Em 2022 completaram-se 200 anos da(s) Independência(s) do Brasil. Datas marcantes costumam ser oportunidades instigantes para comemoração e reflexão. Afinal, transformam-se em uma oportunidade para revisitar temas e renovar olhares, interpretações e abordagens sobre eles. No caso dessa efeméride, foi o que aconteceu, dentro e fora da academia. Teses e dissertações, exposições, livros, sítios eletrônicos, seminários e simpósios, textos e um sem-número de artigos científicos foram produzidos ao longo deste ano (e ainda deverão continuar a ser publicados nos próximos), trazendo à tona antigas questões, mas fornecendo novos encaminhamentos e novas roupagens.
Comemorar o bicentenário da Independência não é somente voltar-se para o passado, mas é também refletir sobre os problemas apresentados pelo presente e sobre as expectativas com o futuro do país. Ao fim de 200 anos de emancipação, cabe perguntarmos que país é esse que foi construído e qual país desejamos daqui para frente.
Este dossiê procurou olhar para a(s) Independência(s) do Brasil como um processo que não se deu somente em 1822, mas que começou a se formar com a transmigração da corte portuguesa para o Rio de Janeiro e somente se concretizou definitivamente em 1831, com a abdicação de d. Pedro I. Um processo plural, conflituoso, de guerras por emancipação e, ao mesmo tempo, pela manutenção do território; de conflitos regionais e de grande esforço de centralização do país; de lutas pelo poder no âmbito político, mas também de mudanças (ou não) nos aspectos econômicos, sociais e culturais; de muitas tensões, mas igualmente de acordos diversos e acomodações.
Foi o momento de se refletir sobre a memória desse evento-chave na criação do Brasil tal como o conhecemos. Ocasião de construir novas memórias, que é matéria que abastece a história.1 Afinal, o que mais é comemorar senão rememorar, lembrar junto – conforme a etimologia da palavra latina commemorare? Esse número da revista Acervo veio com a intenção de provocar novas pesquisas e reflexões sobre a história e a historiografia desse acontecimento, e, dado o número de artigos recebidos, acreditamos que o objetivo foi alcançado.
Boa parte dos artigos analisa as repercussões da Independência nas províncias e as comemorações do seu centenário, em 1922, e do sesquicentenário, em 1972. Artigos, entrevistas e resenha compuseram o dossiê.
Bruno Balbino Aires da Costa analisa a obra historiográfica de Augusto Tavares de Lyra, historiador, advogado, criador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, deputado, governador daquele estado, ministro de diversas pastas. Seu objetivo é entender como Tavares de Lyra elabora um relato que organiza o tempo e o lugar do Rio Grande do Norte na narrativa e no tempo da nação, e, para tanto, desenvolve uma memória histórica da região a fim de destacar a repercussão da Independência dessa província no Norte. Esse seria o momento fundador de sua própria Independência, da Paraíba e de Pernambuco.
Renato de Mattos traz uma abordagem inovadora sobre o papel de José Bonifácio de Andrada e Silva na Independência, ao analisar as relações comerciais da família Andrada em Santos. O clã Andrada articula política, negócios, relações de mercado e suas implicações no processo de Independência. Mattos analisa o enraizamento dos interesses mercantis da família nas praças de Santos e do Rio de Janeiro e como seus membros aproveitaram a adesão ao projeto do Rio de Janeiro e de d. Pedro para defender seus interesses econômicos.
Marcelo Cheche Galves dedica-se aos estudos do sesquicentenário da Independência, quando a ditadura militar explorou as comemorações para conectar com o presente do “milagre econômico brasileiro”. O objeto da análise do autor é a reedição da obra História da Independência da província do Maranhão (1822- 1828), de Luís Antonio Vieira da Silva, mas seu objetivo não é centrar-se sobre o livro ou seu autor: o propósito é explorar os bastidores que conformaram a reedição do livro – as intenções, em que o conteúdo contribuía para o momento da efeméride, o formato do livro e as modificações adotadas para adequá-lo ao contexto comemorativo.
Guilherme Celestino, aproveitando-se do amplo número de impressos que veio à tona com a liberdade de imprensa, em 1821, centra sua análise na figura de José da Silva Lisboa. Se, em meio às crises militares do início de 1821, o futuro visconde de Cairu apresentou um papel político e combativo relevante a favor da causa do príncipe regente, o autor nos indica que, no ano seguinte, ele assumiu uma postura questionadora em relação àqueles que solicitavam a convocação de uma Assembleia Brasílica, a fim de discutir a adaptação das leis da Constituição portuguesa à realidade do reino do Brasil. Por meio do periódico Reclamação do Brasil, elaborou uma crítica contundente contra aqueles que podiam aventar a possibilidade de uma ruptura. Em seu texto, o autor procura mostrar que Silva Lisboa, longe de apresentar o papel de um simples conservador, visto por parte da historiografia, é um homem multifacetado, que, em seus combates pela palavra escrita, revela traços de um político que era um monarquista convicto, defensor da Casa de Bragança.
Luiz Mário Dantas Burity avalia os significados das comemorações do centenário da Independência, em 1922, na Paraíba, estado natal do presidente Epitácio Pessoa, primeiro presidente civil nortista do Brasil. A construção, na imprensa local, de um paralelismo entre o imperador d. Pedro I e o presidente Epitácio Pessoa visava destacar a importância do paraibano na presidência durante os dois momentos-chave: eram os chefes da nação na Independência e nas comemorações do seu centenário. Todo esse destaque dado a Epitácio Pessoa abria oportunidades para o atendimento de antigas demandas das elites nortistas na política nacional. O governo de Pessoa garantiu o repasse de recursos para obras contra as secas, como açudes, e também para obras que visavam ao desenvolvimento e à modernização da região Norte, o que representava uma tentativa de integração dessa região no projeto republicano de progresso do país.
Aristeu Elisandro Machado Lopes analisa a publicação Almanaque de Pelotas dos anos de 1922 e 1923, que apresenta as propostas e projetos de comemoração do centenário na cidade gaúcha. O almanaque, ilustrado com farta iconografia, era voltado para propagandear e promover a cidade, e incluía Pelotas nas comemorações nacionais, demonstrando o patriotismo de seus habitantes, mas, sobretudo, o progresso e a modernidade da cidade, integrada ao projeto republicano nacional de civilização, expresso na capital, o Rio de Janeiro, nas obras de melhoramento e na exposição do Centenário da Independência.
Cecília Soares, por meio de uma interessante análise de retratos de Estado de d. João VI e d. Pedro I, investiga como as vestimentas e acessórios presentes nessas pinturas e gravuras, entre 1808 e 1831, podem traduzir, em parte, os planos desses soberanos sobre a política do reino e, depois, do império do Brasil, bem como sobre o papel de monarca ou imperador. Estabelecendo um contraste entre o Antigo Regime e o Império Liberal, demonstra que as pinturas vão além da expressão do rosto. Escondem e traduzem, por meio da indumentária e de metáforas múltiplas, as faces diversas que adquiriram a regência e o reinado de d. João e o império civil e constitucional de Pedro I.
Jhonatas Elyel e Gilberto Noronha voltam-se para o estudo da imprensa vintista a fim de analisar as distintas concepções de Brasil que surgiram na aurora do Oitocentos. As gazetas da época veiculavam discursos políticos que, ao trazer as experiências do passado, mostravam as expectativas que os atores da época possuíam naquele momento histórico. Utilizando-se de diversos periódicos publicados no reino do Brasil, como O Conciliador do Maranhão, O Semanário Cívico, O Diário de Rio de Janeiro, e o periódico português O Astro da Lusitânia, procura demonstrar como as figurações do passado podem ser utilizadas para abordar o presente. Sentidos e interpretações diversas apresentam tempos históricos distintos e trazem à luz novas explicações sobre o papel dos impressos no processo da Independência do Brasil.
Em seguida, encontram-se entrevistas com alguns historiadores – Cecília Helena de Salles Oliveira (Museu Paulista/Universidade de São Paulo – USP), Isabel Lustosa (Centro de Humanidades, Universidade Nova de Lisboa), Luiz Carlos Villalta (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) e Andrea Slemian (Universidade Federal de São Paulo – Unifesp) – que procuram fazer um balanço do bicentenário, seja por meio de seus trabalhos, seja por meio do que aconteceu de expressivo nas comemorações desses 200 anos de Independência do Brasil.
Para terminar, uma resenha de Karulliny Silverol Siqueira sobre o livro de Hélio Franchini Neto Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823), que traz à tona conflitos e enfrentamentos militares, bem como negociações realizadas para a consolidação do império do Brasil. A importância do trabalho de Franchini Neto é contribuir para o fim da lenda rosada de uma Independência sem guerra e sem lutas, que constituiu um império civilizado na Ibero-América.
Em suma, textos diversos, que possibilitam repensar tanto o momento do bicentenário da Independência do Brasil, como também seu lugar para a história. Enfim, deixam uma pergunta para cada leitor responder: o que e como comemorar nesse lembrar em conjunto, frente ao momento distópico em que vivemos.
Aproveitem a leitura!
Nota
1 LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, p. 11-50.
Organizadores
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves – Uerj.
Renata William Santos do Vale – Arquivo Nacional.
Referências desta apresentação
NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; VALE, Renata William Santos do. Apresentação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, p. 1-4, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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