Intérpretes do Brasil e leituras críticas | Escrita da História | 2015
Os autores não escrevem livros: não,
escrevem textos que outros transformam em
objetos impressos (Roger Chartier).
Longe de defender o eterno retorno aos estudos que se debruçaram sobre os aspectos e fundamentos históricos da sociedade constituída na interseção do Velho Mundo com a África e o Atlântico Sul, o Dossiê que ora se apresenta como integrante do terceiro número da Revista Escrita da História (REH) havia proposto a reunião de artigos cujas perspectivas adotassem um viés crítico sobre os textos e autores apontados como clássicos pela historiografia, no sentido de melhor situá-los em seus respectivos tempos; e que fossem além dos limites da tríade consagrada nos anos 1960 por Antonio Candido – a saber, Gilberto Freyre, de Casa-grande & senzala (1933); Sérgio Buarque de Holanda, de Raízes do Brasil (1936); e Caio Prado Júnior, de Formação do Brasil contemporâneo (1942) –, sem, contudo, necessariamente relegá-los ao escanteio das discussões, pois isso também seria um equívoco.
Para fomentar um debate desta natureza, a chamada em apreço também não buscava constituir outro panteão das letras nacionais, como tem sido feito – é preciso dizer – por certa História Intelectual stricto senso, que tem se mantido fadada a lançar visões turvas sobre as realidades pretéritas, pois se encerra de forma exclusiva no interior das obras e, por isso mesmo, muitas vezes incorre no erro de curto-circuito, conforme expressão de Pierre Bourdieu.
Logo, o que se pretendia levar a efeito era uma reflexão simultaneamente atenta aos escritos e suas autorias, bem como aos diálogos nos quais um e outro se inseriram e, sobretudo, às condições socioculturais e políticas da produção de pensamentos e textos. Daí a convergência indissociável dos termos Intérpretes do Brasil e Leituras Críticas que emprestam nome ao Dossiê. E qual não foi nossa alegria ao longo dos processos avaliativos e, a bem da realidade, ao término da edição deste número do periódico, quando podemos oferecer aos nossos leitores mais uma publicação de qualidade, considerando os trabalhos que a compõem e dando sequência ao gabarito das anteriores, pois contamos com estudos de doutores e pós-graduandos literalmente de norte a sul do país e com pesquisas que, afora os artigos destinados ao Dossiê, abrangem variados temas.
Para dar início aos debates, o instigante texto de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), analisa aquela que é considerada a obra magna do erudito potiguar Luís da Câmara Cascudo, ou seja, o Dicionário do Folclore Brasileiro, publicado em 1954. O argumento central da reflexão consiste em apontar o referido impresso como o meio encontrado por Cascudo para consubstanciar sua forma de ser e entender o país, de reunir os saberes acumulados e dignos de se verbetar – porque o gênero em destaque é uma espécie de livro-arquivo no qual reina o ímpeto colecionista e classificatório que fixa sentidos e estabiliza formas –, de modo a igualmente personificar seu autor e tornar possível a ideia, sempre viva na trajetória deste erudito católico, conforme dizeres de Albuquerque Júnior, de figurar como extensão de seu corpo, incólume da impiedosa voragem do tempo.
Na sequência, Marcus Vinicius Corrêa Carvalho, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), nos presenteia com a atualidade de suas pesquisas sobre o já citado Sérgio Buarque, num momento em que, em meio ao novo fluxo de estudos animado em torno deste cânone da historiografia – bem ou mal problematizados, mais ou menos imersos em densas investigações arquivísticas –, faz-se urgente atentar, como cuida Carvalho, aos debates contemporâneos às vivências do paulista. Desta maneira, demonstra com propriedade a discussão em curso quando do lançamento de Raízes do Brasil (1936) – sobre a objetividade na escrita da História ou nos estudos de caráter sociológico – e do real entusiasmo flamejado, à época, devido mais à coleção inaugurada pelo livro do que em virtude do impresso em si, bem distante, portanto, de hodiernas análises que naturalizam o status de clássico conferido à obra.
A edição segue com Nayara Galeno do Vale, doutoranda em História pela UFF, cujas páginas se dedicam a analisar uma polêmica entre o político e historiador baiano, Pedro Calmon, e o escritor paraibano, José Lins do Rego, sobre o gênero musical do Samba – ou, mais precisamente, o Batuque, conforme o termo usado pelo primeiro –, que ganhou as páginas dos jornais em fins de 1930. Calmon, na posição de ataque ao ritmo e à forma como era apresentado no exterior, argumentando não se tratar de um estilo exclusivo do Brasil ou representativo de sua cultura, posto que mais pertencente à África; e Lins do Rego a acusar este de querer acabar com o Samba e de evitar que o país fosse representado por uma música ecoada das senzalas porque o intelectual que o fazia adivinha da decadente aristocracia brasileira. Porém, ao evitar generalizações apressadas e as dissonâncias preliminares das fontes, Vale investiga a contenda com equilíbrio.
Para finalizar o Dossiê, Mauro Franco Neto, mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), nos traz um excelente artigo sobre o diálogo das interpretações do médico maranhense, Nina Rodrigues, e do jornalista fluminense, Euclides da Cunha, acerca de Antônio Conselheiro, o sertanejo e os episódios da Guerra de Canudos (1896-1897). Logo, ao rebater os principais comentadores dos textos de autores que tinham se dedicado a discutir e noticiar o conflito no Arraial baiano, aponta a necessidade de se observar para além da simples recepção passiva das teorias europeias que, em tese, teriam conformado os escritos das personagens em apreço. Neste sentido, mostra que, a despeito das aproximações, enquanto Rodrigues via na mestiçagem e no que entendia por desenvolvimento cognitivo incompleto do homem do Sertão a chave para compreender o episódio bélico, Cunha se encaminhava mais para denunciar o evento como um dos primeiros crimes da República.
Na segunda parte deste terceiro número da REH, a Seção Livre, contamos com cinco artigos. O primeiro deles, de Jeocasta Oliveira Martins, mestranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresenta um pouco sobre as tentativas de catequese dos portugueses sobre povos da região da Guiné, entre os séculos XVI e XVII, e acerca da preocupação dos colonizadores em registrar as práticas religiosas encontradas. Já Gabriel de Azevedo Maraschin, mestrando em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), explora o pensamento dos saquaremas –grupo político considerado conservador – durante o Brasil Imperial, por meio das ações destes para a realização de obras públicas nos anos quarenta do oitocentos.
Adentrando o século XX, em seu início, Kleber Barbosa de Moura, mestre em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), por sua vez, deixa a cena da chamada grande política para dar visibilidade aos caixeiros de Manaus que tinham suas reivindicações editadas na imprensa de trabalhadores. Ato contínuo, avançando cronologicamente nas primeiras décadas republicanas, os autores Giovani Balbinot e João Carlos Tedesco, respectivamente, doutorando em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e professor da instituição gaúcha aludida, avaliam os nexos entre educação e sistema coronelista no território de colonização italiana do Rio Grande do Sul, para localizar historicamente os mecanismos da perpetuação do governo borgista. Por fim, tão importante quanto os precedentes, há o estudo de Reginaldo Simões Mendonça, mestrando em História da já referida UFAM, que investiga a propaganda da imprensa amazonense, em particular a Revista Sintonia, bem como o grupo de seus colaboradores, em prol do erguimento de uma imagem positiva de Getúlio Vargas e do controle dos opositores ao projeto de governo estado-novista.
Assim, convém salientar ao término de mais essa jornada editorial que, se já estava bem entendido o pressuposto teórico segundo o qual os autores não escrevem sequer os seus livros – para retomar a reflexão original e indispensável de Roger Chartier –, outra assertiva se sobressai deste terceiro número da REH e, em especial, do Dossiê Intérpretes do Brasil e Leituras Críticas com a mesma força definitiva: não escrevem seus livros, tampouco têm suas economias de leituras, diálogos intelectuais e materialização de pensamentos apartados das esferas que, em cada configuração dos mundos que os cercam, moldam, rompem e negociam com aquilo que são, buscam ser e legam à posteridade em forma de conhecimento.
Organizador
André Furtado
Referências desta apresentação
FURTADO, André. Apresentação. Escrita da História, v.2, n.3, p.10-13, abr./ago. 2015. Acessar publicação original [DR]