A participação de letrados e intelectuais na vida política da Ibero-América tem se intensificado desde o início da denominada “era moderna”. Na península ibérica os intelectuais precisaram se deparar com os contrastes provenientes de uma nova ordenação do mundo que a pouco e pouco substituía a ordem vigente por uma outra caracterizada pelo advento e fixação de valores como: individualismo, laicismo, mercado, parlamentarismo e economia industrial. A pouco e pouco o mundo existente foi sendo reordenado em direção ao que Weber denominou o progressivo desencanto do mundo. Na Ibero-América o processo de ruptura do estatuto colonial levou os letrados a se debruçarem sobre os formatos políticos e culturais dos novos países que se formavam, herdeiros da cultura barroca característica da Península Ibérica. Engenharia política, economia, atraso, decadência, progresso, identidade foram temas que se tornaram constante na reflexão dos intelectuais ibero-americanos ao longo dos séculos XIX e XX. Já na Península Ibérica temas como atraso, progresso, decadência, aliados a questões de natureza política, como forma de governo, fizeram com que intelectuais portugueses e espanhóis produzissem análises indicando caminhos para mudanças mais ou menos radicais.
Os artigos que compõe este dossiê se debruçam sobre alguns desses intelectuais bem como sobre as reflexões que realizaram acerca de um ou mais temas pertinentes à política, sociedade e cultura no mundo ibero-americano tão diferenciado do mundo anglo saxão. Mas, que com ele precisava conviver e por vezes buscar caminhos para implantar parte de seus valores bem distantes dos vigentes na Ibero-América onde vigorava um ethos tradicional nos domínios da política e da economia e onde a cultura se expressava em cores próprias do barroco e no qual a sociedade vivia ainda ligada ao um mundo repleto de encantamentos.
O primeiro dos artigos de Beatriz Domingues procura “analisar, cronologicamente, algumas formulações do historiador norte-americano Richard Morse (1922-2001) sobre a problemática das cidades na América Latina e Brasil, focando em ensaios nos quais as cidades são entendidas como pessoas e / ou como representantes da influência tomista na região”. Dialogando com outros historiadores que analisaram o tema da cidade Morse procurou como afirmou Beatriz “compreender a cidade medieval para entender os desdobramentos das cidades europeias na América. Mas ele não pula simplesmente de uma para outra: entre elas está a cidade renascentista na Europa, que agrupa em dois modelos: as da Europa do Norte e as da Ibéria. Elas seriam como que duas formas de “devoração” da tradição antiga e medieval que foram trazidas, respectivamente, para a América do Norte e para a América espanhola”. O texto ao analisar os escritos de Richard Morse sobre a cidade na Ibero-América permite que possamos vislumbrar uma parte importante dos impasses desse mundo ibérico frente aquele construído pelos valores anglo-saxões.
Das análises de Morse sobre a cidade adentramos no segundo artigo de autoria de Jorge Pais de Sousa às propostas de Afonso Costa no sentido de conduzir a laicização do Estado e da Sociedade no período de sua ação governativa na Primeira República portuguesa. Ao longo do texto o autor introduz e analisa as mudanças implantadas por Afonso Costa no sentido de tornar o Estado português mais condizente com os princípios modernos que então orientavam os Estados Nacionais. Do registro civil obrigatório a lei da separação do Estado e Igreja à criação do Ministério da Instrução Pública. Ao longo do texto Jorge Pais procurou “analisar a programática política e doutrinária que está subjacente ao teor destes diplomas” de modo a proceder ao que denominou uma “ espécie de desconstrução historiográfica desta legislação, com vista a identificar os fundamentos políticos e doutrinários que lhe estão subjacentes, numa ótica da relação dos intelectuais com o exercício do poder”.
O texto seguinte trata de um tempo histórico bem anterior aos dois precedentes artigos e busca discutir questões pertencentes à Portugal e a América Portuguesa. De autoria de Karla Silva o artigo apresenta, através dos escritos de João Rodrigues de Brito, a emergência de novas ideias no “cenário intelectual do universo ibero-americano em fins do século XVIII e início do XIX” e como “esses escritos revelam a percepção de que os problemas e obstáculos enfrentados pela economia colonial tinham origem na excessiva intervenção do aparelho administrativo português”. Ao longo do texto a autora procura discorrer sobre o significado das “novas ideias” que procuravam dar conta de discutir se os problemas enfrentados pela economia colonial teriam sua origem “na excessiva intervenção do aparelho administrativo português” Ao longo do artigo Karla Silva analisou o ambiente intelectual luso -brasileiro com a finalidade demonstrar a presença de uma articulação constante entre os quadros políticos e intelectuais de Portugal e Brasil no tocante às “mudanças do pensamento e das práticas, criando também do lado de cá do Atlântico uma base intelectual filiada às novas ideias”.
Retornando mais explicitamente ao terreno da cultura o texto de Karina Vasquez Aires, redigido em espanhol, mas que discute a participação e o projeto de Mário de Andrade na revista Klaxón. Ao analisar a participação de Mario de Andrade na revista que se constituiu no “primer emprendimiento editorial propio de un grupo que venía formándose desde 1917 y mostraba aspiraciones fuertes de intervención en la esfera cultural brasileña”, Karina Vasquez procura discutir como através de sua participação na revista Klaxón, Mario de Andrade “se construyó a sí mismo en la figura del crítico, al mismo tiempo que contribuyó significativamente a moldear los rasgos característicos de este proyecto editorial”. Ao mesmo tempo o texto permite a discussão de como se construiu o grupo intelectual que gravitou na Semana de Arte Moderna de 1922 e em particular o modo como Mario de Andrade se construiu no interior deste movimento. No dizer de Karina Vasquez “En un ambiente marcado por la hegemonía cultural de las instituciones y los circuitos bohemios de Río de Janeiro, Mário tratará de consolidar al grupo paulista para insertar su disidencia en esa tradición. Construye así, aceleradamente, su propia reputación defendiendo la de Klaxon (…) Esta figura se inscribe, se produce y se reinventa a sí misma en el contexto de un grupo de amigos, es decir, de una red de sociabilidad en la que entran en juego tanto la expresión de valores comunes como las relaciones afectivas”.
O texto de Norma Côrtes “Desrazão & ludicidade em Nelson Rodrigues, Campos de Carvalho e Guimarães Rosa” dedica-se a análise de algumas facetas das obras de cada um dos literatos e através delas buscou identificar como cada autor se dedicou à pavimentação de uma “nova sensibilidade estética caracterizada por fortes acentos lúdico-humorísticos” onde o mundo ficcional aparecia em “estado de pura desordem”. Através da análise de obras de cada um dos autores que abordavam temáticas bastante diferenciadas, mas com semelhanças formais, Norma procurou compreender como esses autores procuraram romper “com padrões racionalistas da verossimilhança realista — o que envolve o estabelecimento de novo acordo societal acerca do estatuto da arte e revela os termos constituintes do “regime de prazeres” vigente na sociedade brasileira dos anos 1960”.
O artigo de Paulo Archer de Carvalho “ Nacionalismo e Literatura em Portugal” procura discutir como o Estado Novo em Portugal não conseguiu criar um “ cânone de “nacionalismo literário” seja quando elaborou o projeto para constituição de uma “política do espírito” ou no momento em que nas palavras do autor “quando tentou nacionalizar e converter em ortodoxia a mitopoética heterodoxa de Pessoa em Mensagem”. Ao longo do texto Paulo Archer fará uma análise do cenário intelectual que se construiu no período anterior ao Estado Novo e nos seus primeiros anos e em sua tentativa de colocar a literatura ao dispor dos interesses políticos a despeito da dificuldade presente num projeto desta natureza.
Regina Crespo nos apresenta em “o projeto educativo de José Vasconcelos no México pós-revolucionário: nacionalismo e modernidade” a plataforma educacional implantada no México por Vasconcelos que de outubro de 1921 a julho de 1924 ocupou o cargo de Ministro da Educação do governo do general Álvaro Obregón. O projeto de Vasconcelos envolveu “campanhas de alfabetização, edição e distribuição de livros, construção de bibliotecas e incentivo às artes”. Ao longo do texto Regina possibilita o conhecimento deste projeto ao mesmo tempo em que analisa, em especial a proposta de “educação indígena e rural, a fim de observar se e como contribuiu para, como pretendia Vasconcelos, construir um nacionalismo autoafirmativo e transformar o México num país moderno”.
O último texto deste dossiê retorna com temas ligados ao Brasil. A autora Vera Caixeta apresenta e analisa ao longo do artigo as ideias contidas no relatório elaborado pelos médicos Arthur Neiva e Belisário Penna em 1912, acerca da possibilidade de se viabilizar a integração nacional mediante saneamento do sertão. Este relatório, como adverte a autora foi elaborado a partir da viagem científica realizada pelos dois médicos pertencentes ao quadro do Instituto Oswaldo Cruz. No relatório o saneamento era apresentado como sendo a “chave para a integração nacional, a qual retiraria o sertanejo do abandono, do atraso, da fome, do analfabetismo e da doença a que estavam relegados”. Acreditamos que o conjunto dos artigos vão preencher parte significativa das questões que norteiam este dossiê, possibilitando aos leitores uma agradável viagem pela história intelectual e dos intelectuais no mundo ibero-americano.
Apresentadores
Maria Emilia Prado (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Jorge Pais de Sousa (Universidade de Coimbra)
Dezembro de 2016
Referências desta apresentação
PRADO, Maria Emilia; SOUSA, Jorge Pais de. Apresentação. Intellèctus. Rio de Janeiro, v.15, n.2, 2016. Acessar publicação original [DR]
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