Atividade interdisciplinar em cenário imaginário de Caatinga 3 | Imagem: IA-MJ
O que significa a expressão “integração disciplinar”? Nesta aula, vou apresentar definições e padrões de integração, exemplificando-os com disciplinas, princípios e conceitos das ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Também tentarei convencê-los de que o valor de cada disciplina pode ser medido pelo seu potencial de elevar a compreensão dos estudantes sobre a vida, do senso comum ao pensamento crítico, sobretudo quando empregadas de modo integrado. O texto resulta de uma iniciativa de formação continuada de professores do Ensino Médio em Sergipe, solicitada recentemente pela Fundação Getúlio Vargas. Contudo, não há adaptações, além da exclusão das sequências didáticas sugeridas na aula original. A intenção é dar a conhecer aos alunos da pós-graduação a informação disponibilizada aos professores da escolarização básica, promovendo uma conexão entre interesses de informação e formação e avaliando os graus de apropriação pelos dois públicos. Vamos discutir a referida integração a partir de uma definição instrumental, da discussão dos conceitos de “multidisciplinaridade”, “interdisciplinaridade” e “transdisciplinaridade” e do anúncio de propostas de integração de conceitos, princípios e disciplinas para a escolarização básica.
1. Significado e valor da integração disciplinar na educação escolar
Raimundo Fagner (2013.Traduzir-se | Imagem: Mateus Brandão
Tomemos a metáfora de Ferreira Goulart: “traduzir uma parte na outra parte” pode ser uma questão de arte. Tomemos também os sentidos de “integrar” como “incluir um elemento num conjunto, formando um todo coerente” e “integração” significando a “incorporação de um elemento num conjunto” (Houaiss, sd.).
Ferreira Goulart (2016). A história da construção de Traduzir-se | Imagem: Fronteiras do Pensamento
Com esses parâmetros, já reconhecemos integração nas finalidades dos currículos do Ensino Médio (EM), como o Currículo de Sergipe (CS). Ali, o “todo coerente” é uma ideia de estudante a formar (um ser humano) e os elementos desse todo são idealmente as capacidades éticas (decidir e agir conforme regras), estéticas (sentir conforme regras) e cognitivas (conhecer conforme regras). Com esses parâmetros, também reconhecemos a integração no conteúdo das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CHSA) e a integração desse conteúdo nas finalidades do CS. Ali, as CHSA representam insumos do ser humano. As CHSA são um “todo” e o conteúdo das disciplinas Filosofia, Geografia, História e Sociologia são as suas “partes”. O CS, contudo, não detalha a integração no interior de cada disciplina, tampouco as práticas dos especialistas disciplinares em seu conjunto. É o que vamos fazer aqui, começando com a boa notícia de que a maioria dos professores concebe Filosofia, Geografia, História e Sociologia como processos científicos particulares de conhecer, integráveis no exame dos fenômenos com os quais os estudantes se defrontam na vida prática (Ingram, 1979, p.23-24). Disciplinas são literalmente modos de ver a realidade. Isso é bom! Para a maioria dos estudantes, contudo, as disciplinas são um repositório de fenômenos disciplinares (fatos, comportamentos, crenças) isolados e, em muitos casos, alienados da vida prática. Essa compreensão dos estudantes deve ser modificada. É necessário induzir os estudantes a perceberem as disciplinas como modos mais complexos de ver as coisas que os rodeiam. É nossa tarefa induzi-los a conceber as atividades de ensino e aprendizagem escolar como processos de desintegrar os “todos” que eles percebem simploriamente e reintegrá-los com método, no sentido de elevar a sua compreensão sobre a realidade a um patamar bem mais sofisticado. Durante quase dois séculos, Filosofia, Geografia, História e Sociologia deram conta das suas tarefas isoladamente. Quem quisesse conhecer o perfil dos moradores da primeira capital de Sergipe, bastava ler o
Laudas da História de Aracaju, de Sebrão Sobrinho. Quem quisesse conhecer os padrões de comportamento dos empresários sergipanos, frente aos trabalhadores urbanos, bastava ler um ensaio do sociólogo Florentino Menezes e assim por diante. Tanto a consulta como a pesquisa eram marcadas por interações disciplinares. Contudo, mesmo nesses tempos disciplinares, sociólogos eram um pouco filósofos e historiadores um pouco geógrafos, se considerarmos as consultas que faziam aos colegas e as respostas que acrescentavam aos seus trabalhos, produzidas fora das fronteiras da Sociologia e da História, respectivamente. Em resumo, a disciplinaridade já convivia em certa dose com as interações multidisciplinares e interdisciplinares. Com o hiperespecialismo dos saberes, a partir da segunda metade do século XX, e o estreitamento político entre mundos (supostamente) estanques do interior e do exterior da escola, as interações entre especialistas, em questões, métodos e respostas efetuadas, até então, de modo ocasional, tornaram-se uma necessidade. Hoje, um sociólogo sozinho (e um professor de Sociologia, pior ainda) não explica mais uma briga das torcidas do Clube Esportivo Sergipe e da Associação Desportiva Confiança. Um geógrafo, do mesmo modo, sem o auxílio de biólogos e filósofos, não explica a contento, por exemplo, um derramamento de óleo na praia de Pirambu ou uma mortandade de peixes no Rio do Sal. A intervenção dos agentes públicos e das organizações da sociedade civil nos projetos de investigação e ensino, demandando mais profunda, segura e legítima informação, instaura os tempos das interações transdisciplinares.
2. Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade Disciplinas são dominantemente modos de dar sentido a realidade. Em alguns casos, o professor dá conta da demanda. Em outros ele necessita do auxílio do colega de outra disciplina. Em outra situação, dois especialistas colaboram sem que nenhum deles assuma o resultado como seu. Em outras, ainda, vários professores se engajam no cumprimento de uma tarefa, sem terem pautado, isolada ou colaborativamente os problemas, meios e conteúdo da aprendizagem. Cada uma dessas situações representa um tipo de integração, como as exemplificadas a seguir. Se a expectativa de aprendizagem é identificar os meios de orientação espacial, empregando, por exemplo, mapas celestes e aplicativos digitais, o professor pode usar representações bidimensionais em papel e representações na tela do computador. Os instrumentos da Geografia resolvem bem o problema, configurando exemplo típico de ensino disciplinar. Mas, se a expectativa de aprendizagem é fazer o aluno compreender os usos de diferentes meios de orientação e comparar as mudanças ao longo do tempo, o professor pode chamar as narrativas da História das grandes navegações e da chegada dos europeus ao atual território sergipano, demonstrando o valor das constelações em alto mar. Aqui, a Geografia escolar foi auxiliada pela História escolar, configurando exemplo de integração multidisciplinar. (Oliveira; Alvin, 2020, p.22). Se a intenção do professor é fazer o estudante compreender como as plantas da sala de aula produzem a energia de que necessitam para sobreviver, não vão bastar os conhecimentos e experimentos da Biologia. Ele lançará mão de modelos explicativos da Física e da Química de modo sintético, estimulando-os a observar o desenvolvimento dos brotos plantados em copos descartáveis e depositados em lugares de sobra e de luz. Nesta situação, os conhecimentos e procedimentos das três disciplinas se fundiram em um novo domínio: as “ciências”. Se, por fim, a atividade de fazer plantios de sementes em viveiros no interior da escola serve para interiorizar nos estudantes o valor da flora e da fauna do agreste sergipano, como reação à devastação das matas ciliares, noticiada pela imprensa e denunciada pelo Ministério Público, as disciplinas já não são as únicas protagonistas. O esforço conjunto, de escola, comunidade e poder público esboroa os limites entre ciência e sociedade, configurando uma integração transdisciplinar. Com base nesses exemplos, e com o auxílio de especialistas (Rezaei; Seyedpour I2022, p.2-5; Rezaei; Saghazadeh, 2022, p.3), podemos listar as seguintes definições instrumentais:
- Multidisciplinaridade – Colaboração simultânea ou sucessiva de métodos, conhecimentos e princípios de uma disciplina com outra disciplina, visando a resolução de um problema para a sociedade, sem o rompimento de fronteiras disciplinares. Uma disciplina ajuda a outra;
- Interdisciplinaridade – Colaboração simultânea ou sucessiva de métodos, conhecimentos e princípios visando a resolução de um problema para a sociedade, com o rompimento de fronteiras disciplinares. Uma nova disciplina é gerada;
- Transdisciplinaridade – Colaboração simultânea ou sucessiva de métodos, conhecimentos e princípios disciplinares, com saberes, estratégias, valores e atitudes extradisciplinares (sociais), visando a resolução de um problema com a sociedade, com o rompimento de fronteiras científicas. As disciplinas desaparecem.
Os exemplos acima são voltados para o ensino dos anos iniciais. Vamos avançar agora para o EM, demonstrando que alguma integração curricular já está prescrita nos currículos estaduais e envolve conceitos e princípios no interior e entre as disciplinas das CHSA.
3. Integração de conceitos, princípios e disciplinas Figura 3 (esquerda). Rizoma é um termo originado da botânica, utilizado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, para descrever uma maneira de encarar o indivíduo, o conhecimento e as relações entre as pessoas, ideias e espaços, a partir de uma perspectiva de fluxos e multiplicidades, que não possui uma raiz ou centro. (Carrasco, sd.). Figura 4. A árvore da vida, como ilustrada por Ernst Haeckel em A Evolução do Homem (1879), simboliza a visão característica do século XIX de que a evolução era um processo progressivo, com o ser humano como objetivo (Wikipedia, sd.)
A integração de conceitos disciplinares é a mais básica. Na vida, eles formam conjuntos em demandas várias, como a identidade disciplinar. A emergência das disciplinas, por repartição, fusão e outros, ao longo dos séculos XIX e XX, explica também o necessário compartilhamento de conceitos (embora, ressignificados). Considerem o quadro 1. Ele apresenta os conceitos mais abstratos e gerais que frequentam as CHSA. Eles são representações mentais das coisas que cercam o mundo, adquiridas de modo consciente (Damásio, sd., p.38-39) pelos estudantes, professores e pais.
No quadro 2, o conceito de “ética” vale isoladamente e como núcleo de um conteúdo epistêmico da Filosofia, empregado em vários outros domínios científicos.
Além de sua função nuclear, os conceitos do quadro 1 são elementos de ligação entre disciplinas, como efetuado pelo emprego de “território” entre a Geografia e a História, que por sua vez apresentam significados similares (Quadro 3).
Os conceitos destacados do quadro 1 também podem revelar as relações de interdependência entre disciplinas. Observe que o conceito de “tempo” está empregado como pontos móveis/sucessão que subjazem uma cronologia (quadro 4). Esse mesmo “tempo” pode provocar discussão e entendimento mais sofisticado quando a Filosofia é chamada a participar do debate. O próprio CS (Santos; Soares, 2022, p.139) fornece essa possibilidade quando contrastamos ideias de mudança temporal como presente/passado/futuro e suas projeções dialética, cíclica, caótica, prescritas em diversas filosofias, desde S. Agostinho, passando por F. Hegel, até chegar em A. Camus.
Conclusão Nesta aula, tentamos convencê-los de que o valor de uma disciplina está contido, principalmente, no seu potencial de elevar a compreensão dos fenômenos que nos cercam, de uma consciência ingênua a uma consciência sofisticada. Essa dinâmica pode ser atingida quando abordamos conceitos, proposições, narrativas, valores e atitudes de modo integrado, resultando em modalidades de corte multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. No próximo texto, vamos explorar a integração multidisciplinar e interdisciplinar (Acesso o texto
aqui).
Sugestão de atividade Figura 5. Momento em que policial é derrubado do cavalo por bolsonaristas durante o ataque de 8 de janeiro de 2022, em Brasília-DF | Foto: Sergio Lima/AFP/Estado de Minas.
Observem a figura 5 e tentem produzir sequência(s) didática(s) que viabilizem a compreensão mais sofisticada do fenômeno representado.
Referências DAMÁSIO, António.
O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, sd. DRAKE, Susan; BURNS, Rebecca.
Meeting standards through integrated curriculum. Alexandría: ASCD, 2004. INGRAM, James B.
Curriculum intetration and lifelong education: A contribution to the improvement of school curricula. Oxford: Pergamon Press, 1979. LITTLE, Catherine A.
The use of overarching concepts in the integrated curriculum model. VAN TASSEL-BAKA, Joyce; LITTLE, Catherine A. (Ed.). Content-based curriculum for high-ability larners. 3ed. New York: Routledge, 2021. Snp. SANTOMÉ, Jurjo Torres. Os motivos do currículo integrado. In:
Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artmed, 1998. p.26-94. REZAEI, Nima; SEYEDPOUR, Simin. Introduction to integrated science: transdisciplinarity. In: REZAEI, Nima (Ed.).
Transdiscilinarity. Cham: Springer, 2022. p. 1-11. REZAEI, Nima; SAGHAZEDH, Amene. Introduction on integrated science: multidisciplinarity and interdisciplinarity in Healt. REZAEI, Nima (Ed.).
Multidisciplinarity and Interdisciplinarity in Healt. Cham: Springer, 2022. p.1-39.
Astronomia, Arqueologia e História em uma só lição. Trailer do filme “Nostalgia da Luz”, de Patricio Gúzman (2015) | Imagem: Vimeo
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Para citar este texto: FREITAS, Itamar. Integração disciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Resenha Crítica. Aracaju/Crato, 26 mar. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/todas-as-categorias/integracao-disciplinar-em-ciencias-humanas-e-sociais-aplicadas/>