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Inquisição, 200 anos depois de seu fim: o que era, o que ficou e o quanto somos fruto dela? | Escritas do Tempo | 2021

Desdobramento das revoluções liberais que, a partir do movimento iniciado no Porto, em 1820, implementava uma monarquia constitucional em Portugal, em 31 de março de 1821, as Cortes Gerais do Reino aprovaram por unanimidade de votos o decreto que extinguia o Tribunal do Santo Ofício em Portugal, pondo fim a quase três séculos – e dezenas de milhares de denúncias, confissões, investigações, processos, réus e vítimas depois – de atuação da Inquisição portuguesa.

Passados duzentos anos, ainda é possível perceber as permanências dos tempos de Inquisição no mundo português, bem como encontrar, desgraçadamente, sintomas, reflexos e aproximações entre os rigores promovidos em nome da Misericórdia e Justiça, tema do tribunal, e o inacreditável mundo de negacionismos e intolerâncias em que nos vemos mergulhados, um pouco por todo o lado, um muito sobre a nossa parte…

Os estudos sobre o Santo Ofício e seus personagens, sejam aliados, membros da hierarquia inquisitorial, investigados e processados despertaram o interesse de estudiosos desde os primeiros anos após o encerramento do tribunal. Enumeramos gerações de pesquisadores tanto em Portugal quanto no Brasil que se debruçaram sobre a tão rica quanto vasta documentação produzida pelo Santo Ofício em busca de analisar os seus meios de atuação, interesses e estrutura organizacional, as personagens, os impactos de sua atuação pela Modernidade lusa.

Nas últimas décadas, as novas tecnologias e o processo de expansão universitária têm permitido que um número crescente de interessados (e cada vez mais cedo) possam ter acesso à uma infinidade de documentos produzidos em nome da Inquisição, disponibilizadas em formato digital em diversos acervos documentais online – destaque, claro, para o site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, que reúne os milhares de processos da Inquisição portuguesa.

Resultado deste acesso democratizado às fontes é o aparecimento de pesquisas com abordagens as mais distintas e inovadoras, cruzando fontes de arquivos variados, relacionando as formas de trabalho e análise do historiador com outros campos do conhecimento. Nunca, é certo, se estudou e produziu tanta pesquisa sobre o Tribunal. Prova disto são os variados esforços de interpretação que têm ocorrido em 2021 (e que continuarão em 2022) sobre o Santo Ofício por conta da celebração dos duzentos anos de sua extinção: eventos acadêmicos, livros, artigos científicos, dossiês.

Também a respeito das questões analisadas pela historiografia nos últimos anos, destaca-se a riqueza das fontes inquisitoriais e as múltiplas possibilidades de investigação que elas oferecem, sendo cada vez mais exploradas temáticas cujos impactos facilmente se sentem ainda em nosso cotidiano, como as relações de gênero e o controle sobre os corpos, problemas abordados neste conjunto de textos. Voltar às fontes, com novas perguntas e olhares, os historiadores sabem bem, sempre permite interpretações que ajudem a compreender estas questões em diálogo com o nosso tempo.

Este dossiê, cabe dizer, é proposto por três pesquisadores que atuam em diferentes universidades brasileiras – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Universidade Federal da Bahia e Universidade Federal de Viçosa –, parceiros de longa data e que têm construído suas carreiras na investigação sobre a Inquisição e seu mundo. Nesta proposta, convidamos pesquisadores do tema a refletirem acerca do Santo Ofício em suas diversificadas nuances. Os artigos que recebemos para compor a cartela de temáticas aqui apresentada é composta por pesquisas que abordam o Tribunal em variados recortes, com pesquisas em diferentes momentos de desenvolvimento, algumas inclusive de pesquisadores reconhecidos e celebrados na área, e está assim dividida:

Em Inquisição e Audiovisual: A Representação do Santo Ofício Português no Cinema e na Televisão Brasileira entre a Década de 90 e Os Anos 2000, Rossana Britto nos traz uma análise sobre as diversas interpretações do tribunal nas obras audiovisuais brasileiras da década de 90 do século XX anos 2000, pensando seus usos e possibilidades pedagógicas em instituições de ensino fundamental e superior.

O artigo de Fermina Alvarez Alonso, Breve panorama histórico sobre el Tribunal Inquisitorial de Cartagena de Indias (1610-1820), apresenta uma análise sobre a atividade do tribunal de Cartagena em um estudo detalhado sobre os delitos por ele vigiados, processos instaurados e sentenças impostas a suas vítimas, bem como sobre os funcionários que davam vida à instituição, tendo como contraponto os demais tribunais enraizados na América hispânica.

Em Entre a Cruz e a Menorá: uma tipificação possível para o estudo do criptojudaísmo no contexto da Inquisição portuguesa (XVI–XVIII), artigo de Anderson Moura, são examinados os comportamentos dos cristãos-novos que costumeiramente atraíam a vigilância inquisitorial. Em um esforço de definição conceitual, o texto aborda a religiosidade multifacetada deste grande grupo que constituiu o principal alvo da Inquisição portuguesa – os cristãos-novos.

Fernando Oliveira Júnior e Raquel Parmegiani trazem, em O sabá oculto em A orgia dos duendes e a bruxa como o outro, um estudo sobre os impactos dos estereótipos que marcaram a perseguição à magia e à feitiçaria pelos tribunais inquisitoriais modernos na poesia gótica de Bernardo de Guimarães.

Por fim, Ronaldo Vainfas, em Sacralidade erótica em processos inquisitoriais portugueses, analisa o processo de Joseph Rodrigues Manteigas, pensando as relações de gênero no Portugal Moderno a partir dos entrecruzamentos entre a vigilância sobre a sexualidade e sobre as práticas de curandeirismo e feitiçaria, examinando o caso de Manteigas à luz de outros célebres processos já estudados pela historiografia.

O novo número da Escritas do Tempo também conta com contribuições na seção de Artigos Livres. A historiadora Mariana Schlickmann apresenta o artigo intitulado Um rio chamado Atlântico: a diplomacia brasileira navegando de volta ao ancestral continente africano (1950 – 1960). O artigo Racismo e Antirracismo: uma breve história do Movimento Negro paulista das primeiras décadas do século XX é de autoria do também historiador Willian Robson Soares Lucindo. Por fim, destaque também para o artigo intitulado “Não existem fatos, só existem histórias”: nação e identidade nacional no romance “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, escrito por Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio e João Matias de Oliveira Neto. Na seção de entrevistas, a revista conta com a participação mais que especial de James Green, entrevistado pelos docentes Erinaldo Cavalcanti e Geovanni Gomes Cabral.

Este dossiê é também uma homenagem e forma de reconhecimento a um dos mais importantes nomes da pesquisa historiográfica acerca da Inquisição, dos cristãos-novos e da intolerância religiosa no Brasil e no mundo luso: a Professora Anita Novinsky, falecida neste ano, e referência obrigatória para todos que estudam o tema. Foi responsável por incentivar diversas pesquisas e formar gerações de historiadores que se debruçaram e se debruçam sobre o tema. De certa forma, todos os trabalhos aqui presentes representam este seu importante legado. A História, e todos os que lutam contra quaisquer formas de injustiças e preconceitos, agradecem por sua valiosa obra.

Esperamos que esse dossiê seja uma oportunidade de diálogo e debate em que as questões postas no título do dossiê possam ser repensadas – o que era a Inquisição, o que ficou desta e o quanto somos fruto dela.

Boa leitura a todos!

Viçosa,

Rio de Janeiro,

Salvador, 2021


Organizadores

Angelo Adriano Faria de Assis – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF – e professor da Universidade Federal de Viçosa – UFV.

Juliana Torres Rodrigues Pereira – Doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – e professora da Universidade Federal da Bahia – UFBA.

Yllan de Matos – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF – e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.


Referências desta apresentação

ASSIS, Angelo Adriano Faria de; PEREIRA, Juliana Torres Rodrigues; MATOS, Yllan de. Apresentação. Escritas do Tempo. Pará, v. 3, n. 9, p. 08-11, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Itamar Freitas

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