Como ao Judaísmo, que lhe deu origem, e ao Islã, alguns séculos mais jovem, ao Cristianismo é associada a expressão “religião do Livro”. Religião da palavra ou, para os fiéis, da Palavra inspirada; credo no qual, desde seus tempos primitivos, crer é também interpretar. Busca de sentido que se desdobra, fazendo-se, ela própria, discurso.
Busca de sentido que extrapola o debate sobre o Cânon bíblico e suas múltiplas interpretações. Procura de significado que visa obter adesões e consensos, criando também dissensos. Ponto particularmente polêmico é aquele que diz respeito aos papéis social e político da fé e dos fiéis. E o credo, petrificado em palavras, posto em movimento por discursos e práticas, “transborda”, como rio fervente, para a praça pública.
O presente dossiê busca analisar experiências diversas, no tempo e espaço, da história cristã. Atenta-se, aqui, de forma especial, para o exercício de pensar a fé cristã e seu impacto entre as gentes
Inicia-se com o ensaio de Marcos José de Araújo Caldas sobre as guerras camponesas do século XVI, na atual Alemanha, que traz a lume, em tradução inédita realizada por seu autor, o célebre e anônimo “Manifesto dos 12 artigos”, publicado originalmente em 1525. Tal documento trouxe em seu bojo os elementos revolucionários do “direito divino”, impactando Martinho Lutero e Tomás Müntzer. Manifesto que, recorda-nos Marcos Caldas, pode ser considerado dos mais importantes libelos sobre os direitos humanos e as liberdades civis.
Na sequência, saltando séculos, uma trinca de autores aborda temas contemporâneos.
O historiador argentino José Antonio Zanca investiga os discursos da intelectualidade católica de seu país, de 1950 a meados da década de 1960, isto é, entre os repressivos anos finais do papado de Pio XII (reinante de 1939 a 1958) ao encerramento do Concílio Vaticano II (transcorrido entre 1962 a 1965). Tempo de aggiormamento da Igreja de Roma, atualização essa que repercutiu, com vigor e tensão, no catolicismo da Argentina, ensejando debates, embates e inaudita abertura para importantes questões contemporâneas.
Já Marcelo Timotheo da Costa acompanha intelectual católico particular, Alceu Amoroso Lima, priorizando sua ação na “grande imprensa” durante boa parte da ditadura militar imposta aos brasileiros após 1964. Atuação esta que firmou, para crentes e não crentes, a imagem de Amoroso Lima como intelectual cristão progressista, que denunciava o arbítrio em nome de sua fé. Atuação cuja rememoração torna-se ainda mais importante quando os ventos da intolerância ameaçam, novamente, varrer o país.
Christiane Jalles de Paula apresenta pesquisa sobre o teólogo Leonardo Boff, de matriz católica franciscana, hoje intelectual leigo. A autora elege terreno sobremaneira atual para percorrer parte do itinerário de Boff na praça pública de nosso país: o universo virtual. Assim, Christiane Jalles investiga o blog www.leonardoboff.wordpress.com, no período 2011-2016. Espaço privilegiado para que Leonardo Boff construa engajamento e ação política marcados pelas pautas progressistas do novo milênio.
Por fim, o professor de Literatura Eduardo Guerreiro Losso envereda por discussão teórica acerca da tradição mística. Esta, tomada como fenômeno literário e histórico de natureza progressista, é cotejada com a reação antimística, movimento crítico advindo tanto do discurso racionalista laico como das instâncias de controle eclesial. Corte analítico que permite a Eduardo Losso sugerir a recuperação do potencial transgressivo da mística, retomada a ser empreendida a partir da releitura simbolista da citada tradição.
Boa leitura!
Apresentadores
Marcelo Timotheo da Costa (Universidade Salgado de Oliveira)
Marcos José de Araújo Caldas (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
Dezembro de 2018.
Referências desta apresentação
COSTA, Marcelo Timotheo da; CALDAS, Marcos José de Araújo. Apresentação. Intellèctus. Rio de Janeiro, v.17, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]
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