Inquisição Colonial | Revista Ultramares | 2015

Introdução: A Inquisição, da colônia ao que somos no hoje

O que significou a existência do Santo Ofício? Qual o seu alcance na Europa e nos Novos Mundos? Até que ponto a Inquisição remodelou o quadro de sociabilidades existentes na colônia? Como a Inquisição ajudou a gestar o que agora somos e quanto dela há em nosso mundo como resquício? “Lenda Negra”, “Lenda Branca”, interpretações que permeiam as raias de visões nem sempre neutras sobre o metamorfoseado “polvo de mil braços”, como já foi adjetivado o Tribunal que agiu durante a Modernidade Ibérica como baluarte da pureza cristã, à busca de hereges que ameaçavam o monopólio e os interesses católicos em seus domínios…

Estas, de certeza, não são questões de simples resposta, nem tampouco resolvem o quebra-cabeças infinitamente mais complexo da criação, lógica e funcionamento do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição português, das vítimas que fez e da atmosfera de controle e de intolerância que espalhou nos espaços onde tinha abrangência, ao longo dos quase três séculos em que teve vida, de 1536 a 1821.

Os estudos sobre a Inquisição e seu mundo, vale dizer, já celebram longa caminhada. Em Portugal podemos citar os textos inaugurais de Alexandre Herculano e sua História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, composta em três volumes, cuja primeira edição remonta a 1854-1859. Para o Brasil, Capistrano de Abreu seria um dos pioneiros, com a valorosíssima iniciativa, nos anos 1920, de publicar as Denunciações e Confissões da Bahia, reunindo fontes da primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil ocorrida entre 1591-1595.

Mas o grande boom dos estudos inquisitoriais no país ganharia força a partir da década de 1960, com os trabalhos de Anita Novinsky, Elias Lipiner, Sonia Siqueira, José Gonçalves do Salvador, alguns deles responsáveis em levar para a Academia a preocupação em destrinchar esta documentação, dando origem a levas e levas de novos pesquisadores.

A chegada da Nova História à historiografia nacional deu viço e alento, com renovadas possibilidades interpretativas, graças ao contato com outras áreas do conhecimento, os usos de novas tecnologias, a percepção de que as fontes inquisitoriais serviriam para estudar bastante para além da Inquisição e de suas vítimas, somente.

De lá para cá, muito se avançou. Hoje, falamos de meio século de estudos contemporâneos sobre o Santo Ofício e de tudo que o cerca, espalhados de Norte a Sul e de Leste a Oeste do país, de dezenas e dezenas de livros, centenas de artigos, revistas especializadas, eventos científicos, grupos de pesquisa, e mais: de trabalhos que envolvem contatos cada vez mais profundos e frequentes com pesquisadores de outros países (destaque óbvio para Portugal, mas longe estamos de deferir aos pesquisadores lusitanos, oxalá, o privilégio de serem os únicos interessados nesta trama…), criando uma verdadeira rede de estudiosos do assunto, trocando informações, fontes, textos…

Neste sétimo número, a Revista Ultramares faz coro ao crescimento dos estudos inquisitoriais, e traz dossiê que apresenta, como tema de abordagem, trabalhos que discutem a Inquisição no mundo colonial. Isto, claro, não significa dizer que estes artigos limitam-se a analisar a presença e atuação do Tribunal do Santo Ofício no espaço americano. O fazem, também, de forma comparativa, refletindo sobre semelhanças, diferenças e especificidades de sua ação persecutória em outros espaços do mundo luso. Este, um dos pontos em que os articulistas aqui reunidos, e que tratam do assunto de formas tão distintas, se cruzam e contribuem para o debate.

O dossiê é composto por quatro artigos. Abrindo os trabalhos, Angelo Adriano Faria de Assis apresenta, em “No interior do labirinto, o olho do vulcão: Revisitar os estudos inquisitoriais no Brasil e vislumbrar o futuro que tecemos”, um panorama dos cinquenta anos da moderna historiografia brasileira sobre a Inquisição, apontando as principais obras, os avanços já realizados, um quadro (que se pretende, embora ciente dos limites) relativamente atualizado da produção sobre a Inquisição nas universidades brasileiras, as aberrações encontradas sob o viés da liberdade de expressão no mundo livre da internet, bem como o caminho que nos espera pelos próximos anos destes estudos: não apenas procura mostrar o quanto já se avançou, mas ainda o tanto que ainda há por se fazer.

A partir da noção de connected histories, Marcus Vinícius Reis, em artigo intitulado “Os diversos mundos das práticas mágico-religiosas a partir das Visitações do Santo Ofício à América Portuguesa (1591-1595; 1763-1769)”, explora a ação inquisitorial sobre as práticas mágico-religiosas vivenciadas na colônia, buscando refletir sobre como esse universo simbólico entrelaçou-se a outros contextos para além dos limites brasílicos, remetendo a laços que os atrelam ao imaginário da Europa medieval, das tradições ameríndias e africanas, a constituir, no Novo Mundo, quadro atípico, nem sempre compreendido, em suas dimensões, seja pelos representantes do Tribunal, seja pela própria sociedade.

Já Yllan de Mattos, em “‘O Santo ofício age com malícia e velhacaria, […]prende as pessoas por amor ao dinheiro’: As críticas e os críticos processados pela Inquisição portuguesa (1605-1750)”, aborda o compêndio literário produzido em diferentes momentos, espaços e contextos pelos críticos da Inquisição, fossem eles contra a própria existência do tribunal, fossem, apenas, detratores de sua forma particular de atuação. Uma literatura de cariz anti-inquisitorial produzida nas duas margens do Atlântico, que dialogavam e se influenciavam mutuamente.

Fechando o dossiê, Jaime Ricardo Gouveia apresenta “A Inquisição na apuração do crédito e depuração do descrédito: Autóctones, caboclos e reinóis em microscopia no espaço Luso-Americano (1640-1750)”. Também em perspectiva comparativa, o autor procura investigar os motivos que levaram a Inquisição portuguesa a um arquivamento em larga escala de denúncias contra clérigos acusados, em Portugal e no Brasil, de casos de solicitação. Um dos focos de destaque em seu trabalho são os depoimentos falsos que dão mostra das tentativas de utilizar a justiça inquisitorial como estratégia de dolo dos denunciados e o descrédito de testemunhas baseados em pressupostos étnico-raciais e misóginos vigentes à época.

Compondo este número da Ultramares, há ainda mais quatro estudos. Sheila Conceição Silva Lima, em “Revolta em La Rochelle: A expulsão dos padres jesuítas do planalto Piratiningano (1627-1655)”, analisa a expulsão dos jesuítas da Vila de São Paulo de Piratininga, procurando entendê-lo como um episódio de revolta, aos moldes do Antigo Regime. Como foco, o artigo apresenta as tensões, com o desenvolvimento da vila, entre camaristas, sertanistas e membros da Companhia de Jesus, que discordavam acerca do modelo de administração dos indígenas.

“Entre Patentes e Cargos: Administração, Ethos Social e Redes de Privilégio nos Sertões da Capitania da Parahiba do Norte (c.1700 – c.1750)”, artigo de Yan Bezerra de Morais e Rodrigo Ceballos, delineia a formação de uma sociedade colonial tardia na Paraíba do Norte Setecentista. Partindo de registros cartoriais e de fontes compiladas no Projeto Resgate, os autores conseguiram identificar sujeitos partícipes de uma política de privilégios na região.

Ariane Carvalho da Cruz, por sua vez, em “‘Para compreenderem os interesses da Monarquia de Portugal na conservação dos Domínios de África’: Militares, reforma e disciplina em Angola (segunda metade do século XVIII)”, examina algumas das políticas portuguesas referentes ao Reino de Angola, e o papel dos militares para a implementação destas proposições.

Por último, Antonio Filipe Pereira Caetano, em artigo nomeado “‘Pus os santos óleos no párvulo…’: Cotidiano, População, e Relações Escravistas na Vila de Santa Maria Magdalena Alagoas do Sul (1812-1814)”, esquadrinha, em consulta aos livros de batismo armazenados no Arquivo da Cúria Arquidiocesana de Maceió, um minucioso diagnóstico da população de Marechal Deodoro (antiga Vila de Santa Maria Magdalena de Alagoas do Sul), no início do século XIX, mormente com foco nos grupos escravistas presentes na localidade.

Encerra a presente edição a interessante resenha de Adson Rodrigo Silva Pinheiro sobre o último livro de Eduardo França Paiva, “Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII”, convite a mergulhar nos usos de definições, categorias ou hierarquizações que definem a Ibero-América no período supracitado.

Boa leitura! E que outras Ultramares singrem os mares da História.


Organizador

Angelo Adriano Faria de Assis – Graduado (Licenciatura e Bacharelado) em História pela Universidade Federal Fluminense (1995), mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (1998), doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2004) e Pós-doutorado pela Universidade de Lisboa (2011). Atualmente é Professor Associado I da Universidade Federal de Viçosa, onde atua na Graduação em História e como Professor Permanente nos Programas de Pós-Graduação do Mestrado Acadêmico em Letras e do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania. É pesquisador da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, da Universidade de Lisboa. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Colônia, atuando principalmente nos seguintes temas: Inquisição no Brasil; Inquisição no mundo ibérico e colonial; religiões e religiosidades no mundo iberoamericano; criptojudaísmo; cristãos-novos; ensino de história; literatura, história e memória. E-mail: angeloassis@uol.com.br

ASSIS Angelo Adriano Faria de (Org d)


Referências desta apresentação

ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Apresentação. Revista Ultramares. Maceió, n.7, v.1, jan./Jul. 2015. Acessar publicação original [DR]

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