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Intelectuais e educação na América Latina / Intellèctus / 2015

A melhor astúcia do demônio é nos persuadir que ele não existe.

Charles Baudelaire

Por vezes, recebemos em nossa trajetória de vida presentes. Presentes que na vida acadêmica estão cada vez mais raros. Alguns deles alegram nossas almas, revigoram nossas esperanças, potencializam o nosso caminhar pessoal e profissional e, porque não, sensível. Este presente, o qual muito nos alegrou, nos foi ofertado pela professora Maria Emilia Prado, líder do Grpesq / CNPq Intelectuais e Poder no Mundo Ibero-Americano: coordenar o dossiê “ Intelectuais e Educação na América Latina”.

Chartier nos alertará que a escrita de um livro possui a intencionalidade de quem o escreve, produz efeitos para quem o livro é escrito – seus possíveis leitores -, sua circulação, e as diversas maneiras como é apropriado, muitas vezes, produzem outras intencionalidades dentre as quais a do autor é mais uma. “Cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado, aos textos de que se apropriar” (2002: 20).

O coordenador de um dossiê de artigos é atravessado por múltiplos aspectos: é um autor, um leitor, um crítico da intencionalidade dos autores dos artigos que compõem o mesmo. Foi como um signo de esperança e alegria que lemos cada um dos artigos que compõem esse número da revista Intellèctus. Não que seus autores problematizem, discutam, analisem a relação Intelectuais e Educação a partir de eixo unificador. Cada um, a sua maneira, traz flashes em movimento do lugar ocupado pelo intelectual e sua ação no campo educativo. Ora afirmam lógicas, ora enfrentam dilemas e recolhem escombros das ações dessas personagens.

Percorrendo um caminho inverso ao dos que absolutizam o lugar ocupado pelos intelectuais e quem é o intelectual, invertem a escala de observação, movimentam o binóculo e lançam olhares diferenciados na relação que esses estabelecem com a Educação. Assumem a complexidade dos problemas educacionais, enfrentam os desafios históricos, recusam o abuso das ferramentas teóricas, das estratégias raivosas e espetaculares que acabam confirmando o círculo da mesmice.

Embora não desconheçamos as astúcias e sutilezas dos demônios, os coordenadores desse dossiê insistem em não reproduzi-las. Aventurar-se não é um caminhar sem nenhum tipo de cartografia. Nesta constam nossas primeiras intenções que, servindo de guias, não servem de certezas das rotas finais de seu desenho cartográfico ou de seu bordado terminado; ao mesmo tempo sem elas o historiador estaria à deriva.

Que ensinamentos não colheríamos se – fosse o deus de ontem e hoje – conseguíssemos surpreender nos lábios dos humildes a sua verdadeira prece! Admitindo, porém, que tivessem eles próprios sabido traduzir sem mutilações os impulsos do coração. Porque é esse, em última instância, o grande obstáculo. Não há coisa mais difícil para um homem do que exprimir-se a si próprio (BLOCH, 1991: 144).

É desse modo que vamos encontrar o primeiro artigo “Intelectuais viajantes: caminhos para uma história da educação na América Latina”, de Alexandra Lima da Silva, convidando o leitor, de maneira instigante, a também “viajar” através do olhar de seis intelectuais em suas viagens latino-americanas com suas inquietações e observações em relação à instrução. Busca como recurso de escrita a visão panorâmica e interroga os intelectuais viajantes elencados no movimento de aproximação e afastamento entre os mesmos.

Andreson Carlos Elias Barbosa, Raimundo Nonato de Pádua Câncio e Sônia Maria da Silva Araújo nos trazem “A concepção educacional de José Pedro Varela (1835- 1879)”, sustentando a temática em base documental e bibliográfica robusta. Como efeito tecem argumentação firme sobre “o fundador do sistema educacional uruguaio” conferindo ao intelectual um lugar importante na luta pela educação na América Latina, já que, no século XIX, como nos apontam os autores, apresenta “uma reforma radical, cujos princípios estão pautados na obrigatoriedade, na gratuidade e na secularização do ensino”. No movimento da escrita, da sua escrita, Andreson, Raimundo e Sônia articulam as citações das quais lançam mão com suas reflexões sobre José Pedro Varela e suas ações para garantir uma educação democrática.

A seguir, Ligia Bahia de Mendonça retoma questões relevantes, pesquisadas com intensidade moderada, sobre o período de expulsão da Companhia de Jesus das terras do além-mar e seu ressurgimento na cena social. Apresenta-nos base documental ampla e instigante sobre as intervenções jesuíticas e seus intelectuais na educação brasileira. Nesse artigo, a autora traz para frente da cena histórica o padre jesuíta Raphael Galanti, intelectual e historiador, representante da Ordem de Ignácio voltado para livros didáticos que compõem um pensamento historiográfico sobre o Brasil.

Thiago Roza Ialdo Montilha revigora o lugar ocupado por Olavo Bilac no trabalho que faz parte deste dossiê ao escrever “Olavo Bilac e a questão da instrução no Brasil (1897-1908). Operando na tessitura de seu texto com base bibliográfica atualizada e problematizadora, o autor tece discussão aprofundada do tema. Apresenta um Olavo Bilac para além das lentes sob as quais o intelectual, geralmente, é discutido. Movimentando a lente do olhar o autor, de fato, traz Bilac como um intelectual no e do seu tempo vivido.

Mas é com Adjovanes Thadeu Silva de Almeida que o dossiê adentra nos corredores de poderosa instituição, ao nos fazer percorrer seus corredores com “Joaquim Manoel de Macedo e educação: um projeto de civilização nos trópicos”. Tecendo entrelace do Instituto com um de seus membros – Joaquim Manoel de Macedo – utiliza como fonte e objeto de pesquisa os escritos do próprio Manoel de Macedo, assim como recortes de documentação do IHGB. Convém, mais uma vez, reafirmar a importância desse Instituto, o acervo riquíssimo e cheio de surpresas, sempre bem-vindas, que possui. Não é tarefa fácil a escrita em “trança” e, para nós, a ousadia desse tipo de escrita, também, é sempre bem-vinda.

Maria Lucia Mendes de Carvalho nos presenteia com o artigo “Francisco Pompêo do Amaral: médico, jornalista, professor e escritor científico no campo da alimentação e da nutrição no Brasil”, trabalhando sua contribuição à Educação em perspectiva multifacetada. Utiliza os livros de Pompêo do Amaral como fonte e objeto, analisando-os em profundidade, e assim apresenta-o, ao leitor, como um intelectual de seu tempo, trazendo as contradições do mesmo. Ressaltamos que as análises feitas não caem na “armadilha” comum e rasteira de resvalar para “argumentos morais” que não contribuem para maior compreensão do repertório de então sobre as “condições sociais da população brasileira”.

Finalmente, Vinicius Cranek Gagliardo fecha esse dossiê com outros “viajantes”, assim como Alexandra Lima o abriu com os viajantes. Jornalistas viajam e suas crônicas, notícias, artigos, sátiras, críticas, são suas “bagagens”. São viajantes no sentido largo da palavra. Aqui temos “O papel pedagógico dos jornalistas no Rio de Janeiro oitocentista”. Apresentando base documental vasta, traz como fonte um conjunto de periódicos de relevância e interesse historiográfico. Aqui os jornalistas são tratados como intelectuais que interferem na vida social. Por que não tratá-los como intelectuais? Quem dá e a quem conferimos estatuto social e político de intelectual? Ao romper com os lugares tão bem marcados de “quem pode ou não pode assim ser chamado”, que produz a sempre importante reflexão sobre o poder e quem o detém, o autor e seu artigo trazem contribuições para o estudo sobre intelectuais jornalistas no espaço ibero-americano. Resgatam, também, os estudos sobre intelectuais do “ângulo morto” historiográfico, como nos aponta Sirinelli (2003).

Gostaríamos ainda de sublinhar que os coordenadores do dossiê “Intelectuais e Educação na América Latina” buscaram apartar-se de um tipo de hierarquia falante sobre intelectuais e educação. Então, não há uma “charada” ou um quebra cabeça a resolver. O que nos sugerem os textos que aqui se articulam é que a problemática da educação atravessa, objetiva e subjetivamente, seus autores, construindo-se como um “enigma”.

As suas autorias se inscrevem num espaço ameaçado, num território de perdas emudecidas, que vai se configurando como num “não lugar”. São professores, pesquisadores, cúmplices investidos na “ilusão fecunda” de mudar uma realidade educacional “que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas”, aquela mesma “que sustenta um manancial de criação insaciável”… (GARCÍA MARQUEZ, 2014: 13).

Referências

BLOCH, Marc (1991). Introdução à história. 4 ed. Mira-Sintra: Europa-América.

CHARTIER, Roger (2002). Os desafios da escrita. Trad. Fulvia Moreto. São Paulo: UNESP.

GARCÍA MARQUEZ, Gabriel (2014). A solidão da América Latina. Revista do IMEAUNILA (RevIU), vol. 2, n. 1, pp. 12-14.

SIRINELLI, François (2003). Os intelectuais. In: RÉMOND, René. Por uma história política. 2 ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, pp. 231- 269.


Apresentadores

Adir da Luz Almeida

Washington Dener dos Santos Cunha


Referências desta apresentação

ALMEIDA, Adir da Luz; CUNHA, Washington Dener dos Santos. Apresentação. Intellèctus. Rio de Janeiro, v.14, n.1, 2015. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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