Na virada de 1909 para 1910, o Brasil chegou a conhecer uma corrida presidencial que entrou na história como campanha “civilista”. Pela primeira vez no país surgiu uma disputa pública e democrática por votos, encabeçada pelo então candidato Rui Barbosa (1849- 1923). Até esse momento, nos pleitos anteriores ao cargo de presidente, os eleitos Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves e Afonso Penna sequer viram-se compelidos a se empenhar ativamente em campanhas eleitorais. O resultado das eleições já tinha sido negociado no meio da elite política através de conversas de bastidores, entre muros fechados.
Em 1909, o candidato “oficial” nessas circunstâncias e favorito da eleição era o militar Hermes da Fonseca (1855-1923), sobrinho do primeiro presidente e “proclamador da República”, Marechal Deodoro. Hermes da Fonseca representava a ala militar e um pensamento autoritário que acenava com possíveis ações intervencionistas. Ele mostrava posturas que, por um lado, tiveram amplo respaldo no Congresso e por parte da imprensa, mas que, por outro lado, evocaram forte resistência por parte de políticos em busca de mais autonomia para seus estados, em primeira linha São Paulo.
Os descontentes bateram na porta do advogado e senador baiano Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, que naquela época já era uma celebridade dentro e fora do Brasil. Fizeram dele um ilustre candidato da oposição, colocando ao seu lado, como parceiro e vice, o presidente do estado de São Paulo, o alagoano de origem Albuquerque Lins. Uma das inspirações para a campanha brasileira era a recente corrida presidencial nos Estados Unidos, que levou à presidência do país o candidato William Howard Taft.
Na campanha de Taft houve uma disputa aberta por votos dos eleitores: os adversários fizeram um trabalho corpo a corpo e utilizaram recursos ainda hoje comuns em campanhas eleitorais, como jingles, broches e cartões com retratos dos candidatos, cartazes e bandeiras coloridas. Além disso, houve a constante presença de fotógrafos e jornalistas nos comícios – na época, conhecidos como meetings no Brasil –, que documentaram os atos dos candidatos.
No Brasil, no entanto, esse tipo de campanha política ainda era tão inusitado que boa parte da elite local viu a candidatura de Rui Barbosa com desconfiança – se não com desdém. O fato de um candidato se expor publicamente era visto pelos adversários como algo vulgar – não digno de um homem de Estado, sinal de demagogia e suposta fraqueza. A fotografia ainda não tinha conquistado o seu lugar na imprensa com o mesmo vigor de hoje. As imagens fotográficas concorriam com outras ilustrações, como estampas tipográficas e a linguagem satírica das caricaturas políticas – das quais a figura pública de Rui Barbosa tornou-se alvo preferido. A eleição, como as seguintes e anteriores, era vulnerável às fraudes: sequer havia uma justiça eleitoral estabelecida e seus partidários que queriam participar da contagem dos votos terminaram barrados em grande parte das sessões de urnas. Diante disso, Rui Barbosa terminou, em todas as suas campanhas, candidato derrotado.
Rui Barbosa não era pessoa fácil de se fotografar. Era de uma estatura baixa e franzina – inferior a 1,60 m com peso abaixo dos 50 kg – e já tinha uma idade avançada para o padrão de vida do início do século XX. Passava dos sessenta anos – mesma fase dos últimos anos de regência do imperador dom Pedro II, cuja imagem retratada marcava a fotografia da época anterior, do Império. Mas, enquanto dom Pedro II costumava sobressair por sua massa corporal e estatura vultosa, a figura de Rui Barbosa facilmente desaparecia em meio às multidões, apenas distinguível mediante seu característico bigode branco.
Para enfocar bem o candidato na câmera, os fotógrafos pareciam dispostos a fazer tudo para destacá-lo, seja pelo enquadramento central, seja através de sua roupa distinta, um tanto antiquada: em muitas imagens, ele aparece com terno claro e chapéu mais alto do que aqueles usados pelas pessoas em seu entorno. Buscava-se transmitir, através das fotos, aparentemente a ideia de um senhor bem cuidado e elegante, carregado de sabedoria, dignidade e civilidade – talvez houvesse nisso certa alusão à imagem anterior, e, agora, já algo saudosista, de dom Pedro II.
O livro Instantâneos de Rui é um estudo sobre o acervo fotográfico de duas campanhas presidenciais de Rui Barbosa, com destaque à primeira, mais conhecida e estudada. O surgimento dessa publicação é sem dúvida uma grande contribuição da Fundação Casa de Rui Barbosa e de seus autores. A obra trata de um espólio de imagens, produzidas entre 1910 e 1920, de relevante interesse histórico e de um período do Brasil que ainda carece de boas publicações no que diz respeito ao universo fotográfico.
Em um dos primeiros textos, o leitor é informado de que o livro já foi pensado no âmbito dos preparativos para a comemoração dos cem anos da campanha cívica (2010); posteriormente concretizou-se a ideia em 2012, mas a publicação demorou até 2018 para finalmente sair do prelo. Um dos autores, Luís Guilherme Sodré Teixeira, estudioso das caricaturas sobre Rui Barbosa, infelizmente não chegou a vivenciar a publicação, agora lançada em sua memória. Essa trajetória do lançamento parece um melancólico retrato das dificuldades financeiras e editoriais por que passa hoje boa parte das instituições públicas no Brasil e no que se refere à preservação e divulgação dos seus arquivos históricos.
Quem folheia o livro facilmente chegará à conclusão de que o admirável trabalho investido pelos autores teria merecido um reconhecimento maior através de uma publicação mais vultosa e mais sofisticada do que se encontra agora no volume impresso. O assunto, os valores histórico e testemunhal e a qualidade estética das imagens – repito, um importante espólio da história republicana brasileira – são dignos de uma publicação de grande formato, de excelência no trato da imagem e de um papel de impressão de padrão elevado.
Os pesquisadores Pedro Krause Ribeiro e Silvana Maria da Silva Telles conseguiram reunir no livro uma impressionante quantidade de imagens, acompanhadas por informações úteis, enxutas e em uma linguagem objetiva. O livro dirige-se em primeira linha a especialistas ou interessados na vida de Rui Barbosa com conhecimentos preliminares de sua biografia, sem a pretensão de dar uma visão abrangente, ou uma introdução geral da sua obra. São abordadas apenas duas das quatro candidaturas do presidenciável. O corte temporal aplicado não ambiciona ser representativo para o seu espólio político e nem pretende abarcar todo o auge de sua carreira política. O leitor precisará recorrer a fontes complementares para saber algo sobre as caricaturas que retratavam Rui Barbosa e que surgiram na mesma época na imprensa, ou sobre a imagem do outro lado, quer dizer, de seus adversários – que, sem sequer terem se esforçado em aparições em praça pública, ainda assim saíram como vencedores.
O livro, sem dúvida, pode ser ponto de inspiração e norte para futuros estudos e análises de imagem. Uma linha de aproximação poderá ser a observação das imagens brasileiras da época dentro do contexto latino-americano. O ano de 1910 costuma ser citado como o início da Revolução Mexicana, provavelmente o mais impactante evento da América Latina do século XX – e uma época de extrema brutalidade que em médio e longo prazo mudou o papel da fotografia no continente. No México, surgiram inúmeras imagens de grande dramaticidade – cenas de execução, de entradas triunfais, de combates, mas também de narrativas visuais carregadas de teor ideológico, como abordagens documentaristas de viés comunista.
Momentos politicamente conturbados e violentos também marcaram o Brasil. A gestão do vencedor da primeira campanha, Hermes da Fonseca, foi marcada por embates armados: eclodiram conflitos como o da Chibata, do Contestado, das campanhas salvacionistas, entre outros. Uma parte da iconografia desse tempo – como os filmes e fotos que documentaram as expedições de Marechal Rondon (dos arquivos do antigo Serviço de Proteção aos Índios), além das imagens das expedições sanitaristas do Instituto Oswaldo Cruz – é bem conhecida; mas, em seu conjunto, o corpo de fotografias documentais da época ainda é pouco pesquisado.
Nas cenas das campanhas de Rui Barbosa praticamente não há dramaticidade semelhante – possivelmente porque os fotógrafos buscavam enfatizar um aspecto de “naturalidade” e “civilidade” que encontravam em torno do político. Tal impressão justamente contrastava com a ideia marcial que se tinha da esfera militar. Há, na obra, uma única exceção que destoa dessa narrativa: o retrato de dois estudantes mortos, assassinados em um dos meetings contra a candidatura de Hermes da Fonseca, em 1909 (imagens reduplicadas na página 45 do livro).
As fotografias mostram um quase desconhecido episódio da banalidade da morte nos embates políticos no Brasil. Imagens tristes que, infelizmente, iriam se repetir, de forma semelhante, no decorrer do século XX em vários momentos de repressão. As fotografias reduplicadas no livro dificilmente destacam-se por uma perspectiva autoral. Em sua grande maioria, não podem ser atribuídas a um determinado fotógrafo. Sua visão segue um padrão convencional, de um olhar incipiente de jornalismo de rua, sem que as imagens mostrem muita ousadia: os fotógrafos mantiveram certa distância dos retratados, não se aproximaram de seus motivos e não buscaram inovação. Mas talvez não tenha sido esse o seu objetivo: pretendiam conciliar o olhar de seu tempo com a dimensão histórica, transmitir um pedaço de normalidade em tempos de confusão e reviravolta política. Agradece-se aos pesquisadores o resgate desse instigante capítulo da fotografia brasileira.
Resenhista
Titus Riedl – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor de História da Universidade Regional do Cariri/Ceará. E-mail: titusriedl@yahoo.de
Referências desta Resenha
TEIXEIRA, Luís Guilherme Sodré; RIBEIRO, Pedro Krause; TELLES, Silvana Maria da Silva. Instantâneos de Rui: fotografias das campanhas presidenciais de Rui Barbosa (1910-1919). Rio de Janeiro: 7Letras, 2018. Resenha de: RIEDL, Titus. Acervo. Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 151-154, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [DR/JF]
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