Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas – KOCH (RED)

KOCH, Ingedore Villaça. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Contexto, 2015. 173 p. Resenha de: SEARA, Isabel Roboredo. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2016.

Introdução à linguística textual: Trajetória e grandes temas é o livro mais recente de uma das figuras incontornáveis da Linguística brasileira: Ingedore Villaça Koch. Essa obra pioneira teve sua primeira edição em 2004, publicada pela editora Martins Fontes. A edição atual, de 2015 (Contexto), foi revista e reformulada.

Nela a autora partilha, com todo o seu vasto público-leitor, a sua concepção de Linguística Textual, assumindo uma postura científica distante das gramáticas tradicionais e perscrutando, de forma inovadora, os contributos das ciências cognitivas e sociais para a fixação deste novo campo disciplinar. Koch procede a uma resenha dos principais trabalhos mundiais que estão na base desta nova ciência, evidenciando como, ao longo das últimas décadas, têm sido várias as concepções de texto e como estas têm repercutido na evolução dessa disciplina linguística, que se iniciou a partir de uma perspectiva de base gramatical, passando posteriormente por uma abordagem discursivo-pragmática, até se ancorar, nos dias de hoje, numa dinâmica sociocognitivista e interacional.

A obra divide-se em duas grandes partes: na primeira, a autora traça o panorama da trajetória da Linguística Textual, detendo-se principalmente em análises interfrásicas e gramaticais do texto (nomeadamente a visão da pura gramática de texto e a visão semântica), para expor detalhadamente a virada pragmática e, posteriormente, a sociocognitivo-interacionista. Nessa parte inaugural, ela aborda ainda os princípios da construção textual de sentido, designadamente os processos de construção da coesão textual do sentido e da coerência.

Na parte II, a linguista aborda os principais objetos de estudo da disciplina: referenciação; formas de articulação textual; estratégias textual-discursivas de construção do sentido; marcas de articulação na progressão textual; a intertextualidade e, por fim, os géneros do discurso.

Essas duas partes capitais da obra situam-se, naturalmente, entre a introdução e a conclusão, que merecem uma atenção especial, na medida em que, diferentemente da maior parte dos manuais de Linguística, que apresentam nesses itens de abertura e fechamento simples apresentações e resumos do explanado, em Introdução à linguística textual: Trajetória e grandes temas, isso não acontece.

Na Introdução, Koch desperta e cativa a nossa atenção ao enunciar algumas perguntas muitíssimo pertinentes que atestam o lugar e o papel da Linguística Textual, comprometendo-se a esclarecer ao longo do texto a centralidade dessa ciência ou teoria da linguagem, que a autora prognostica encontrar-se numa fase de inegável consolidação. Na sequência desse desafio que nos é colocado, procede à recensão das várias concepções de texto que, ao longo dos tempos, fundamentaram os estudos de Linguística Textual, elencando, desde logo, a sua evolução por décadas e anotando, a par e passo, os nomes cimeiros, quer da Linguística europeia, quer da Linguística brasileira, que contribuíram para a evolução da análise transfrásica e gramatical do texto para o processamento de base sociognitiva e interaccional.

Na Parte I, intitulada Análises Interfrásicas e Gramáticas de Texto, traça-se a fase inicial da Linguística Textual, cujos contributos pioneiros datam da segunda metade da década de 60 do século passado até aproximadamente à década de 70, em que a atenção era privilegiadamente dada aos mecanismos interfrásicos, de cunho gerativista, estruturalista e funcionalista, em que o texto era entendido como uma sucessão de unidades linguísticas, constituídas mediante uma concatenação pronominal ininterrupta. São referidos, a esse propósito, os contributos de Halliday & Hasan (Cohesion in Spoken and Written English. London: Longman, 1976), sobre os processos correferenciais anafóricos e catafóricos, e dos linguistas alemães Isenberg (Der Begriff “Text”. In: der Sprachteorie. ASG- Beritch, n. 8 Berlim, 1968) e Vater (Determinantien. Trier: Laut, 1979), sobre anáforas de tipo associativo, que se limitavam, porém, a porções textuais de maior ou menor dimensão, sem ousarem outros avanços. Nessa fase titubeante da Linguística Textual surgiu a necessidade de elaboração de gramáticas textuais, à semelhança das já existentes gramáticas de frase, a partir do pressuposto de que existe uma competência textual para além da competência linguística, de base chomskiana. A virtualidade desse novo olhar foi a de encarar o texto como uma unidade linguística hierarquicamente superior (ou mais elevada, nas palavras da autora). Em prol dessa perspetiva surgiram as gramáticas textuais de Weinrich (Tempus: besprochene und ezahtle Welt. Sttütgart: Koklhammer, 1964. [1971: edição modificada]), Petofi(Zu einer Grammatischen Theorie spralischer texte. LiLi, ano 2, fas.5, 1973, p.31-58) e Van Dijk (Some Aspects of Textgrammars. The Hague: Mouton,1972).

A essa primeira fase seguiu-se a abordagem semântica, em que se defendia que apenas à semântica do texto cabia explicar a estrutura dos significado de um texto e as relações de sentido, tendo sido esses pressupostos amplamente desenvolvidos por Dressler (Einführung in die Textlinguistik. Tübingen: Niemeyer, 1972), Charolles (Introduction aux problèmes de la cohérence des textes. Langue Française, 38, 1978, p.7-41) que, em 1978, apresenta as macrorregras de coerência textual, e Fillmore (The Case for Case. In: BACH, E. & HARMS, R.T. (eds.). Universals in Linguistic Theory. New York: Rinehart & Winston, 1968, p.1-88.1969), entre outros.

Todavia, a partir da metade da década de 1970, a perspectiva pragmática acaba por se impor a partir quer das teorias de base comunicativa, quer a partir dos postulados da teoria dos atos de fala e da teoria da atividade verbal, subscrevendo-se com esse novo olhar a necessidade de encarar o texto como produto de uma atividade mais complexa, como instrumento de realização de intenções comunicativas e sociais do falante, tal como foi preconizado nomeadamente por Heinemann, em 1982. São realçados os contributos de alguns linguistas europeus: do linguista alemão Wunderlich, subscritor da Teoria da Atividade Verbal, que introduziu uma série de questões de cariz enunciativo, particularmente o conceito de dêixis; de Isenberg (Einige Grundbegriffe für eine linguistische Textherorie. In: DANÉS, F. & VIEHWEGER, D. (eds.). Probleme der textgrammatik. Berlim: Akademic Verlag, 1976, p.47-146), que defende a importância dos planos de texto e dos propósitos comunicativos; de Schmidt (Textheorie. Probleme einer Linguistik der sprachichen Kommunication. München: Fink, 1973) que, por seu turno, sublinha a necessidade de entender o texto na sua dimensão sociocomunicativa; as ideias subscritas por Heinemann&Viehweger (Textlinguistik: eine Einführung. Tübingen: Niemeyer, 1991), que se centram no conceito pragmático de “ação verbal” e que alicerçam a ideia do texto como resultado de um processo de comunicação; e, por fim, van Dijk que, nomeadamente na sua obra Studies in the Pragmatics of Discourse (Studies in the Pragmatics of Discourse. Berlim: Mouton 1981) e em outras posteriores, subscreve a necessidade de ter em linha de conta “as relações funcionais do discurso” que estão na base da coerência pragmática.

Seguindo esta démarche cronológica, segue-se a apresentação da virada cognitivista que ocorre na década de 80, em que se entende que todo texto passa a ser considerado como resultado de operações mentais, sendo fundamental para sedimentar essa ideia a obra de Beaugrande e Dressler (Einfhrung in die Textlinguistik. Tübingen: Niemeyer, 1981), que postulam essa multiplicidade de operações cognitivas interligadas que subjazem à elaboração e produção textuais. A novidade dessa abordagem reside, pois, na percepção de que o processamento textual é estratégico e não é indissociável das características dos usuários da língua e do conhecimento episódico e enciclopédico que convocam na construção textual. As estratégias interacionais afirmam-se, nesse sentido, como estratégias socioculturalmente determinadas, com o objetivo do sucesso da interação verbal, destacando-se as estratégias de preservação das faces, que envolvem o uso de formas de atenuação e de polidez, entre outras.

Na sequência dessa visão, surge a perspectiva sociocognitivo-interacionista, com base na interiorização de que os processos cognitivos não são exclusivamente individuais, mas concomitantemente sociais. Essa ideia foi, de resto, subscrita amplamente por Koch em trabalho conjunto anterior (Koch, I. e Lima, M. Sócio-cognitivismo. In: MUSSALIN, F. & BENTES, A.C. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, filosóficos e modelos de análise. São Paulo: Cortez, 2004) que, defendendo a abordagem interacionista, considera as ações verbais como “engajamento” em contextos sociais, com finalidades sociais e com papéis distribuídos socialmente, reforçando a dimensão sociointeracionista da linguagem.

No último capítulo da I Parte da obra, a autora procede, com todo o rigor, a uma recensão dos princípios de construção textual do sentido a partir da obra de Beaugrande e Dressler (1981), explicitando o conceito de coesão textual e ilustrando com exemplos significativos de elementos que podem ter, no texto, função coesiva. A autora explicita igualmente os conceitos de coerência, situacionalidade, informatividade, intertextualidade, intencionalidade, aceitabilidade que estão presentes nas postulações de Beaugrande & Dressler para, em seguida, os poder questionar, criticando, por exemplo, a separação tecida pelos autores entre fatores centrados no texto e no usuário e defendendo a introdução de outros fatores. Subscreve, a partir de Marcuschi (Linguística do texto: o que é e como se faz. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Série Debates 1, 1983), a introdução de “fatores de contextualização”, que contribuem para a ancoragem do texto em determinada situação comunicativa. Apresenta, por outro lado, os conceitos de consistência e relevância, a partir dos trabalhos de Giora (Segmentation and Segment Cohesion: on the Thematic Organization of Text. Text, 3 (2), 1983, p.155-181) e acrescenta a relevância do conceito de “focalização”, que a autora trabalhou em estudo conjunto desenvolvido com Travaglia (A coerência textual. São Paulo: Contexto, 1987) para subscrever que, na abordagem sociocognitiva e interacionista, a coerência deve ser encarada como uma construção “situada” dos interlocutores.

Na Parte II, o leitor depara-se com a explicitação detalhada dos conceitos anteriormente abordados, sendo agora explanados com a clareza e a sabedoria que advêm da longa e marcante experiência docente de Ingedore Villaça Koch, convocando, por isso, par e passo, exemplos pertinentes que, seguindo com fidelidade os conselhos da retórica clássica, prendem a atenção do leitor.

Detém-se primeiramente na referenciação como atividade discursiva, tema que, de resto, foi amplamente trabalhado por Koch e Marcuschi em múltiplos trabalhos e que se sustenta na ideia-chave de que a discursivização ou textualização do mundo é, ela-própria, um processo de (re)construção do real. Quer para as formas de ativação de referentes no modelo textual, quer para a progressão referencial, a autora esclarece as diferentes estratégias de referenciação, sistematizando e exemplificando com textos curiosos e atualizados da imprensa brasileira.

A sistematização é um dos recursos pedagógicos mais eficientes, convocado por Ingedore Koch para recensear, por exemplo, as funções cognitivo-discursivas das expressões nominais referenciais, permitindo-lhe demonstrar que os “referentes” são objetos do discurso, construídos e reconstruídos continuamente na interação verbal.

Para abordar as formas de articulação ou progressão textual, a autora, denotando de novo o seu saber enciclopédico, ilustra com exemplos de versos do consagrado poeta português Fernando Pessoa, convocando, de seguida, poemas do carioca Olavo Bilac, excertos literários de Machado de Assis e do Padre António Vieira, mostrando como o ecletismo literário pode conviver com os exemplos de enunciados do quotidiano, confirmando, assim, que os processos e estratégias linguísticas estão presentes em todo tipo de textos.

É de interesse capital nesta obra o capítulo dedicado às estratégias textual-discursivas de construção do sentido, que desempenham uma série de funções cognitivo-interativas e que subjazem à facilitação da compreensão e descodificação dos enunciados, visando, por isso, assegurar o sucesso da interação. Os exemplos que a autora convoca, como já anteriormente sublinhamos, atestam a variabilidade das fontes, que nesse ponto são completados com exemplos da língua falada, retirados do corpus do projeto NURC. São, pois, criteriosamente definidas as estratégias formulativas, como as inserções, as repetições e parafraseamento retóricos e deslocamento de constituintes, sempre ilustradas com exemplos esclarecedores, de que nos permitimos destacar as repetições e os parafraseamentos retóricos e que, como curiosamente, a linguista justifica, visam seguir o velho ditado português (“água mole em pedra dura”), na medida em que contribuem para o reforço da argumentação.

Por sua vez, quando a autora aborda a questão das estratégias metadiscursivas, parte da proposta de outros autores para conceber, com mais clareza e simplicidade, a sua proposta de classificação em três categorias, as metaformulativas, em que inclui as correções, as paráfrases e repetições saneadoras; as modalizadoras ou metapragmáticas, que têm como objetivo preservar a face do locutor e recorrem sobretudo a estratégias de atenuação e de desresponsabilização ilocutória; e, por fim, as metanunciativas, em que o enunciador autocomenta o seu próprio dito.

Para a eficácia das estratégias, é naturalmente necessário o uso de articuladores textuais ou marcadores discursivos, pelo que a autora se fixa, nesse momento capital da obra, na descrição pormenorizada e sistematizada dos diferentes tipos de marcadores, categorizando-os com base nas suas funções: marcadores de conteúdo proposicional, discursivo-argumentativos, textuais e metadiscursivos. Criteriosamente definidos e exemplificados, tornar-se-á fácil para qualquer estudante interiorizar esses conteúdos centrais da Linguística Textual.

No final da Parte II, a autora faz uma pequena incursão em dois temas centrais para a Linguística Textual: o da intertextualidade e o dos gêneros do discurso, temas que foram já abordados em anteriores trabalhos da pesquisadora. Convoca os principais trabalhos de linguistas franceses para debater as questões de intertextualidade implícita, esclarecendo e ampliando a centralidade da noção de “détournement” (GRÉSILLON, A.; MAINGUENEAU, D. Polyphonie, proverbe et détournement. Langages 73, 1984, p.112-125) e interligando com o conceito de polifonia, que a autora subscreve como de maior amplitude do que o de intertextualidade.

A derradeira reflexão sobre gêneros textuais é uma súmula brilhante dos trabalhos anteriores, desde os estudos pioneiros de Bakhtin até aos mais recentes trabalhos da Escola de Genebra, para defender a importância do conhecimento e da interiorização da multiplicidade de gêneros existentes que contribuem para habilitar os sujeitos na aquisição de uma maior competência linguística, comunicacional e, sobretudo, interacional.

A obra se encerra com uma reflexão sobre o futuro da Linguística Textual, em que Koch, como uma das suas principais fundadoras no Brasil, reflete, com competência e autoridade, sobre a necessidade crescente de a Linguística Textual construir pontes, não apenas com as ciências ditas humanas, mas com outros campos de conhecimento, visando, desse modo, a edificação de uma ciência integrativa, multi e transdisciplinar, em diálogo permanente com todas as outras disciplinas que têm como objeto de estudo a construção social dos sujeitos, o conhecimento e a linguagem, em suma, a interação social.

Em suma, há obras cuja leitura devemos recomendar e que, pelo rigor, transparência e poder de síntese, configuram o que comummente apelidamos de “bíblia”. Esta é indubitavelmente a ‘bíblia’ para todos os que queiram conhecer e aprofundar os seus conhecimentos sobre Linguística Textual. A sua forte difusão no Brasil e em Portugal atesta já a sua relevância nos estudos linguísticos em língua portuguesa.

Isabel Roboredo Seara – Universidade Aberta e Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal; isabelseara@uab.pt.

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