Apesar da acepção da palavra intelectual ser relativamente recente na história mundial, ter surgido após meados do século XIX na Rússia, e cerca de cinquenta anos mais tarde aparecer na França com o termo intellectuelles, a existência de sujeitos que discutem ideias ou analisam criticamente a sociedade ultrapassa a época contemporânea e se estende por vários séculos.
Como afirmou Bobbio (1997), ainda que anteriormente tenham sido denominados sábios, filósofos, homens de letras, doutos ou literatos, os objetos por eles debatidos sempre existiram; por isso, a problemática dos intelectuais, e suas relações / atuações na sociedade, se trata de um tema antigo e perene. Utilizando-se ainda desse autor poderíamos defini-los de uma forma geral como “sujeitos a quem se atribui de fato ou de direito a tarefa específica de elaborar e transmitir conhecimentos, teorias, doutrinas, ideologias, concepções do mundo ou simples opiniões, que acabam por constituir as ideias ou os sistemas de ideias de uma determinada época e de uma determinada sociedade.” (BOBBIO, 1997: 110)
Os intelectuais, no entanto, não constituem um grupo ou setor social autônomo: sua intervenção não ocorre fora das relações de classe e não pode assumir sua dimensão mais profunda, separada de seu caráter social. Em outras palavras, a função intelectual, que pode ser técnica, política ou moral, só pode ser explicada através de coordenadas históricas e sociais. (GRAMSCI, 2000).
O dossiê que por ora apresentamos tem por objetivo reunir artigos que perpassassem pela temática das revoluções na América Latina e na África, a partir de uma perspectiva global. Buscamos congregar estudos que discutissem o papel dos intelectuais nos processos revolucionários, com destaque para as ideias, propostas e projetos cogitados por esses atores sociais no contexto dos movimentos de independência, nos séculos XIX e XX. Incentivamos o recebimento de estudos que procurassem elucidar a natureza social dos intelectuais, mostrando a sua participação política, com ênfase para os seus possíveis vínculos com as classes sociais, corporações, partidos e Estados, superando uma visão que supõe um comprometimento entre a produção teórica e seus condicionantes materiais. Contemplamos ainda artigos que abordassem as ações efetuadas por esses intelectuais durante a construção dos seus estados no pós-independência, e durante os processos revolucionários do século XX, os que, a partir de numerosas perspectivas teóricas, representam uma continuidade com aquelas desenvolvidas nas primeiras décadas do século XIX.
O resultado da chamada inicial foi a reunião neste dossiê de doze artigos que contemplam os séculos XIX e XX, com debates que se situam no espaço da América, Europa e África, congregando pesquisadores brasileiros, argentinos, canadenses, mexicanos e espanhóis. De uma forma geral, os textos trazem em comum o papel dos intelectuais em um mundo em transição e marcado por revoluções – seja como instrumentos nos processos de transformação capazes de influenciar ou alterar as estruturas, no momento das independências dos seus respectivos países, ou, durante os processos de crise dessas mesmas experiências coloniais.
Neste sentido, a revolução é compreendida como um ponto de partida para a construção de uma nova realidade (PASQUINO, 1997), a partir da crise de uma estrutura social que habilita a possibilidade de uma transformação das relações sociais de produção. (DAVIDSON, 2013) A ruptura com o passado e a crença de que se é admissível arquitetar algo novo, de certo modo esteve presente nos processos revolucionários que marcaram os séculos XIX e XX, ainda que muitos desses processos tenham tido traços conservadores.
Numa primeira parte do dossiê reunimos artigos com temas que transitam entre o período das independências luso-hispano-americanas. Hilton Meliande de Oliveira analisa de forma comparada a relevância do Rio de Janeiro e do Cabildo de Buenos Aires para os processos de emancipação política, procurando refletir sobre as opções que levaram os seus respectivos países a seguirem caminhos distintos – monarquia e república – mas que apesar disso, se aproximavam na legitimação da manutenção das elites sócio-políticas anteriormente existentes. O autor destaca ainda os papeis exercidos por José Bonifácio e Mariano Moreno, como lideranças intelectuais que estiveram à frente dos processos de autonomia dos seus respectivos países.
María Agustina Vaccaroni examina os comissários de polícia de Buenos Aires, desde a sua instalação em 1812 até o ano de 1825. A autora percebe esse grupo enquanto intelectuais responsáveis pelo controle e vigilância da cidade. Em sua prática, exerciam atividades que iam além do cumprimento de ordens, participavam como produtores de disposições, regulamentos e relatórios que conjuntamente formavam a institucionalidade do órgão.
Karen Racine, por sua vez, analisa o espanhol Francisco Xavier Mina, personagem que pode ser visto como um reflexo das transições ocorridas em todo o mundo atlântico durante a Era das Revoluções. Mina passou boa parte de sua vida em campos de batalha na Espanha e no México, atuando como uma liderança que visava abrir caminhos para a construção de novas sociedades. Defensor de ideias liberais levou-as para regiões rurais de Navarra e do Bajío novo hispânico, conseguindo influenciar e transformar de certa forma o modo como as pessoas se comportavam politicamente nessas localidades.
O Bajío novo hispânico também é o tema que perpassa o artigo de José Luis Caño Ortigosa e de José Luis Lara Valdés. Os autores analisam a construção intelectual da paisagem, o processo por meio da qual a paisagem da região da Intendencia Maior de Guanajuato foi transformada pela ação humana, num momento marcado por importantes transformações históricas, tal seja: antes do Grito de Dolores de 1810.
Realizadas as independências, uma nova questão que vem à tona é relativa à construção dos Estados. No caso específico brasileiro, a construção do Estado nacional foi um processo iniciado após 1822, porém só concluído por volta de 1850. Entretanto, nessa data ainda não se podia afirmar que o Brasil já se havia constituído como uma nação: não existia uma identidade que congregasse as diferentes partes do império brasileiro com um sentimento nacional. Ainda que as classes dominantes tenham realizados alguns esforços nesse sentido não foram suficientes.
O debate sobre a construção da nação perpassou o Império e se fez presente com mais força durante os anos iniciais do período republicano. Após o declínio da monarquia, e a ascensão da República, sem uma participação popular, em 1889, o problema nacional retomou a pauta da discussão da intelectualidade brasileira. Mais uma vez, tornava-se importante refletir sobre quem era essa nação (CARVALHO, 1998: 249). Tal tema é abordado na segunda parte deste dossiê, com artigos que discutem visões construídas por diferentes intelectuais sobre o que seria a nação brasileira, seus principais aspectos e elementos definidores.
Um desses elementos é analisado por Ricardo Alexandre Santos de Sousa, que investiga o sertão como um espaço de representação da nacionalidade, a partir de aproximações entre dois intelectuais – Theodoro de Sampaio e Euclides da Cunha – e como suas obras foram influenciadas pelas discussões do pensador alemão Friedrich Ratzel, de que o meio influencia o homem. A geração de ambos os personagens foi marcada por um evento específico sucedido no interior do Brasil – a guerra de Canudos (1896-1897) – que evidenciou o sertanejo e o sertão nordestino como ponto importante para a questão nacional.
Janine Justen e Maurício Izelli Doré destacam em seu artigo o papel das revistas ilustradas na construção da identidade nacional. Para os autores, a afirmação dessa identidade perpassava por disputas políticas e de poder de agentes inseridos nesse processo. A influência portuguesa nos caricaturistas brasileiros permite aos autores concluir que a identidade nacional nesse momento ainda era marcada por traços externos.
O ano de 1922, que marcou a data do primeiro centenário da Independência do Brasil, pôde ser visto como um momento importante para uma reflexão sobre as origens da nação. Isso porque permitiu que determinados acontecimentos ganhassem novas interpretações historiográficas, sendo exaltados ou minimizados de acordo com os discursos políticos ou culturais em voga. Esse tema é analisado no artigo de Patrícia Valim, que examina como a historiografia ligada ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia enalteceu a Conjuração Baiana de 1798, percebendo-a como um passo fundamental em direção à Independência do Brasil em 1822. Analisando as obras escritas por Francisco Borges de Barros e Braz do Amaral durante a primeira República, a autora demonstra como ambos os autores construíram uma narrativa que visava valorizar a relevância das elites baianas na fundação da nação brasileira.
Iara Andrade Senra analisa Sérgio Buarque de Holanda, um dos principais intelectuais da história do Brasil, possuidor de uma obra clássica que debateu a formação da nacionalidade brasileira nos anos 1930. A autora discute as possíveis contribuições do pensamento do escritor peruano Francisco García Calderón Rey na obra Raízes do Brasil.
A última parte deste dossiê contempla artigos dedicados à militância socialista que, no calor da crise da sociedade burguesa numa escala global, se organizou para impulsionar uma transformação revolucionária que transcendessem os limites do capitalismo.
Pablo de Oliveira de Mattos analisa a atuação do caribenho George Padmore na revolução de independência da Costa do Ouro em 1957 e de outros países africanos. Esse intelectual pan-africano, visto como herói silencioso do processo anticolonial do continente, teve grande ingerência sobre Kwame Nkrumah, futuro líder da Gana.
Matias Rubio, por sua vez, examina a trajetória política e intelectual do economista argentino Horacio Ciafardini, importante membro do Partido Comunista Revolucionário. O autor descreve os principais aspectos da trajetória e produção intelectual do personagem, evidenciando os aspectos biográficos.
José Barraza, da mesma forma, analisa a vida e obra de Gregorio “Goyo” Flores, destacando sua trajetória individual, mas também percebendo-o como representante da classe trabalhadora de Córdoba e Argentina. O autor examina a atuação de Flores como militante do “Partido Revolucionario de los Trabajadores” (PRT) entre os anos de 1972-1976.
Finalmente, Stella Grenat, apresenta um estado da questão sobre a Conferencia Tricontinental e a Organización Latinoamericana de la Solidaridad (OLAS), realizadas em Havana nos anos de 1966 e 1967. A autora percebe ambas as organizações como intelectuais coletivos, que tiveram por objetivo impulsionar um programa e uma estratégia revolucionária de alcance internacional, concluindo com a necessidade de promover uma investigação inédita sobre o tema.
Referências
BOBBIO, Norberto. (1997) Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Unesp.
CARVALHO, José Murilo de (1998). Brasil: nações imaginadas. In: Pontos e bordados. Escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2ª reimpressão.
DAVIDSON, Neil (2013) Transformar el mundo. Revoluciones burguesas y revolución social. Barcelona: Ediciones Pasado y Presente.
GRAMSCI, Antonio. (2000) Los intelectuales y la organización de la cultura. Buenos Aires: Nueva Visión.
MARLETTI, Carlo. (1997). Intelectuais. In.: BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB. 12ª edição.
PASQUINO, Gianfranco. (1997). Revolução. In.: BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB. 12ª edição.
Apresentadoras
Marieta Pinheiro Carvalho (Universidade Salgado de Oliveira)
Mariano Martín Schlez (Departamento de Humanidades, Universidad Nacional del Sur / CONICET)
Julho de 2020
Referências desta apresentação
CARVALHO, Marieta Pinheiro; SCHLEZ, Mariano Martín. Apresentação. Intellèctus. Rio de Janeiro, v.19, n.1, 2020. Acessar publicação original [DR]
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