Intelectuais e a modernização no Brasil: os caminhos da revolução de 1930 | Antônio Dimas Cardoso

Antônio Dimas Cardoso | Imagem: Inter TV

Lançada em 2020, pela Editora Unimontes, a coletânea Intelectuais e a modernização no Brasil: os caminhos da revolução de 1930, foi resultado do trabalho de organização de Antônio Dimas Cardoso e Laurindo Mekie Pereira. O primeiro, sociólogo, o segundo, historiador, ambos compartilham a experiência de, em pesquisas anteriores, avaliar a presença e a agência intelectual nas dinâmicas de modernização, sejam nacionais ou continentais. Tratase de matéria cara aos/às investigadores/as das primeiras décadas do século XX brasileiro, uma vez que recorta justamente a fase de profissionalização intelectual em uma paisagem de mudanças políticas, econômicas e culturais, especialmente, após o fim da Grande Guerra e a ascensão de Getúlio Vargas à presidência (MICELI, 2001; JOHNSON, 1995; PÉCAULT, 1990).

A complexidade da temática macro é enfrentada por autores e autoras das áreas de Direito, Ciência Política, Sociologia e, notadamente, da História. Embora não apresente uma divisão explicita, pode-se avaliar a obra em duas partes: na primeira, que reúne os cinco capítulos iniciais, as diferentes abordagens têm em comum o objeto a partir do qual constroem a argumentação, qual seja: as trajetórias de sujeitos históricos que, nascidos no final do século XIX, se posicionaram em diferentes territórios dos espectros políticos então constituídos e atuaram nas dinâmicas históricas que levaram ao poder um novo modelo institucional. Entre defensores e opositores, o leitor e a leitora terão oportunidade compreender como os eventos de 1930 resultam de disputas, alianças instáveis e diferentes graus de afinidade. Uma segunda parte, que engloba os últimos três capítulos, dá conta de evidenciar questões mais amplas relacionadas ao ensino e às reformas educacionais, às rupturas e permanências das dinâmicas eleitorais e à forma como os eventos da política brasileira foram interpretados em Portugal, no calor dos acontecimentos.

Da primeira parte, destacarei brevemente, alguns pontos em vista do eixo da coletânea.

No primeiro capítulo, de autoria de Monique Cittadino, José Américo de Almeida – famoso por ser autor de A Bagaceira (1928) – tem seu itinerário intelectual e, especialmente, político avaliado dando conta de um aspecto relevante nas dinâmicas pós-1930: o grau de aprofundamento das transformações políticas regionais no novo contexto. Como destaca a autora, o combate político e intelectual às oligarquias movido por José Américo de Almeida o posiciona como uma nova liderança e, contraditoriamente, enseja a constituição da oligarquia americanicista na Paraíba

Também centrado na Paraíba, o capítulo assinado por Martinho Guedes dos Santos Neto, analisa como as novas instituições do Regime Provisório abriram espaço para ações de modernização. Anthenor Navarro, intelectual cuja trajetória dá os contornos do texto, foi um personagem que, assim como muitos agentes de sua geração, tinha ideias culturais elitistas e, concomitante, defendia uma atuação política que, efetivamente, transformasse as relações sociais; ao assumir a interventoria da Paraíba, o personagem realizou mudanças no quadro de funcionários e procurou reconduzir as municipalidades evitando que as antigas elites tivessem instrumentos de controle da população. Ou seja, sua formação elitista e visões conservadoras em termos culturais combinavam-se com ações que visavam mudanças sociais, a exemplo da reforma educacional por ele promovida.

Em perspectiva similar, Virgílio de Melo e Franco, membro da elite política mineira, mostra-se uma figura política de complexa definição, especialmente, se a pretensão for apreendê-lo por meio de categorias clássicas. Como bem avaliam Dimas Cardoso e Melkie Pereira, o personagem integrou o grupo dos extremados que defendeu ações mais enfáticas, inclusive violentas, quando da derrota de Getúlio Vargas nas eleições de 1930. Das posições mais radicais, o personagem passou, não sem esforço, para uma identidade política ligada à mineiridade e à moderação, tornando-se mais à frente, opositor de Vargas.

A oposição ao novo regime político é tema da interessante investigação promovida por Eliana Evangelista Batista e Paulo Santos Silva sobre o ministro das Relações Exteriores do governo Washington Luís, Otávio Mangabeira. Político com presença em diversas redes de poder, Mangabeira foi uma voz ativa em um processo que, nos termos da imprensa da época, teria deixado muda a oposição. Preso nos primeiros instantes da movimentação, escreveu cartas ao governo recentemente constituído e, uma vez no exílio, remeteu vasta correspondências aos  correlegionários brasileiros fortalecendo uma rede de oposição que lhe colocariam no centro de poder nos anos seguintes.

A atuação de Francisco Campos nos primeiros instantes da ascensão do governo Vargas é o tema do capítulo de Luciano Aronne de Abreu e Luís Ronsefield. Os autores buscam reposicionar o personagem, cuja atuação como redator da Constituição de 1937 e do Ato Institucional I – durante a Ditadura Militar, foi sublinhada pela historiografia; conservador e ligado a grupos autoritários, Francisco Campos, a exemplo de outras figuras importantes das décadas de 1920 e 1930, acolheu projetos da Escola Nova e procurou modernizar os métodos de aprendizagem e organizar o ensino brasileiro.

Dessa primeira parte, deve-se sublinhar dois pontos: em primeiro lugar, a contribuição dos trabalhos no sentido de superar narrativas em que os personagens históricos são apresentados de forma absolutamente coerente. A coerência muito raramente condiz com trajetórias individuais e com a História no geral, ambas atravessadas por contingências as mais diversas; para os anos de 1920 e 1930, uma narrativa que vise a coerência pode implicar negativamente a interpretação histórica. Relacionado a essa característica valorosa compartilhada por todos os textos, sublinha-se o uso das fontes, especialmente da imprensa periódica, com uma estratégia de rastreio das diferentes posições dos personagens analisados. Não fica claro se os autores e autoras fizeram uso de acervos digitalizados – com exceção do último capítulo do livro no qual essa informação é mencionada –, mas é importante observar como a possibilidade localizar personagens e eventos em um vasto conjunto documental tem contribuído para complexificar as interpretações do passado ao evidenciar as instabilidades e incertezas no momento da ação.

No que refere à segunda parte, evidencio os seguintes pontos.

Em A revolução de trinta: política e educação Wagner Teixeira da Silva apresenta uma discussão que complementa e esclarece muitos dos pontos discutidos nos capítulos anteriores. O historiador atenta ao fato de que a educação estava em debate desde a Primeira República e que os projetos que logram êxito nas reformas entre 1930 e anos iniciais de 1940, resultavam de conflitos e concessões de seus proponentes. Projetos e agentes políticos, econômicos e culturais são colocados em cena e ganham novas tonalidades quando o autor insere o quadro complexo do nacionalismo, que precedeu a década de 1930, e que a influenciou profundamente. Nesse quadro, a educação emergiu em moldes estatais, centralizada e com objetivos claros: formar uma pequena elite para a direção do país e educar o povo para o trabalho.

No artigo de Paolo Ricci e Jaqueline Porto Zulini, as mudanças políticas do regime instaurado em 1930 são colocados em perspectiva tendo como eixo a aprovação do Código Eleitoral em 1932. Para Ricci e Zulini, a democratização não estava no horizonte das transformações implementadas pelo novo código que apresentou inovações como o direito do voto às mulheres, voto secreto e a institucionalização da justiça eleitoral. A investigação sustenta que o que se instaurou foi uma modalidade de autoritarismo eleitoral, prática na qual há competição política sem garantias de honestidade. Na esteira da abordagem de Hilda Sabato (2021) sobre a importância das eleições na cultura política das repúblicas do novo mundo, os autores fazem um chamado à superação de uma histografia clássica que sustenta que as fraudes deturpavam o processo eleitoral, que o eleitor não era livre e que a competição partidária inexistia.

No último capítulo, Ernesto Castro Leal investigou como, no cenário político português, as notícias da revolução brasileira foram apresentadas enquanto o processo se desenrolava, situação que foi narrada com marcas de incerteza por uma imprensa que tentava decodificar as condições políticas do Brasil. Ainda assim, é possível perceber como havia um vocabulário político comum entre agentes brasileiros e portugueses, ainda que nem sempre, tais personagens concordassem sobre o significado positivo ou negativo das ações que noticiavam.

No conjunto, a obra abarca reflexões sobre o impacto político e cultural das mudanças registradas entre 1920 e 1930, tendo como eixo a Revolução de 1930. É interessante observar que a expressão “revolução” é utilizada no título da obra, de artigos e no corpo dos textos sem que se retorne ao tema clássico do caráter efetivamente revolucionário; quiçá, porque autores autoras e organizadores reconheçam, inclusive no início do livro, o sentido transformador dos eventos de 1930, significado compartilhado pelos contemporâneos que demonstravam à época dos eventos uma consciência rara do grau de mudança que experimentavam.

Não se trata, aqui, de defender posição diversa da apresentada na obra resenhada, posto que concordo com a interpretação de que a história política, cultural e econômica do país vivenciou uma inflexão dramática, com ares revolucionários com a ascensão de Vargas ao poder. Nas páginas iniciais do livro, Cardoso e Pereira alertam para o fato de que o grau das mudanças ocorridas entre 1930 e 1940 está em constante debate e, é pertinente observar que nas últimas duas décadas, a renovação de fontes (especialmente, de acervos particulares) e o desenvolvimento de novas metodologias tem evidenciado o caráter transformador da década na qual o Brasil que se conhece hoje foi “inventado”. Intelectuais e a modernização no Brasil representa uma contribuição a esse debate.

Referências

JOHNSON, Randal. A dinâmica do campo literário brasileiro (1930-1945). Revista USP, n. 26, São Paulo, Jun.-Ago. 1995.

MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

PÉCAULT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática, 1990.

SABATO, Hilda. Repúblicas del nuevo mundo: el experimento político latinoamericano del siglo XIX. Rio de Janeiro: Taurus, 2021.


Resenhista

Gilvana de Fátima Figueiredo Gomes – Doutora em História pela UNESP/Assis, professora do Departamento de História da Unicentro/Guarapuava – PR, membro do GPCEI (Grupo de Pesquisa em Culturas, Etnias e Identificações). E-mail: gilvanagomes@unicentro.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2264-7919 .


Referências desta Resenha

CARDOSO, Antônio Dimas. PEREIRA, Laurindo Mekie (Orgs). Intelectuais e a modernização no Brasil: os caminhos da revolução de 1930. Montes Claros: Editora UNIMONTES, 2020. Resenha de: GOMES, Gilvana de Fátima Figueiredo. A Construção da Revolução De 1930: Personagens, Projetos e desencontros. Caminhos da História. Montes Claros, v.27, n.2,  p.180-184, jul./dez.2022. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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