Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV) | Simone Ferreira Gomes de Almeida

Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV), de Simone de Almeida, foi fruto de uma pesquisa de doutorado produzida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus Franca – com direito a um período sanduíche na Universidade de Múrcia, na Espanha. Inicialmente com o nome de Influxos do céu na existência dos homens. Os escritos astrológicos na Península Ibérica (séculos XIII, XIV e XV), o trabalho destinou-se a analisar os escritos astrológicos produzidos na Península Ibérica do período. Na publicação, a autora preferiu alterar o título (ou seus editores) para que este funcionasse melhor no mercado editorial. Segundo consta em seu currículo Lattes, Simone de Almeida no momento não leciona em nenhuma universidade, sua última produção consta como um pós-doutorado na Biblioteca Nacional, onde se dedicou a tradução do El sumario de las maravillosas y espantables cosas que en el mundo han acontescido, de Álvaro Gutiérrez de Torres (obra datada do século XVI), findo em 2017. A autora também é membra do grupo de pesquisa Escritos sobre os novos mundos, com sede no campus Franca da Unesp; também é de sua autoria o livro A figura do herói antigo nas crônicas medievais da península Ibérica (séculos XII e XIV), 2 fruto da sua tese de mestrado.

O livro propriamente dito conta com um prefácio primoroso de Alejandro García Avilés, professor catedrático de História da Arte na Universidade de Múrcia, Espanha, que discorre de maneira geral sobre os usos da astrologia em contexto ibérico. Na apresentação da obra, Simone de Almeida menciona, sobretudo, a corte cosmopolita de Afonso X de Castela e Leão (ou el rey astrólogo, cujo reinado se estendeu entre 1252 e 1284, e que contava com muçulmanos e judeus trabalhando lado a lado com cristãos na sua corte), o ensino da astrologia nas universidades europeias e algumas críticas feitas a prática pelos doutores da Igreja – sobretudo Santo Agostinho – a astrologia. A obra conta com três longos capítulos e seu foco é direcionado principalmente em duas cortes de monarcas ibéricos: na já citada corte de Afonso X de Castela no século XIII – as fontes3 usadas pela autora foram produzidas, em sua maioria, sob a tutela deste monarca -, e de D. Duarte I de Portugal no XV- conhecido como o rei-filósofo, dono de uma notável produção intelectual; com atenção um pouco maior no caso de Afonso X, até mesmo por questão de abundância de fontes. São nessas duas balizas temporais em que Simone de Almeida desenvolve o seu texto.

O primeiro capítulo chama-se “O Saber Inspirado nos Indícios do Céu”, onde a autora investiga a Sciencia Stellarum, ou seja, a retomada da produção científica (e astrológica) na baixa Idade Média Ibérica. Simone de Almeida foi buscar as origens da astrologia entre os assírios, sumérios, babilônicos e caldeus. Além disso, também nos é apresentado a noção de cosmos estabelecido na antiguidade e no medievo; um cosmos geocêntrico baseado, principalmente, na noção apresentada por Aristóteles em Sobre o Céu e posteriormente corroborado por Cláudio Ptolomeu em Quadripartitum. Neste caso, contaríamos com sete céus, sendo o oitavo deles o campo de estudo dos astrólogos (ou firmamento, dependendo da fonte, como usado por Johannes de Sacrobosco no séc. XIII), no nono céu era onde se encontrava o Reino de Deus.

É possível observamos no decorrer do século XIII um renascimento dos estudos astrológicos na península Ibérica, alçado, entre outros fatores, na permanência de textos produzidos pelos muçulmanos; dada a abundância deste material, muitos destes textos foram traduzidos para o latim (e por vezes diretamente para o castelhano) na notável oficina de tradutores de Toledo mantida por Afonso X.4 É interessante observar a predileção pela tradução de escritos relacionados a temas místicos e astrológicos. Para defender-se da acusação de clérigos a respeito da heresia astrológica,5 Afonso X elabora uma divisão entre “astrologia supersticiosa” e a “astrologia judiciária”: a versão supersticiosa seria aquela praticada pelos pagãos e hereges, atente contra o livre-arbítrio, e esta sim poderia ser considerada herética; a versão “judiciária” seria a parte “nobre” da astrologia, essa para Afonso X continha um caráter “virtuoso”, além de um valor político importante, ajudaria ele e demais nobres a tomarem decisões importantes para a gestão do reino; segundo a própria autora, “a astrologia seria mais um fator no planejamento afonsino para ajudar a pensar o homem moral e juridicamente”.6 Em suma, para Afonso X a astrologia foi aplicada em tudo referente a política do reino, principalmente para marcar as datas mais convenientes – segundo os astros – para realização de casamentos, acordos políticos, expedições militares, início de construções, dentre outras situações.

Na universidade de Salamanca, bastante patrocinada por Afonso X, a astrologia fazia parte do Quadrivium juntamente com outras artes liberais, pois, parafraseando Lídio “através da astrologia se conhecia melhor as outras ciências, tais como o direito e a medicina”.7 Neste caso era ensinada juntamente com a matemática e a medicina8, onde se faziam inúmeras analogias dos astros com o corpo (inclusive relacionando signos do zodíaco com órgãos humanos). A autora menciona que somente no século XV que a astrologia foi trabalhada numa cátedra exclusiva; porém, de uma forma semelhante a astronomia que conhecemos hoje, destinada principalmente a mapear as estrelas para a navegação em alto-mar.9

Em Portugal, Simone de Almeida demonstra alguns fatores dado o fato da astrologia não ter criado raízes tão profundas como em Castela, a autora menciona que, pelo fato deste reino ter tido um crescimento urbano mais lento do que o reino vizinho, as universidades demoraram para surgir, sendo a primeira formada em Lisboa em 1290. O conhecimento astrológico só vigora em terras lusitanas de fato após a compilação das obras afonsinas e a publicação do Tratado da Esfera de Johannes de Sacrobosco em 1230. No decorrer dos capítulos subsequentes, a autora coloca que em Portugal o conhecimento acerca dos astros se deu majoritariamente por conta da expansão marítima -, além de D. Duarte, o rei-filósofo, se demonstrar um cético perante a astrologia e suas previsões.

Em “Influências Astrais e Previsões”, Simone de Almeida aprofundou alguns temas sublinhados no primeiro capítulo e, de maneira geral, procura dar maior enfoque a outras localidades da península Ibérica. O novo capítulo inicia-se dando maior enfoque ao rei D. Duarte, até mesmo como uma tentativa de o antagonizar ao Afonso X; isto é: um rei igualmente letrado, que detinha uma notável produção intelectual na sua corte, cristão, mas que não se mostrava afeito à astrologia. No Leal Conselheiro, um tratado político moralizante produzido por D. Duarte (destinado aos membros de sua corte e publicando no ano de falecimento do monarca, 1438), o rei-filósofo lista várias práticas adivinhatória de seu tempo, que iam da geomancia à necromancia (incluindo a astrologia), da qual o rei imprimiu certa aversão por atentarem ao livre-arbítrio, apesar de considerar certo prestígio que detinham.10

É destacado que certos críticos atribuíam o reinado curto de D. Duarte como resultado de seu ceticismo perante os astrólogos, afinal de contas o monarca permaneceu apenas quatro anos no trono (1434-1438); seu irmão, o Infante D. Henrique, foi amplamente exaltado por conta de seu signo – Áries – que definia seu ímpeto guerreiro, e o ajudou a conquistar Ceuta, no norte da África, em 1415. Não foi somente a vitória de D. Henrique que foi atribuída a causas astrológicas, D. João I – fundador da casa de Avis – teve sua vitória perante os castelhanos em 1383 imputada a um eclipse reportado no momento da batalha e a entrada do Sol na casa de Leão. 11 Para reconstruir o pensamento português quatrocentista, Simone de Almeida também se utiliza do Livro da Virtuosa Benfeitoria publicado pelo Infante D. Pedro, irmão de D. Duarte, em 1418.

A partir deste ponto a autora volta-se para o Reino de Aragão. Através de uma carta escrita pelo médico da corte (um judeu) e dirigida ao rei João II de Aragão, a respeito de uma cirurgia feita em seu olho direito no dia 11 de setembro de 1468; nela foi recomendado uma espera de doze anos para que houvesse condição astrológica para a realização do mesmo procedimento de forma satisfatória no olho esquerdo. Já que tal espera era demasiada, o médico optou por adiantar a cirurgia e realizá-la no dia 12 de outubro do mesmo ano, apesar das condições astrológicas não serem ideais.12

O terceiro e último capítulo recebeu o título de “A Determinação dos Astros sobre o Que Há de Vir”. Em suma a autora faz aqui uma recapitulação das críticas da Igreja a respeito da astrologia até o século XVI. O capítulo inicia-se com as críticas dos primeiros padres da Igreja à astrologia, inclusive com a atribuição desta como uma prática demoníaca segundo Agostinho. A autora se aprofunda na argumentação do Bispo de Hipona contra os astrólogos nas Confissões e na Cidade de Deus e, basicamente, toda a argumentação patrística acerca da astrologia foi de que a mesma atenta ao livre-arbítrio. São João Crisóstomo e São Gregório Magno também alertaram seus fiéis a respeito dos “perigos da astrologia e de interpretar o evangelho a luz da mesma”.13

A maioria dos teólogos Ibéricos iram recorrer a patrística numa tentativa de combater a astrología: Martín Pérez, Lope de Barrientos, Nicolas Eymerich e António de Beja, todos eles escreveram contra a astrologia atribuindo-lhe como um atentado ao livre-arbítrio e/ou relegando-lhe ao satanismo – quando não, tal como Eymerich em Aragão no final do XIV, colocava a astrologia e o satanismo no mesmo patamar.14

Alguns poucos se colocaram do lado da astrologia, tal como Roger Bacon. Segundo o franciscano, a astrologia ajudaria o homem a conter seus impulsos, além da Igreja poder fazer bom uso das previsões de uma forma auxiliar na expansão do cristianismo.15 No final do capítulo a autora retoma Afonso X e a sua crença na virtuosidade da astrologia; afinal, estudar os astros significava decifrar o Criador, e as menções ao Deus cristão eram frequentes nos textos astrológicos afonsinos – mesmo com a maioria dos seus estrelleros sendo judeus ou muçulmanos.16

Simone de Almeida conclui seu trabalho com a seguinte forma: na prática, Afonso X não fez distinção entre uma astrologia natural e outra supersticiosa. Na sua corte o uso da astrologia era amplo, sendo todos os âmbitos da política afonsina influenciada pelos astrólogos protegidos do rei. Além disso, no horizonte daqueles que se opunham à prática astrológica, as principais críticas à astrologia por teólogos católicos decorreram em torno do caráter moral, e não a respeito de sua funcionalidade ou não; de certa forma, havia uma crença generalizada na astrologia, o problema era justamente a questão do livre-arbítrio, se convinha a prática ou não.

No final da conclusão, Simone de Almeida anexa uma cronologia separada reino por reino das fontes utilizadas em seu trabalho.

Apesar da autora não os ter citados, foram escassos os pensadores que tentaram contrapor a astrologia por vias científicas antes da Revolução Científica do XVI;17 de fato, como o historiador da ciência Paolo Rossi nos mostra, a astrologia só teve sua legitimidade de fato refutada com os trabalhos de Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Johannes Kepler e Isaac Newton. Sexto Empírico, filósofo pirrônico da virada do século II para o III d.C., foi um deles. Sexto Empírico esquematizou em seu tratado Contra os Astrólogos uma crítica destinada a refutar passo a passo a astrologia praticada pelos caldeus.

Ao fim e ao cabo, o livro de Simone de Almeida traz uma enorme contribuição para a historiografia brasileira em preencher uma lacuna sobre a astrologia do período. As publicações brasileiras em muitas das vezes abordam somente corte de Afonso X e a sua grande produção intelectual, mas nenhuma até agora teve a destreza apresentada por Simone de Almeida em articular a astrologia afonsina com o contexto intelectual ibérico. Um grande mérito da autora merece ser destacado: apesar de um recorte grande (quase 300 anos) o texto se demonstra coeso e coerente. A autora nos apresenta a Castela do século XIII e Portugal do XV com desenvoltura, maestria e rigor historiográfico. De fato, é uma obra em que o pesquisador interessado em astrologia, ou em seus críticos, irá se deparar com um texto bem escrito, com fontes abundantes e bem fundamentado.

Notas

2 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. A figura do herói antigo nas crônicas medievais da península Ibérica (séculos XII e XIV). São Paulo: Editora Unesp, 2013.

3 Tais como: Las Tablas alfonsíes (1252), o Libro De Las Cruzes (1272), e o Libros del saber de astronomía (1279), todas fontes citadas por Simone de Almeida no seu trabalho.

4 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 43.

5 Os Doutores da Igreja, como Santo Agostinho, são considerados notórios opositores da astrologia. Simone de Almeida irá trabalhar melhor a crítica deles no terceiro capítulo.

6 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 51.

7 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 88.

8 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 67.

9 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 89.

10 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 105.

11 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 123.

12 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 118.

13 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 196.

14 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 188-189.

15 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 202.

16 ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018, p. 217.

17 A descrença à astrologia desenvolvida durante a Revolução Científica é trabalhada de forma primorosa em: ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da Revolução Científica. São Paulo: Editora Unesp, 1992.

Referências

ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. A figura do herói antigo nas crônicas medievais da península Ibérica (séculos XII e XIV). São Paulo: Editora Unesp, 2013.

ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018.

ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da Revolução Científica. São Paulo: Editora Unesp, 1992.

SEXTO EMPÍRICO. Contra os astrólogos. Tradução e notas por Rodrigo Pinto de Brito e Rafael Huguenin. São Paulo: Editora Unesp, 2019.


Resenhista

Rodrigo Fernandes Vicente – Graduando em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). http://lattes.cnpq.br/0106227600662169


Referências desta Resenha

ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV). São Paulo: Editora Unifesp, 2018. Resenha de: VICENTE, Rodrigo Fernandes. A prática astrológica na península ibérica durante a baixa Idade Média. Revista Hydra. São Paulo, v.4, n.7, p. 401- 408, dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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