro de Documentação do Ministério do Exército. O que chama mais a atenção na avaliação da autora é o fato de não terem existido mecanismos de coordenação entre o Itamaraty e o então Ministério da Guerra naquela ocasião. Ademais, curiosa, embora não contraditória tese segundo a qual o Brasil foi talvez o único país dos sete países que contribuíram para a Força de Paz que não apresentou propriamente uma “doutrina firmada para nenhuma das duas políticas consideradas”, a seguir as palavras do major Rubens Portugal.
Recomendo, assim, a leitura desse bom leque de pesquisas e posições, comprometidas com o tema, ciosas pelo equilíbrio na exposição e desejosas pela construção postergada da paz.
Resenhista
José Flávio Sombra Saraiva
Referências desta Resenha
DUPAS, Gilberto; VIGEVANI, Tullo (Orgs.). Israel-Palestina: a construção da paz vista de uma perspectiva global. São Paulo: Editora Unesp, 2001. Resenha de: SARAIVA, José Flávio Sombra. Revista Brasileira de Política Internacional, v.45, n.2, 2002. Acessar publicação original [DR]
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