Instituições de memória, documentos e acervos históricos / Projeto História / 2018

O presente número da Revista Projeto História segue o rastro da contínua valorização que o Departamento de História e o Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP vêm dando às discussões práticas e teóricas acerca da preservação e divulgação dos acervos históricos, em seus diversificados suportes e suas instituições de memória. Tal preocupação já foi expressa de um modo um tanto específico no número anterior da revista denominado “Patrimônio Cultural, História e Memória”.

Agora, a revista de número 62, “Instituições de memória, documentos e acervos históricos” apresenta tal perspectiva a partir de um pressuposto diversificado, ou seja, com o intuito de evidenciar abordagens variáveis a respeito da relação entre acervos históricos, a sociedade e suas instituições que a custodiam, destacando, assim, o fato de estarem associadas aos construtores do patrimônio coletivo de grande valor simbólico, o que, por sua vez, nos permite salientar relações pautadas por contradições, ambiguidades e os conflitos de interesses que perpassam a sociedade.

No plano social e político, o momento pelo qual passa o país torna tal discussão ainda mais premente, pois ao mesmo tempo que nunca foi tão claro que o Patrimônio Cultural e suas instâncias são instrumentos de inclusão social, volta a ficar evidente que também funcionam como ingerências de interesses políticos e do poder, aquém das necessidades da comunidade que os cercam, podendo nesse caso funcionar como instrumento de práticas totalitárias e antidemocráticas.

Situação que marca uma regressão no campo epistemológico da preservação, pois como afirma Maria Pilar García Cuetos “métodos e práticas de conservação do património cultural envolvem a introdução no campo da conservação e restauro, valores monumentais de tolerância, respeito e diálogo entre culturas e o conceito de aspectos de desenvolvimento sustentável”.1 Essas problemáticas mereceriam ser mais discutidas na disciplina histórica, assim como nas ciências humanas como um todo e, nos dias atuais, tristemente, estão sendo colocadas em xeque por parte de grupos conservadores.

Por outro lado, deve-se levar em conta que hoje o caráter subjetivo da conservação e preservação é também evidente, e seria ingenuidade descartar a hipótese de que as práticas de preservação de acervos são socialmente construídas sob interesses vários.2 Tal situação tem seus dois lados da moeda, pois, infelizmente, ainda, nos deparamos com centros de documentação, arquivos, museus, bibliotecas públicas e ou de interesses públicos, geridos e ou organizados segundo interesses autoritários e particulares de seus gestores, que com tais práticas fazem um desserviço não só para pesquisa, para memória e para a história, como também para a democracia. O mais intrigante é que muitos desses partem de um discurso de defesa da preservação e divulgação dos acervos sob sua guarda, mas, na prática, de fato, fazem de tais acervos instrumentos quase particulares do uso do passado. Mas, também, tal plasticidade nos possibilita a enxergar os diversos atores nesse processo de preservação e conservação da memória, sujeitos que vão além dos técnicos e intelectuais, pois parte-se de uma noção de patrimônio aberta, na qual os objetos de memória se tornam objetos patrimoniais a partir do significado dado a ele pela comunidade. Não se parte então, de um valor fetichista dos objetos que teriam seus significados emanados única e exclusivamente deles próprios, na verdade poderia se enxergar a partir de tais acervos os multi-significados que refletiriam os diversos sujeitos que contribuíram para construí-lo, o que nos leva a conclusão óbvia que um Patrimônio ou acervo patrimonial não existe separado de um sujeito e ou de uma sociedade. O que possibilita, então, a dar voz aos atores anônimos dessa “construção”.

Assim, por exemplo, o mestre escravo taipeiro responsável por erguer as paredes das casas sedes das fazendas produtoras das monoculturas que dinamizaram os vários ciclos econômicos do Brasil, podem ser tratados como protagonistas tanto de acervos arquitetônicos, da cultura material, como da fonte escrita, a partir de inventários e testamentos feitos por seu senhores de engenho ou grandes produtores de café, documentos que tanto complementam as estantes de nossos arquivos e centro de documentação histórica. A valorização de tal visão democrática e problematizadora dos acervos históricos é condição teórica e social necessária nos dias de hoje, marcados por disputas ideológicas acerca do passado.

Dentro desta perspectiva ampla os artigos reunidos no dossiê “Instituições de memória, documentos e acervos históricos” se caracterizam por um ecletismo semelhante, marcado por abordagens metodológicas, documentais e teóricas. Instituições, acervos e propostas de discussões acerca do tema dão esse caráter variado aos artigos aqui apresentados, mas que compartilham de um ponto em comum, a relevância da preservação e conservação de tais acervos para o fazer-se histórico.

Nesse sentido é que Isabel Cristina Martins Guillen, ao abordar a intrínseca relação entre as manifestações performáticas da cultura popular e o processo de gentrificação do Bairro do Recife, salienta as políticas públicas que envolveram a preservação de práticas culturais no Carnaval, e em especial os maracatus-nação, no período de 1995 a 2015. Em linha semelhante, no segundo artigo aqui apresentado, Leandro Candido de Souza analisa alguns aspectos da patrimonialização dos bens que constituem o chamado Corredor Cultural do município de Santo André, observando particularmente a reorganização da identidade municipal que ele implica.

Em seguida a professora do Departamento de História da PUC-SP, Maria Antonieta Antonacci a partir do artigo “Memória e Patrimônio em ‘arquivo vivo’” apresenta debates e agenciamentos relacionados às culturas letradas e orais, com suas formas e lugares de memória, patrimônios culturais, salientando o relevante papel de memórias do corpo, vividas e compartilhadas em rituais, festas e performances.

Na sequência o professor João Paulo Avelãs Nunes, da Universidade de Coimbra, a partir das concepções do novo patrimônio cultural e da nova museologia, parte para o estudo de organizações como as Santas Casas da Misericórdia, para entender sua utilidade social e a visibilidade pública.

Também da Universidade de Coimbra, Fernando Tavares Pimenta analisa em seu artigo as políticas de classificação do património histórico- cultural de Angola, assim como procura fazer a problematização sobre o processo de construção de uma rede museológica nacional angolana.

Da Universidade da ISCTE-IUL de Lisboa a professora Paula André, Ana Nevado e Nádia Luis apresentam uma abordagem crítica fundada no quadro conceitual de Françoise Choay, Laurajane Smith, Fernando de Terán, Loes Veldpaus e Anna Colavitti, tomando como referência a requalificação da arquitetura e a regeneração urbana na cidade de Lisboa.

Jose Arbex Junior do Departamento de Jornalismo da PUC-SP coloca questões agudas sobre memória, história, mídia e sociedade no seu artigo: “Holocausto da memória: ‘Espetacularização’ esvazia o sentido crítico do registro histórico”.

Para fechar o Dossiê, Romina A. España Pardes, da Universidad Nacional Autónoma de México traz uma relevante discussão acerca do diário do político, jurista, e historiador mexicano José Fernando Ramírez, salientando a importância dos relatos de viagem para o exercício e a preservação da memória.

O número consta ainda com dois artigos livres “Diálogos d’alémmar: Elis Regina e a MPB desembarcam em Portugal” de Mateus de Andrade Pacheco, no qual o autor foca na incursão da cantora brasileira Elis Regina pela cena artística portuguesa e “A censura militar pelo prisma das matérias vetadas do jornal O São Paulo (1972-1978)” no qual Fabio Lanza e José Wilson Assis Neves Junior abordam a censura prévia militar imposta ao jornal O São Paulo durante a década de 1970, a partir da análise documental das matérias censuradas pela ditadura militar brasileira (1964- 1985).

Esperamos que os leitores possam apreciar tais escritos, levando em consideração que buscamos organizar um panorama variado e problematizado das Instituições de memória, seu documentos e acervos históricos.

Notas

1 CUETOS, M. P. G. Humilde condición. El patrimonio cultural y la conservación de su autenticidad. Gijón: Ediciones Trea, 2009.

2 MUÑOZ VIÑAS, S. Teoria contemporanea de la restaucion. Madrid: Sinteses, 2004.

Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus – Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP

Marcos Tognon – Docente Departamento de História-IFCH / UNICAMP


JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega de; TOGNON, Marcos. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.62, 2018. Acessar publicação original [DR]

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