Neste segundo número do dossiê temático sobre estudos na perspectiva das Tradições Discursivas (TD), veiculado pela Revista LaborHistórico, agradecemos mais uma vez ao professor Leonardo Lennertz Marcotulio, Editor da Revista, por viabilizar a publicação da segunda parte de textos sobre TD, e aos autores dos artigos, que constantemente têm estabelecido parcerias para socializar e difundir os estudos sócio-histórico-diacrônicos que estabelecem a interseção entre a historicidade do texto e a historicidade da língua. Considerando que ainda há uma escassa difusão do conceito de Tradição Discursiva no cenário nacional, este dossiê pretende contribuir com outras obras de referência1, já em circulação, para que possam auxiliar teórica e metodologicamente pesquisas nessa área.
Para tanto, é preciso compreender que, da gênese da noção de Tradição Discursiva como paradigma teórico (COSERIU, 1987 2; KOCH, 1997 3) até as pesquisas atuais em TD, o conceito pode ser aplicado a diferentes dimensões de análise: a) a tradicionalidade dos gêneros; b) a tradicionalidade estrutural; c) a tradicionalidade dos tipos; c) a tradicionalidade dos estilos; d) a tradicionalidade linguística (dos modos de dizer). Essas dimensões, apesar de distintas, são complementares uma vez que uma determinada finalidade comunicativa atravessa o filtro das línguas históricas (regras idiomáticas) e o filtro das tradições discursivas (regras discursivas) no momento em que são construídos enunciados falados ou escritos (KABATEK, 2006) 4. Por exemplo, a finalidade de agradecer uma gentileza feita por alguém requer do falante uma seleção lexical e gramatical e uma escolha do melhor modo de dizer, que atenda às condições de produção. Nesse caso, o modo tradicional de dizer mais adequado ao contexto pode variar entre enunciados como: “Agradecida”; “Obrigada”, “Valeu”, “Tô devendo essa”.
Nesse sentido, uma TD não se restringe a um simples enunciado descontextualizado, consiste em um ato linguístico inserido em uma situação que evoca determinados modos de dizer que se repetem ao longo do tempo, permeados por traços de atualização e de permanência. Assim, é possível relacionar um texto com outros textos da mesma tradição produzidos em diferentes momentos históricos, a fim de investigar as ocorrências de variação e mudança linguísticas. O fato é que o estudo histórico de uma língua é feito por meio de textos de diferentes épocas que revelam a respectiva língua em uso. Desse modo, a perspectiva das Tradições Discursivas (TD) remonta a uma série de formulações e reformulações que vêm do âmbito da romanística alemã e têm dado uma nova orientação aos estudos linguísticos, uma vez que para verificar as variações, mudanças e permanências da língua e dos modos de dizer é preciso considerar também a tradição dos textos (KABATEK, 2006), estabelecendo, assim, a interdependência entre condições de produção, TD e arranjos linguísticos.
Esta segunda edição do dossiê temático sobre TD da LaborHistórico está composta de cinco artigos. São contribuições de pesquisadores da Europa-Universität Viadrina, em Frankfurt (Oder, Alemanha), do Centro Universitário Vale do Ipojuca (UNIFAVIP/Devry), UFPE, UFPB e UEPB que têm se debruçado sobre questões que envolvem dimensões textuais e da língua do ponto de vista sócio-histórico, dentro e fora do Brasil.
Inaugura esta segunda edição o artigo Como formar um público culto? Necrológio para a tradição discursiva Guia de Parque Zoológico, de Iryna Gaman e Konstanze Jungbluth, da Europa-Universität Viadrina. Neste trabalho, as autoras investigam a tradição discursiva Guia de Parque Zoológico, ao longo de duzentos anos, para acompanhar a mudança do discurso entre especialistas e leigos.
No segundo artigo intitulado Cartas oficiais dos séculos XVIII e XIX: aspectos pragmáticos, textuais e linguísticos, de Maria Cristina de Assis e Maria das Graças Carvalho Ribeiro, da Universidade Federal da Paraíba, as pesquisadoras analisam, a partir de uma perspectiva histórico-textual, com base nos níveis de análise linguística apresentados por Wulf Oesterreicher (1994; 1996), a linguagem de cartas oficiais enviadas a diferentes autoridades da administração pública da Paraíba nos séculos XVIII e XIX. Para isso, o corpus foi selecionado a partir de documentos manuscritos preservados no Arquivo Histórico da Paraíba.
O artigo de Ana Karine Pereira de Holanda Bastos, do Centro Universitário Vale do Ipojuca, intitulado Tradições discursivas em anúncios de fugitivos nos jornais do Recife, apresenta uma análise comparativa dos anúncios de fuga de escravos dos jornais do século XIX e dos anúncios de procurados da atualidade, identificando os elementos constitutivos de ambos os gêneros, a fim de estabelecer um elo entre inovação e conservação de TDs entre os textos.
No artigo O anúncio publicitário na escatologia dos folhetos de cordel, Linduarte Pereira Rodrigues, da Universidade Estadual da Paraíba, apresenta o resultado de um estudo histórico que demonstrou a representação histórica do anúncio publicitário figurado enquanto acontecimento em folhetos de cordel nordestinos que tematizam acerca dos ideais messiânicos e milenaristas do século passado.
Finalizando o dossiê temático da revista, o artigo Um estudo das formas verbais imperativas em cartas pessoais dos séculos XIX e XX, Aldeir Gomes da Silva, da Universidade Federal de Pernambuco, analisa cartas pessoais pernambucanas escritas nos séculos XIX e XX, a fim de verificar o comportamento variável do uso de imperativos nas correspondências, bem como observar quais outras formas não verbais podem e são usadas com objetivo de fazer pedidos, exortações etc., considerando os processos de elipse dos verbos, principalmente nas seções de captação de benevolência, recomendações e despedida das missivas.
Abrindo a Seção Varia, a pesquisa A variação diatópica dos pronomes pessoais Tu e Você em cartas de amor do sertão pernambucano do século XX, de Cleber Alves de Ataíde e Tallys Júlio Souza Lima, ambos da Universidade Federal Rural de Pernambuco, campus Serra Talhada, apresenta resultados da investigação sobre a variação de uso das formas de tratamento TU~VOCÊ na função sintática de sujeito em cartas de amor produzidas, nas décadas de 50 e 70, por dois casais não-ilustres de uma comunidade rural do sertão pernambucano. Para análise, os autores utilizaram um corpus de 138 missivas disponibilizadas no no Laboratório de Edição e Documentação de Pernambuco (LeDoc). Para analisar a alternância das formas tratamentais, consideram o aporte teórico-metodológico das orientações da linguística de corpus, da sociolinguística histórica e variacionista, a fim de verificar a atuação dos seguintes fatores: categorias preenchida e não-preenchida do sujeito e o paradigma de concordância S-V.
No texto Variação sociolinguística e dialetológica: um estudo contrastivo entre Cuiabá e Covilhã, Jussara Maria Pettenon Dallemole e Paulo Osório, da Universidade da Beira Interior (Covilhã, Portugal), assim como Maria de Jesus Carvalho Patatas, da Universidade Federal de Mato Grosso, se apoiam nas contribuições da Sociolinguística, no que respeita ao estudo do léxico em sua variação no tempo e no espaço, e analisam variantes lexicais obtidas in loco por meio do Questionário Semântico-Lexical (QSL) do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), nas localidades de Cuiabá (Brasil) e Covilhã (Portugal), correlacionando-as aos fatores extralinguísticos gênero, faixa etária, nível de escolaridade e naturalidade dos informantes. O principal objetivo do trabalho consiste na identificação de possíveis mudanças linguísticas em curso.
Fecha o segundo número do volume 4 da revista a contribuição de Xosé Manuel Sánchez Rei, da Universidade da Coruña (Galiza). O artigo intitulado Toponimia menor e conservadorismo lingüístico: algúns exemplos contemporáneos da cidade da Coruña se ocupa de alguns topônimos menores localizados na Coruña cujas características linguísticas dão indícios de aspectos evolutivos e históricos de outras épocas.
Concluímos a apresentação deste número com o desejo de que os leitores se sintam motivados a ler os artigos aqui contidos e que dessa leitura surjam questionamentos, críticas, sugestões e possibilidades múltiplas de interação que fortaleçam a produção científica na área da Linguística Histórica, o intercâmbio acadêmico e o fortalecimento das relações humanas. Por fim, desejamos uma ótima leitura, com frutíferas reflexões!
Notas
1 CASTILHO, Ataliba T. de; ANDRADE, Maria Lúcia C. V. O.; GOMES, Valéria Severina. História do Português Brasileiro: Tradições Discursivas do Português Brasileiro: constituição e mudança dos gêneros discursivos. Vol. 7. São Paulo: Contexto, 2018.
2 COSERIU, Eugenio. Gramática, semântica, universales: estudios de Lingüística Funcional, Madrid, Editorial Gredos, 1987.
3 KOCH, Peter. Diskurstraditionen: zu ihrem sprachtheoretischen Status und ihrer Dynamik. In: FRANK, Barbara; HAYE, Thomas; TOPHINKE, Doris (Eds.).Gattungen mittelalterlicher Schriftlichkeit.Tubingen: Narr – ScriptOralia, 99), 1997, p. 43-79. (Tradução do original alemão elaborada por Alessandra Castilho Ferreira da Costa, UFRN).
4 KABATEK, Johannes. Tradições discursivas e mudança linguística. In: LOBO, Tânia; RIBEIRO, Ilza; CARNEIRO, Zenaide; ALMEIDA, Norma (eds.). Para a história do português brasileiro: novos dados, novas análises, Salvador: EDUFBA, 2006. https://uni-tuebingen.de/kabatek/discurso/itaparica.pdf.
Organizadores
Cleber Alves de Ataíde – UAST-UFRPE.
Valéria Severina Gomes – UFRPE.
Referências desta apresentação
ATAÍDE, Cleber Alves de; GOMES, Valéria Severina. Apresentação. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.4, n.2, p. 10-12, jul./ dez. 2018. Acessar publicação original [DR]
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