O dossiê Intersecções do exílio: redes artísticas transnacionais, associações e colaborações surgiu de nosso interesse mútuo pelo tema, que desenvolvemos em pesquisas e artigos recentes.
Considerando que processos de migração, no campo das artes, desempenham papel crucial na criação e difusão de ideias, conceitos e novas formas de expressão artística, rompendo barreiras entre “centro” e “periferia” e estilhaçando cânones e modelos, buscamos, com nosso dossiê, estimular o debate e a reflexão sobre a constituição de redes criativas e de coletivos artísticos ao redor do globo. Não se trata, evidentemente, de menosprezar os efeitos nefastos de migrações forçadas na vida de indivíduos, grupos sociais e comunidades, mas de discutir o potencial transformativo de intercâmbios diversos no campo das artes. Interessava-nos, em particular, discutir a formação de grupos formais ou informais que desafiaram narrativas historiográficas, sobretudo as produzidas no universo europeu e norte-americano, diversificaram formas de intervenção e exposição e definiram novas geografias de intercâmbio.
Os textos aqui reunidos abordam diferentes geografias, reenquadram temas e personagens europeus e norte-americanos no contexto da América Latina ao mesmo tempo em que discutem os efeitos da passagem de artistas latino-americanos pelos centros hegemônicos de poder. A partir de diferentes perspectivas, propõem-se a novas leituras sobre a circulação e mobilidade de artistas e agentes culturais e sobre suas experiências criativas e comerciais no exílio.
Torna-se claro que as próprias práticas artísticas locais bem como o contexto político e de imigração intervêm no acolhimento de obras de arte, movimentos e mesmo leituras historiográficas sobre o passado. Desses cruzamentos ou confrontos podem, então, resultar tensões e divergências que longe de serem prejudiciais propiciam a possibilidade de se escreverem diversas histórias e não apenas uma versão única, nacional ou hegemônica das práticas artísticas a nível global.
As tensões entre um centro que dita normas estéticas e de atuação plástica/política e as suas ramificações heterodoxas podem levar à criação de uma categoria específica de “exilados artísticos”, como aconteceu no caso do Situacionismo, aqui tratado. Este dossiê aponta também para as diferentes experiências de exílio que promovem o reforço de ligações artísticas e culturais anteriormente estabelecidas e, inclusivamente, a constituição uma “segunda vida” para a obra ou seu autor. Deste modo, rotas artísticas alternativas se estabelecem, do Chile para a Bulgária, de França para Portugal, de Itália para a Argentina ou para o Brasil, da Europa germanófila para o Uruguai, dependendo da trajetória pessoal de artistas, historiadores de arte ou curadores.
A ideia de uma circulação mais fluída que permite estabelecer laços com os meios artísticos e culturais de destino é reforçada se atentarmos precisamente nas histórias individuais, que indicam contactos pré-estabelecidos e redes de sociabilidade. Por outro lado, delimitações narrativas sobre a “Escola de Londres” ou o “Nouveau Réalisme” ou da arte comprometida da Europa a leste da cortina de ferro, tornam-se mais frágeis quando confrontadas com o trabalho de artistas vindos das chamadas “periferias” da Europa ou do continente americano, que introduzem novas questões estéticas e políticas e novas coordenadas culturais e, consequentemente, produzem olhares críticos sobre os cânones estéticos estabelecidos ou oficializados.
Outro elemento importante que o estudo do percurso pessoal revela é a transferência dessa mesma fluidez para o trabalho em contexto de exílio, que aproxima as diferentes geografias e conjuga processos culturais e artísticos e metodologias historiográficas. Termos como “biculturalismo”, “contaminação”, “hibridismo”, “cruzamento”, “troca” podem explicitar os efeitos do encontro entre o contexto de partida e de chegada e definir um circuito de transferência com duplo sentido.
O dossiê abre com a contribuição de Joana Baião e Leonor de Oliveira sobre a migração dos artistas portugueses Paula Rego, João Cutileiro, Bartolomeu Cid dos Santos, Lourdes Castro e RenéBertholo para Londres e Paris no imediato pós Segunda Guerra. O artigo analisa a participação desses artistas na formulação de uma nova corrente estética, a nova-figuração, debruçando-se sobre o caráter contemporâneo de seus trabalhos, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista da nova cultura de massas e de consumo. Aborda, em especial, a recepção pela crítica portuguesa da obra desse conjunto de artistas e aponta sua tentativa de “nacionalização” da nova-figuração.
Na sequência, a análise se volta para o período de exílio de um artista brasileiro em Portugal, nos anos finais da Segunda Guerra (1942-1945). Angela Grando analisa as transformações que se operaram na obra do pernambucano Cícero Dias, tendo como fio condutor as exposições em que participou e as mostras individuais que organizou em Lisboa e Porto, e a recepção de seu trabalho pela crítica portuguesa, no período em que residiu no país, após ter sido obrigado a deixar a França por ter se tornado prisioneiro dos alemães. A seu ver, trata-se de um período fértil em emoções e descobertas, já que o artista brasileiro tem um convívio amigável com um crescente grupo de artistas e escritores atuantes em Portugal e sua pintura ganha novas configurações formais que o conduzirão, quando de seu regresso a Paris, em 1945, a afirmar sua vocação para a pintura abstrata.
Os artigos de Katarzyna Cytlak e David A. J. Murrieta Flores também nos levam a refletir sobre a relação entre arte e política e sobre o compromisso social de artistas e grupos artísticos, modelados na tentativa vanguardista de transformar o mundo, abordando exemplos concretos dos anos 1960/70. A partir do estudo de caso do artista chileno Guilhermo Deisler, que se radica na Bulgária após o golpe de Estado de Pinochet, em 1973, mas que se mostra igualmente descontente com as ditaduras de esquerda, Cytlak discute o papel da arte conceitual como ato de rebeldia e resistência. Flores, por sua vez, compara as propostas da Internacional Situacionista, com o discurso mais radical do grupo de dissidentes organizado em torno da revista The Situationist Times, por Jacqueline de Jong. Para tanto, toma como ponto de partida a diferença entre “movimento” e “organização”, que configura, a seu ver, as maneiras pelas quais artistas e escritores de diferentes países participaram de cada um.
Já Maria Frick oferece ao leitor um panorama da assimilação do ideário expressionista europeu no Uruguai da primeira metade do século XX a partir da entrada e circulação no país de artistas imigrantes e refugiados. Em sua opinião, a assimilação não se deu em uma única direção, já que à medida que os artistas migrantes procuravam se adaptar à realidade local, seu trabalho também se transformava em contato com a produção ali realizada. Assim, no lugar de entender o processo de assimilação como um fenômeno de empobrecimento cultural, ela o percebe como um fator único e novo.
Os quatro artigos seguintes debatem as atuações de determinados agentes culturais fora de seus locais de origem e/ou analisam os efeitos de suas correspondências nas ideias sobre arte. Os nomes de Bernard Berenson e de Margherita Sarfatti aparecem em três dos quatro textos. Enquanto Fernanda Marinho sublinha a importância das conexões teóricas entre Berenson e Lionello Venturi, em especial seu interesse em rever a forma renascentista a partir das lentes da arte moderna, Ana Gonçalves Magalhães analisa a relação entre Berenson e a crítica de arte italiana Margherita Sarfatti e as ações desta última junto ao meio artístico portenho empenhado na promoção da arte moderna e da história da arte como disciplina acadêmica na região. Em ambos os casos, as autoras tomam as cartas trocadas entre os personagens estudados como fontes documentais de suma importância para entender o desenvolvimento de suas ideias no campo da arte, inserindo este debate no contexto política fascista e das dificuldades impostas pelo pós-guerra. Em estreito diálogo com o artigo de Ana Magalhães, Laura Cecchini nos apresenta uma fina análise da exposição Novecento em 1930 em Buenos Aires, organizada por Sarfatti, discutindo as intenções curatoriais que presidiram sua realização e destacando o impacto de projetos transnacionais na redefinição de geografias artísticas, bem como os interesses políticos em jogo neste projeto.
O dossiê finaliza com uma contribuição de Paolo Rusconi sobre o legado de Pietro Maria Bardi para o Brasil e para a Itália, focando-se, em especial na criativa colônia de artistas e arquitetos italianos que gravitaram em torno de Bardi e que, assim como ele, interagiram com a riqueza criativa e cultural de um país continental como o Brasil.
Este dossiê descentraliza, por isso, as histórias de migração artística e exílio, multiplicando destinos, rotas e atores, e projetando, assim, uma imagem complexa e global dos diálogos artísticos e práticas criativas. Novas relações e informações são estabelecidas e desenvolvidas, as quais, acreditamos, auxiliarão no aprofundamento do entendimento das relações criativas no continente europeu e americano e entre a Europa e a América Latina. Já não se trata de identificar territórios de criação e territórios de recepção, mas de afirmar a existência de um espaço dinâmico em que práticas e movimentos artísticos são discutidos criticamente e transformados em paralelo com interesses políticos e resistências locais contra a imposição de projetos político-culturais hegemônicos.
Organizadores
Leonor de Oliveira – Investigadora integrada do Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa. A sua investigação de pós-doutoramento centra-se no contexto de migração de artistas portugueses para Londres no pós-guerra e está a ser também desenvolvida no Courtauld Institute of Art, Londres. Publicou recentemente a monografia Portuguese Artists in London: Shaping Identities in Post- War Europe, editada pela Routledge. E-mail: leonor.oliveira@fcsh.unl.pt. ORCID: https: //orcid.org/0000-0001-7125-8875
Maria de Fátima Morethy Couto – Professora Livre-Docente do Instituto de Artes da Unicamp. Em seu estágio de pós-doutorado, realizado no Centro de Pesquisa TrAIN da University of the Arts (Londres), com bolsa da FAPESP, e no INHA (Paris) analisou a passagem de artistas ligados à arte construtiva/cinética oriundos da América do Sul, em Londres e Paris, durante as décadas de 1950/70. Já publicou diversos artigos referentes a este tema. E-mail: mfmcouto@unicamp.br . ORCID: ˂ https://orcid.org/0000-0003- 0561-6616
Referências desta apresentação
OLIVEIRA, Leonor de; COUTO, Maria de Fátima Morethy. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 4, n.1, p.86-90, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]
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