Desde a publicação de Montaillou de Emmanuel Le Roy Ladurie2, em 1975, consolidou-se um campo de investigação para a heresia. Com sua obra, os cátaros ganharam o olhar dos estudiosos da chamada Idade Média Central e foram alvos de investigação de homens preocupados com o descortinar do processo inquisitorial. Tais comunidades heréticas do século XIII eram opositoras à Igreja e sua recusa podia ser verificada na doutrina que sustentavam, de cunho dualista, anticlerical e antiprocriacional, que os ligava a gnósticos e maniqueus dos séculos iniciais da era cristã. Essa imagem do herege dominaria a historiografia e caminharia ao lado de uma linha de interpretação historiográfica também iniciada nas décadas de 60 e 70 do século XX. Ali, a heresia era tida como foco de resistência, não só à estrutura clerical, mas à cultura que se pretendia homogênea e dominante. Ligados ao campo da Nova História Cultural, trabalhos como os de Jacques Le Goff3 situaram a heresia em uma dinâmica sócio-cultural que deslocava o conflito social entre dominantes e dominados para a esfera cultural. A heresia, juntamente com as superstições4, passava a ser parte da manifestação da cultura popular, da expressão religiosa dos camponeses e estava atrelada, de maneira inequívoca, ao conflito cultura erudita/cultura popular, ou “folclórica”.
A desconstrução da imagem do herege, bem como a apresentação de uma nova perspectiva para a abordagem da heresia medieval, foi feita na década de 805 e ganhou força na de 90, quando surgiu um conjunto de estudos que questionaram o que se produzira, até então, acerca da heresia6. Em 1998, seria publicado o livro Inventer l´hérésie: discours polémiques et pouvoir avant l´inquisition, traduzido no Brasil em 2009 pela Editora da UNICAMP, com traduções de membros do Laboratório de Estudos Medievais da USP e UNICAMP. Os capítulos que integram a obra resultaram de estudos apresentados em um seminário realizado em Nice, entre 1993 e 1995, e de uma mesa redonda em 1996, eventos organizados por Monique Zerner, da Universidade Sophia Antipolis e integrante do Céntre d´Études de Préhistoire, Antiquité et Moyen Âge (CÉPAM). Os estudiosos reunidos são representantes da historiografia francesa, integrantes ou não do CÉPAM, mas, na maioria, vinculados ao Céntre Nationale des Recherches Scientifiques (CNRS).
Tal obra é de importância capital para o estudo não só das heresias medievais, mas também do período de Reforma da Igreja a elas associada. Para realizar tais investigações, os autores utilizaram textos de caráter polêmico, narrativo e normativo, vistos na “lógica de sua produção”7. Por meio deles, o conceito-chave da historiografia inglesa, literacy, possibilitava a ênfase na relação entre heresia e cultura escrita. O resultado foi uma interpretação da heresia que a situava entre a linguagem e a política eclesiástica, ou seja, entre o discurso produzido e a prática social que se desejava disciplinar. Dessa forma, houve a mudança no tratamento das heresias medievais, vistas não mais como um conflito sócio-cultural, mas como construção doutrinária, feita por parte daqueles que, por meio do domínio de mecanismos de poder, firmaram-se como “a” ortodoxia8. Nesse sentido, o ano de 1180 foi considerado um período de mudança significativa. Isso porque até essa data, que antecede a criação dos tribunais da Inquisição e a perseguição sistemática dos hereges, os autores puderam traçar um terreno ainda fértil para o debate e para a polêmica. A partir de 1180, então, tal polêmica daria cada vez mais lugar à necessidade de confissão dos erros, de manifestação da heresia e da realização de uma profissão de fé. A discussão cederia lugar ao combate.
O livro pode ser dividido em três momentos chaves que delineiam a construção discursiva da heresia, correspondente aos desejos de interferência na sociedade por parte da Igreja que detém o poder, mas que o faz ainda através do debate. O primeiro iria do século I d.C até o século XI, ou seja, do início da organização e expansão do cristianismo até o período inicial do movimento reformista. Tratam desse período os textos de Daniel Dubois sobre a disputa dos primeiros cristãos para construírem uma identidade cristã face à gnose e o de Jean-Pierre Weiss acerca da polêmica travada por Agostinho contra o bispo maniqueu Fausto. Esses dois trabalhos nos demonstram a construção da ortodoxia cristã a partir de disputas e controvérsias. Dubois contribuiu com a investigação ao historicizar o termo “heresia” a partir dos textos paulinos. A heresia era considerada uma forma de dissidência e os heréticos adeptos de uma mesma doutrina falsa. Jean-Pierre Weiss, em contrapartida, alertou para a mudança histórica do tratamento das heresias, quando, em decorrência do Concílio de Calcedônia em 451, as heresias foram substituídas pela heresia no singular. A partir de então, “a” heresia seria considerada uma negação da totalidade de uma tradição eclesiástica constituída.
Nos séculos iniciais da organização da Igreja, então, o que estava em jogo era a discussão sobre a própria noção de verdade. A doutrina cristã ainda em formação começava a ser apresentada como “a” verdade frente a uma multiplicidade de falsos ensinamentos e interpretações errôneas. Para revelar tal falsidade, os escritores dos tratados polêmicos tinham como método a apresentação dos argumentos de seu adversário para, a seguir, refutá-los ponto a ponto. Apresentando e refutando o posicionamento de Fausto, Agostinho demonstrou o engano em negar a canonicidade do Antigo Testamento. Da mesma forma, Irineu de Lyon demonstrou o quanto a gnose de Valentiniano mais se aproximava de uma mitologia do que do cristianismo.
O segundo momento importante no diálogo com a heresia e a afirmação dos preceitos eclesiásticos situa-se entre os séculos XI e XII, mais precisamente entre os anos 1000 e 1130. Nesse momento, somos levados a considerar a importância dos primeiros passos da Reforma da Igreja, associados à reforma monástica que colocaria em evidência os mosteiros de Cister e de Cluny. Embora essas duas casas monásticas tenham desempenhado um papel central na defesa de prerrogativas reformistas, o que temos na obra é a apresentação da importância também do mosteiro de São Vítor de Marselha e a novidade advinda com as Atas do Concílio de Arras. Segundo demonstrado por Michel Lauwers em sua primeira contribuição à obra9 , São Vítor de Marselha e seu abade Isarne foram centros de apoio dos reformistas. Ao analisar a vida desse abade, bem como o dossiê do qual fazia parte seu manuscrito, o autor mostrou que, embora a heresia tivesse existência, ela ainda não era nomeada, nem possuía feição. Assim, para apresentá-las, eram feitas compilações de textos antigos, que adquiriam uma coerência vinculada à difusão da reforma na Provença. Do mesmo modo, o artigo de Guy Lobrichon acerca das Atas do Concílio de Arras de 1025 apontou a imputação de heresia e a nomeação de seus argumentos constituintes como forma de afirmação do discurso de um prelado do Império, em uma região dividida entre forças imperiais e reais. Segundo Lobrichon, as Atas de Arras demonstram que a persuasão poderia e deveria prevalecer sobre a coerção e o emprego da violência. Entre o ano 1000 e 1130, foi colocado em evidência um jogo de forças que dispunha as heresias como contestatórias ao movimento reformista e as situava no centro da querela das investiduras, mas que, menos do que testemunho da aspiração dos hereges, era a consolidação dos próprios anseios eclesiásticos.
O terceiro momento é iniciado com o tratado de P. V., considerado o primeiro tratado anti-herético medieval, que modifica consideravelmente a postura eclesiástica em relação à heresia, considerado o primeiro tratado antiherético medieval. Abade de um dos centros irradiadores do movimento reformista, mas considerado por Dominique Iogna-Prat o exemplo de monge pós-reformista, ele se empenhou no combate pela Igreja em todas as frentes possíveis. Nesse período, vemos não só a heresia e os hereges ganharem nomes, como Pedro de Bruis e os petrobrusianos, o monge Henrique e os henriquicianos, e mais tardiamente, Valdo e os valdenses, como se iniciar a passagem da polêmica para o combate. Não por outra razão, Dominique IognaPrat nomeou a forma de discurso de Pedro, o Venerável, como “argumentação defensiva”, na medida em que era composto tanto por imprecações já usadas por Bernardo de Claraval, quanto pela disputatio, pela forma de argumentar desenvolvida nas escolas urbanas já em conformidade com o processo de racionalização do século XII. Ou seja, Pedro, o Venerável, exemplificava, exatamente, a segunda transição na abordagem da heresia: embora ainda houvesse espaço para o argumento e o convencimento racional promovido pela argumentação, o combate fazia sua aparição, principalmente na investigação que suscitava o conhecimento da heresia. As compilações do período anterior, bem como os tratados polêmicos dos anos iniciais da Idade Média, seriam substituídas por tratados anti-heréticos combativos, tal qual o de Pedro, o Venerável, mas também o do monge Guilherme contra o herético Henrique, estudado por Monique Zerner.
Poderíamos dizer, então, que nos encontramos muito distantes dos cátaros de Montaillou e do Menocchio de Carlo Ginzburg10 não só espacial, mas, principalmente, metodologicamente? Se o moleiro do Friul vivenciava um processo inquisitorial já estruturado, bem como a intensificação da perseguição que se seguiu à formulação do crime de bruxaria e se Ginzburg conseguiu ir além do quadro erudito determinado pela inquirição inquisitorial, para encontrar no julgamento do moleiro os traços da cultura popular, a obra Inventar as heresias? apresentaria o fato inconteste de que só há “a” heresia na medida em que se constitui “a” ortodoxia como um discurso que se pretende uma formulação “da” verdade e que, portanto, nenhum vinculo mantinha com as práticas sociais postas em jogo pela história? É nessa tensão entre consolidação da ortodoxia e acusação de heresia que, por exemplo, Michel Lauwers abre espaço para a busca dos elementos inovadores do discurso polêmico que revelariam o coração da própria prática social da sociedade senhorial. Em sua segunda contribuição para a obra, o autor tratou da contestação do sufrágio devido aos mortos, bem como do local de inumação sacralizado. A partir da refutação eclesiástica a essas contestações, vemos o desvelamento de um sistema político-econômico no qual os mortos desempenhavam um papel fundante, cada vez mais garantido pelo vinculo forjado entre os vivos e destes com seus mortos, passando pela intermediação insistente da Igreja, e, principalmente, dos monges, que se consagravam como os protetores e conservadores da memória dos mortos. Ao analisar essa temática nas fontes produzidas entre os séculos XI e XIII, Michel Lauwers buscou indícios capazes de revelar as dimensões sociais da heresia, a ponto de poder afirmar que os hereges eram, então, aqueles cristãos que recusavam as múltiplas trocas pregadas pela Igreja a partir do vínculo entre os vivos e mortos, do qual decorriam os demais. Todavia, ele é ainda cuidadoso em ressaltar que aquilo que se encontra na documentação, mais do que ideias e argumentos dos próprios hereges, era o discurso forjado pela instituição eclesial para afirmar a importância de se constituir como uma intermediadora privilegiada da relação entre vivos e mortos.
Os artigos de Michel Rubellin e Jean-Louis Biget apontam a falha da historiografia contemporânea ao analisar valdenses e albigenses. Segundo os autores, a partir da década de 60 do século XX, houve uma equiparação e unificação de todas as heresias advinda de um processo de transferência sistemática do particular para o universal e de generalização do fato regional. Esses dois autores, então, procuraram restituir ao regional seu valor ao demonstrarem como a questão Valdo e albigense esteve imbricada nos problemas político-religiosos de Lyon e do Midi. Michel Rubellin destacou o papel central que Valdo desempenhou na crise pela qual passava a diocese de Lyon entre 1157 e 1180. Laico que apoiava as pretensões reformistas do bispo Guichardo de Pontigny, sua atividade pregadora correspondia aos anseios do próprio bispo para aumentar sua aceitação em uma diocese que lhe era hostil. Não por outro motivo, Valdo e seus discípulos somente seriam condenados e expulsos de Lyon após a morte de Guichardo e de Alexandre III, papa favorável ao bispo cisterciense. Também Jean-Louis Biget criticou a historiografia ao apontar que a terminologia utilizada após 1960 para designar os dissidentes do Midi demonstrava o apego a uma imagem de valor heróico e universal, que promovia o desaparecimento dos albigenses em favor dos cátaros. Ao nomear albigenses por cátaros, perdia-se a dimensão territorial do conflito e enfatizava- se o espírito de liberdade, de tolerância e resistência à opressão por parte dos camponeses do Midi. Todavia, o que Jean-Louis Biget demonstrou que estava em jogo na questão albigense era um conflito regional, existente entre Raimundo V, Raimundo de Trencavel, o papa Inocêncio III, os reis da França, da Inglaterra e de Aragão. Foi o desejo de dominar Toulouse e Albi, regiões relativamente autônomas política e religiosamente, bem como as resistências que Raimundo V e, principalmente, Raimundo de Trencavel fizeram aos cistercienses, que tornaram esse território o nascedouro das heresias e das dissidências religiosas.
Invenção da heresia? O título sugere, então, a perspectiva que norteia os estudos reunidos. Ainda que a hipótese da qual partam os autores seja a de que “a literatura anti-herética é mais uma construção discursiva eclesiástica que o reflexo direto de questões que teriam sido colocadas pelos hereges”11, eles procuraram deixar um campo aberto ao questionamento da própria construção ou invenção. Com isso, o livro situa-se, exatamente, na tensão entre discurso e prática social. Sem abrir mão da noção de discurso produzido pelo poder, os autores reunidos para comporem esse trabalho também não deixaram de lado a preocupação com a resistência a uma Igreja cada vez mais organizada e que desenvolvia mecanismos rituais e sacramentais de controle social. Assim, não deixaram de questionar acerca da prática social que era desvelada por discursos e mecanismos linguísticos compostos em dossiês e tratados anti-heréticos. Da mesma forma, os autores não deixaram de descortinar um período reformador ainda aberto ao debate, à polêmica e à persuasão, a despeito das próprias tentativas de normatização e enquadramento da sociedade nos preceitos reformistas. Assim, essa obra é, definitivamente, leitura imprescindível para o estudo das heresias e do processo de consolidação das diretrizes reformistas e de fortalecimento de Cluny e de Cister. Não por outro motivo, Robert Ian Moore diria que “se este livro fosse apenas a soma de suas partes, seria a mais importante publicação nesse domínio por numerosos anos. Mas ele é bem mais do que isso. Ele não é um fim, mas um começo”12.
Notas
2 LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou: povoado occitânico. 1294-1324. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
3 LE GOFF, Jacques. “Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia”. In: Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1997.
4 SCHMITT, Jean-Claude. História das superstições. Lisboa: Europa-América, 1997.
5 Um exemplo é a obra ZERNER, Monique. La croisade albigeoise. Paris: Gallimard, 1979.
6 “A ideia desse seminário veio de numerosas discussões informais que remontam, algumas delas, a uma dúzia de anos e que partiram de nossa inquietação diante da forma como o catarismo é tomado como um dado de fato indiscutível na historiografia francesa”. ZERNER, Monique (org). Inventar a Heresia?… p. 07.
7 Ibid, p. 08.
8 “Nós nos interessamos mais pelas manipulações dos textos pela instituição eclesiástica, isto é, pela relação do texto escrito com a verdade e a construção de uma verdade, cuja natureza, alertamos, muda a partir dos anos 1180 com o estabelecimento progressivo do procedimento inquisitorial paralelo ao fortalecimento da referência ao direito romano, dominado pela vontade de fazer confessar”. Ibid, p. 09.
9 “Saint-Victor de Marselha no final do século XI: um eco de polêmicas antigas?”.
10 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
11 Ibid, p. 10.
12 ZERNER, Monique. Inventar a heresia?… p. 277.
Resenhista
Rossana Alves Baptista Pinheiro – Professora de História da Filosofia Medieval da Universidade Federal de Alagoas. Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas.
Referências desta Resenha
ZERNER, Monique (Org). Inventar a Heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Trad. Néri de Barros Almeida et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009. Resenha de: PINHEIRO, Rossana Alves Baptista. Signum- Revista da ABREM, v. 11, n. 1, p.352-357, 2010. Acessar publicação original [DR]
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