A proposta de organizar o dossiê temático Infância e Educabilidades na Revista Nordestina de História do Brasil (RNHB) incide no interesse em divulgar este campo historiográfico e a sua produção na Bahia. Parte do interesse conjunto das organizadoras em apresentar as possibilidades de articulações e relações entre o campo de pesquisa histórica sobre a Infância com aquelas referentes às diversas formas de sua Educabilidade – na Escolarização ou Educabilidade Formal; nas Educabilidades Informais; e nas Educabilidades Não-Formais, na perspectiva daquelas que ocorrem em diversas relações socio-históricas. O âmbito espacial é o Brasil, contemplando qualquer período de sua história.
Por infância compreendemos como uma classe especial de pessoas qualitativamente e hierarquicamente diferentes dos adultos, cujos critérios para definir esta fase da vida humana são social e historicamente condicionados.
E como afirma Neil Postman:
Não devemos confundir, de início, fatos sociais com ideias sociais. A ideia de infância é uma das grandes invenções da Renascença (…) a infância, como estrutura social e como condição psicológica, surgiu por volta do século XVI e chegou refinada e fortalecida aos nossos dias.[1]
Dessa forma, alguns autores, como Postman, defendem que a ideia de infância surgiu associada diretamente ao desenvolvimento da prensa gráfica, que possibilitou a impressão de livros, e, consequentemente, o acesso democrático à leitura, alfabetização socializada. Surgindo, portanto, o fenômeno da escolarização que tinha como alvo a criança.
Outro historiador de grande destaque e um dos pioneiros em história da infância é Philippe Ariès, em seu livro História Social da Criança e da família [2]. Este autor, embora não discorde da importância da escolarização na construção da infância, enfatiza as mudanças nas relações familiares resultantes da economia capitalista e do surgimento de uma classe burguesa para explicar a origem da ideia de infância e as subsequentes práticas voltadas para promover a socialização deste grupo de forma diferenciada dos adultos. Ariès dialogou diretamente com a segunda geração da Escola dos Annales, dedicando-se à produção de uma história da infância através de uma história das mentalidades. É inegável a influência deste autor na história da família e da infância no Brasil, que, no início, recorre principalmente aos estudos demográficos para estudar estes campos historiográficos. Uma das pioneiras a estudar a história da infância foi a historiadora Maria Luiza Marcílio. Esta, a partir de pesquisas desenvolvidas no Centro de Estudos Demográficos e Históricos na América Latina (CEDHAL), publicou, em 1988, o livro História Social da Criança Abandonada. A autora demonstrou o universo da criança abandonada e sem família desde o período colonial até as primeiras décadas do século XX [3].
No final década de 1990, a história da infância no Brasil aproximou-se da história social da cultura, enfatizando os aspectos sociais, de gênero e de raça que definem e redefinem a infância, nos mais diferentes períodos históricos. Da mesma forma, a história da educação ampliou seu escopo para as questões de escolarizações e educabilidades. Incorporou também as proposições da História Cultural e da História Social. Acompanhando estas novas tendências da história da infância e da história da educação/escolarização/educabilidades, o nosso dossiê objetivou aglutinar pesquisas diferenciadas sobre estas interfaces historiográficas. Uma das propostas no dossiê temático foi a de que os artigos apresentassem pesquisas empíricas feitas para a Bahia/Brasil, espaço histórico-geográfico e sociopolítico da norma editorial da RNHB, nas suas múltiplas temporalidades, assim como, com usos de fontes históricas dos mais variados espectros.
Quanto aos recortes e problematizações, o interesse foi que estes enfoquem nas subtemáticas referentes às intersecções dos amplos campos temáticos entre Infância e Educabilidades, tais como os projetos institucionais de asilamento e proteção à infância; as infâncias, suas educabilidades e as relações de classe, gênero e raça; as propostas de instituições escolares para a infância; a infância presente nos impressos pedagógicos, livros e materiais didáticos para a educabilidade da infância: a infância nas reformas educacionais; as territorialidades e cartografias da infância e das suas educabilidades; categorizações e classificações de infância nas escolarizações e medicalizações, articuladas ou não: usos da mão de obra infantil articuladas à escravidão, liberdades, à formação de ofício e profissionalização nas suas articulações com educabilidades; resistências e táticas de sujeitos anônimos e subalternos em diversos espaços e formas de educabilidade e experiências de ou com a infância; infâncias e trabalho, bem como a idealização da infância e do amor materno e seu oposto, a negação da maternidade.
Assim, os artigos do dossiê Infância e Educabilidades apresentam algumas das atuais investigações sobre estas temáticas, no esforço de ampliar e divulgar o campo. São sete artigos, que, temporalmente, referem-se três à primeira República; um ao período do Segundo Império e sua sociedade escravista; um às lembranças e memórias deste período imperial e dois ao período mais recente do Brasil. Recobrem à Bahia, enquanto espaço geográfico e administrativo, ao enfocarem sujeitos da capital – Salvador –, dos “sertões” de Feira de Santana, Juazeiro, Caetité – do recôncavo –, São Gonçalo dos Campos, e do baixo Sul-Marau e Camamu.
São trabalhos realizados por pesquisadores (as) no âmbito de cursos de pós-graduação e graduação, assim como na pesquisa continuada de caráter profissional do (a) historiador (a). A ordem de apresentação escolhida pelas organizadoras foi a do recorte de ordem alfabética dos autores (as).
Andréa Barbosa e Camila Mota em Nem presa, nem morta: direitos reprodutivos no Brasil e o movimento feminista abordam o debate sobre a negação do mito do amor materno mediante a análise do aborto no Brasil e a associação entre a maternidade e a maternagem como atributo exclusivo da reprodução e do “destino biológico” dos corpos femininos. Para tanto, recorrem ao argumento de que a imposição da culpa e do pecado às mulheres que praticam o aborto é decorrente de uma mentalidade que impõe unicamente à mulher os cuidados e a socialização da criança. A naturalização da maternagem, ou seja, os cuidados e a educação de uma criança são atribuídos a uma suposta natureza feminina. Dessa forma, para investigar este processo de criminalização da negação da maternidade através do aborto, as autoras analisam a legislação penal brasileira que criminaliza esta prática, especificamente o Capítulo I do Código Penal de 1940 e a historicidade deste código. Da mesma forma, investigam o perfil das mulheres que abortam no Brasil mediante a análise da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada no ano de 2016, assim como a posição das teorias feministas acerca da reprodução. Por fim, as autoras concluem que transpor as desigualdades de classe e gênero e alcançar a equidade dentro da sociedade de classes é preciso para dar às mulheres o direito de escolher ou não ser mãe.
Em espaço interiorano, a cidade de Juazeiro, na Bahia, o artigo O Aprendizado Agrícola de Juazeiro e o ensino para pobres e negros (Bahia, 1909-1930) de Daiane Silva Oliveira e Maurício de Oliveira da Silva trata da experiência de educabilidade da criança rural, sertaneja, no Aprendizado Agrícola instalado nesta cidade, em 1910. Apresenta pesquisa empírica sobre esta instituição entre 1919-1930, e problematiza a sua criação como parte dos desdobramentos dos projetos civilizatórios republicanos e suas elites agrárias. Os autores destacam que estes aprendizados foram instalados em outros estados do país, de acordo com um critério de “tradição agrícola”. A escrita apresentada priorizou destacar nos aprendizes desta instituição – meninos e meninas – a evidência da presença de crianças pobres e negras a partir de um conjunto de fotografias de 1920, com a metodologia de heteroatribuição da classificação racial, conforme Maria Lúcia Muller [4]. Além desse registro fotográfico, foram utilizados documentos oficiais como as mensagens de Presidentes da República, Relatórios, mensagens e diversos Comunicados oriundos do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC) do Brasil.
Ione Sousa e Bruna Santana da Silva trazem a primeira referência ao século XIX, ao Segundo Império e à sociedade escravista brasileira com Ingênuos (as) e seus serviços: estratégias de usos e modos de fuga (Bahia, 1874-1900). As autoras apresentam algumas experiências nos usos da mão de obra de ingênuos na Bahia, temática já percorrida pelas mesmas, pelo uso de dispositivos legais como a Tutoria e a Assoldada para a circunscrição do trabalho do (a) “ingênuo (a)” – o (a) filho (a) da mulher escrava nascido (a) livre por força da Lei 2040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre. São educabilidades no trabalho do labor na lavoura, no qual mães-cativas e sua parentela deveriam preparar futuros trabalhadores (as) na mesma sujeição. Mas nem sempre esta estratégia deu certo pelas ações contrárias de mães, parentes e dos próprios (as) ingênuos (as). Lançando mão de uma rica documentação que registra as relações entre as crianças ingênuas, suas mães, proprietários e ex-proprietários escravistas, tutores, assoldadores, Curadores de Órfãos, Juízes de Órfãos, destacam sujeitos que protagonizaram experiências contundentes nas lutas pela liberdade no cativeiro que existiu no Brasil.
Jacson Lopes Caldas n’A infância negra e o aprendizado de saberes populares femininos: memórias da ceramista Crispina dos Santos e da artesã Marilene Brito em Feira de Santana – BA traz narrativas sobre a educabilidade do saber-fazer de práticas de artesanato familiar feminino e popular via as memórias da ceramista Crispina dos Santos e da artesã Marilene Brito. São saberes transmitidos por gerações de mulheres negras – em lugares de memória – destas sujeitas na cidade de Feira de Santana, que se entrelaçam, da infância à vida adulta, em aprendizados transmitidos no cotidiano de mães/avós/tias como táticas que possibilitaram o trabalho no comércio do artesanato popular como meio de sobrevivência durante a fase adulta.
Maria Cristina Machado de Carvalho em Tradições orais: memórias transgeracionais do trabalho de crianças escravizadas – São Gonçalo dos Campos (Bahia, 1880-1950) também trata dos aprendizados familiares no trabalho cotidiano, quanto às tensas experiências do trabalho da criança escrava. Enfoca as memórias familiares transgeracionais nas narrativas sobre experiências/conhecimentos/testemunhos relacionados à vida dos antepassados, transmitidos por meio das narrativas orais através das gerações no período de 1880 a 1950, em São Gonçalo dos Campos, local de intensa produção fumageira e de subsistência.
Ainda sobre o interior da Bahia, alto Sertão de Caetité e circunvizinhanças, Miléia Almeida em “O fructo de amores ilícitos”: Infanticídios na contramão do mito do amor materno (Alto Sertão da Bahia, 1890-1940) focaliza experiências de mulheres sertanejas pobres quanto à gravidez, aborto e infanticídio. Problematiza representações sobre a infância expressas em processos judiciais, artigos da imprensa, assim como ressaltadas nas práticas femininas costumeiras que estes registros permitem evidenciar. Considera que a concepção de infância “historicamente construída nas sociedades ocidentais”, assim como “o mito da maternidade inata”, serviram de base para a condenação de mulheres que vivenciavam outros valores socioculturais. Sob uma perspectiva da análise de gênero, o texto busca colocar as mulheres como sujeitos e provocar o debate de um “tabu histórico”.
O último texto deste dossiê, de Verônica de Jesus Brandão, O jardim de infância nas teses apresentadas pelos professores primários da educação pública do município de Salvador nas Conferências Pedagógicas (1913-1915) nos faz retornar à Salvador e à primeira República ao explorar a criação dos Jardins de Infância como espaços de educabilidade. Problematiza que embora esta forma de educabilidade não estivesse oficialmente elencada nos temas das referidas Conferências Pedagógicas, a importância das mesmas nos projetos de educadores a colocou em pauta, numa variedade de temas: currículo, espaços e reflexões dos docentes sobre o Jardim de Infância.
Assim, terminamos esta primeira tentativa de sistematização do campo, óbvio que com lacunas e omissões. Agradecemos à RNHB a iniciativa de submissão de propostas e o acolhimento da nossa.
Notas
1. POSTMAN, Neil. O desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999. p. 12.
2. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.
3. MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: HUCITEC, 1988.
4. MULLER, Maria Lúcia Rodrigues. Professoras Negras na Primeira República. Cadernos PENESB, Niterói, v. 1, n. 1, p. 21-68, 1999.
Andréa da Rocha Rodrigues Pereira Barbosa – Doutora em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Feira de Santana, BA, Brasil. E-mail: andrearocha66@hotmail.com Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8376-1945
Ione Celeste Sousa – Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Professora da UEFS Feira de Santana, BA, Brasil. E-mail: ionecjs@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9721-750X
BARBOSA, Andréa da Rocha Rodrigues Pereira; SOUSA, Ione Celeste. Apresentação. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.3, n.5, p.6-11, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
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