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CHALHOUB Sidney (Aut), Visões da liberdade/ uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (T), Companhia das Letras (E), MONTEIRO Marília Pessoa (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Escravidão, Liberadade, América – Brasil, Séc. 19
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade, uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Resenha de: MONTEIRO, Marília Pessoa. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.14, n.1, p.245-246, jan./dez. 1993.
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JANOTTI Aldo (Aut), O Marquês de Paraná: inícios de uma carreira política num momento crítico da história da nacionalidade (T), Itatiaia (E), Editora da Universidade de São Paulo (E), BARBOSA Bartira Ferraz (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Marquês de Paraná, Biografia, Honório Hermeto Carneiro de Leão, América – Brasil, Séc. 19
JANOTTI, Aldo. O Marquês de Paraná: inícios de uma carreira política num momento crítico da história da nacionalidade. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1990. Coleção reconquista do Brasil. 2.série, v.159. Resenha de: BARBOSA, Bartira Ferraz. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.15, n.1, p.225-227, jan./dez. 1994.
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WEYRAUCH Cléia Schiavo (Org-introd), ZETTEL Jaime (Org-introd), Memória/ cidade/ cultura (T), WEYRAUCH Cléia Schiavo (Res), Clio – UFPE (CRPHr),, Memória, Cidade, Cultura, Europa -, América -, Ásia, Séc. 19-20
WEYRAUCH, Cléia Schiavo; ZETTEL, Jaime. Organização e introdução. Memória, cidade, cultura. Resenha de: WEYRAUCH, Cléia Schiavo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p.159-165, jan./dez. 1996.
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Engenheiros do tempo e as visões de Agamenon: História e Memória (T), VANDERLEI Kalina (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Agamenon Magalhães, Engenheiros, Memórias, Estado de Pernambuco, América – Brasil, Séc. 20
Engenheiros do tempo e as visões de Agamenon: História e Memória. Resenha de: VANDERLEI, Kalina. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p. 167-173, jan./dez. 1996.
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FUNARI Pedro Paulo A. (Aut), Antiguidade Clássica. A história e a cultura a partir dos documentos (T), Editora da UNICAMP (E), MARTIN Gabriela (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Antiguidade Clássica, Europa – Itália, Europa – Grécia, Séc. (a.C) 08-01, Séc. 01-05
FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clássica. A história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. Resenha de: MARTIN, Gabriela. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p. 175-176, jan./dez. 1996.
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DRESSEL Heinz F. (Aut), Brasil de Getúlio a Itamar: quatro décadas de história vivida (T), Editora Unijuí (E), SANTOS Ana Maria Barros dos (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Getúlio Vargas, Itamar Franco, História do Brasil, Séc. 20, América – Brasil
DRESSEL, Heinz F. Brasil de Getúlio a Itamar: quatro décadas de história vivida. Ijuí: Editora Unijuí, 1997. Resenha de: SANTOS, Ana Maria Barros dos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.17, n.1, p.201-202, jan./dez. 1998.
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FERRAZ Socorro (Aut), Liberais e Liberais: guerras civis em Pernambuco no século XIX (T), Editora Universitária da UFPE (E), ALVES Tarcísio Marcos (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Liberais, Guerras Civis, Província de Pernambuco, Séc. 19, América – Brasil
FERRAZ, Socorro. Liberais e Liberais: guerras civis em Pernambuco no século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1996. Resenha de: ALVES, Tarcísio Marcos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.18, n.1, p.195-199, jan./dez. 1998.
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ACIOLI Vera Lúcia Costa (Aut), Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial (T), ASSIS Virgínia Maria Almoêdo de (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Administração Colonial, América – Brasil, Séc. 16-18
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial. Resenha de: ASSIS, Virgínia Maria Almoêdo de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.18, n.1, p.201-203, jan./dez. 1998.
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GEBARA Ivone (Aut), Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal (T), Vozes (E), GUIMARÃES Maria de Fátima (Res), Clio – UFPE (CRPHr), História Social das Mulheres, Feminismo, Teologia, América – México, América – Brasil, Séc. 17, Séc. 20
Quero em primeiro lugar saudar Ivone Gebara por sua coragem de Romper o Silêncio sobre a história social das mulheres e, sobretudo, destacar a inovação de uma teóloga mulher que se contrapõe de forma contundente às injustiças e às desigualdades. Quero destacar, sobretudo, o papel político desta obra.
Ao situar as mulheres no mundo da história da teologia, a autora estabelece uma relação fundamental entre a teologia e a vida social, na medida em que a teologia reflete as contradições do mundo social, onde a malignidade, muitas vezes, aparece, como coloca Gebara, como destino, desígnio de Deus, ou castigo pelos pecados ocultos, ou ainda, pelos pecados não purgados.
A fenomenologia do mal feminino aparece na dialética das malignidades identificadas pela autora como quatro formas do mal: o mal de não ter, não poder, não saber, não valer. Estes males atingem as mulheres e se manifestam com maior ou menor intensidade de acordo com suas inserções sociais.
O feminino como mal de não ter. Como satisfazer às suas necessidades e, sobretudo, efetivar as atividades de produção e reprodução da vida; como gerar e criar os filhos e filhas, administrar a vida doméstica e familiar em toda sua complexidade, papéis estes designados às mulheres. Como diz Gebara: “A vida das mulheres parece estar ligada a este aspecto primordial ou primário da manutenção da vida. Por conseguinte, o mal de não ter ou a falta do essencial para viver as atinge de modo particular”(p. 49).
O feminino como mal do não poder. Representado através da experiência de Violeta Parra, (p.60) que vivencia o seu não poder ao se filiar a um partido político de esquerda para participar do movimento de libertação do seu país e, paradoxalmente, vivencia sua luta pela liberdade às custas de sua própria liberdade. Isto nos remete a refletir sobre a saída das mulheres do mundo privado (do doméstico) para o mundo público (da política) que, no caso de Violeta Parra e de grande parte das mulheres que fazem este percurso via partidos políticos ou movimentos sociais, não experimentam uma mudança significativa no exercício dos papéis designados a elas, o que faz com que passem a exercer nesses novos espaços as mesmas atividades caracterizadas como femininas – de organização, manutenção entre outras – não conseguindo, na maioria das vezes, uma posição de igualdade na distribuição dos poderes com seus companheiros homens. Sendo reproduzidas no espaço público as situações de desigualdades e subordinações das mulheres nos espaços privados.
O feminino como mal de não saber. Gebara ilustra muito bem esse mal apoiando-se no exemplo da Irmã Joana Inês da Cruz, (p.62) do convento de São Jerônimo, no México, no século XVII. Qual o grande pecado dessa freira? Imiscuir-se no mundo das letras, querer provar das fontes do conhecimento – lugar eminentemente masculino, dirigido pela eclesiástica patriarcal romana, cuja divisão social do trabalho, sempre colocou para a mulher, o servir, a abnegação e a renuncia à capacidade de pensar. Pois bem, a Irmã Joana Inês da Cruz obteve como redenção o exílio do estudo e do conhecimento, com a sua adequação ao papel de serva, cuidando das atividades domésticas e das irmãs enfermas atingidas pela peste.
O feminino como mal de não valer. O valor é um lugar de dor para as mulheres. Mulheres valem como objetos, de prazer ou de ódio. A sociedade hierarquiza os seres humanos e multiplamente pune as mulheres, e as pune por sua condição de gênero, por sua condição de classe e pela cor de sua pele. As mulheres interiorizam esta hierarquização, onde elas estão em uma posição inferior, e purgam o seu sofrimento na malignidade de suas condições. É necessário que se leve em conta a extensão destas desigualdades entre os seres humanos e também as diferenças existentes entre as mulheres em suas vivências cotidianas. Deste modo, em diferentes classes sociais, em diferentes lugares e situações geracionais e étnicas, vivenciam-se diferentes situações de exploração da mulher.
Da realidade que coloca Gebara, existe uma tensão dialética que perpassa a construção da humanidade. Uma construção que decorre da consciência que cada ser tem do seu valor. Nos termos da autora “Quando o valor faz falta, as pessoas vivem um mal. “(p. 81) Existe uma confusão permanente entre as pessoas quanto à extensão e às possibilidades de afirmação do seu valor. Os carecimentos, as debilidades quanto ao acesso ao poder, o desconhecimento, a falta de reconhecimento e de pertencimento, fazem com que o mal se confunda com o bem e, como a autora coloca: ”No cotidiano de sua vida, o mal para elas parece ser a ausência de possibilidades de vida, a violência com a qual elas são tratadas, a insegurança à qual estão sujeitas, as faltas de calor e de afeição que caracterizam sua existência”. (p. 81/82)
Desde esta realidade, é necessário compreender o lugar das mulheres e as incompreensões que povoam o seu pensar e o seu agir, que dizem respeito ao bem e ao mal. Neste sentido, esta obra de Gebara é uma grata surpresa, pois só o olhar de uma teóloga feminista é capaz de discernir o mal travestido de bem, porque o mal de que Gebara nos fala, é um mal que anula as mulheres, impossibilitando a sua plenitude enquanto ser, quando nos deixa sem poder em nome do poder, quando nos deixa sem saber em nome do conhecimento, quando nos desvaloriza para gerar valor.
Esta leitura teológica feminista, considerando a mediação de gênero, revela o lugar subordinado das mulheres numa hierarquia social produzida por preconceitos que mesmo num discurso de igualdade de princípios como é o caso das teologias, mantiveram uma visão que desqualifica as mulheres.
Gebara cita, entre outras teóricas feministas, Joan Scott. A definição de gênero que faz Scott, constitui-se de duas partes e várias sub-partes, cujo núcleo essencial da definição baseia-se na conexão de duas proposições: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de significar as relações de poder”.1 Prosseguindo a definição de Scott, o gênero se constitui num contexto simbólico de múltiplas representações, tem efeitos normativos, fixa relações binárias e produz noções de subjetividade.
Neste sentido o homem e a mulher são construídos socialmente, desde uma cultura historicamente situada no tempo e dentro das circunstâncias possíveis, determinadas por essa temporalidade. Sujeitos de seu tempo, imersos em um conjunto específico de relações sociais historicamente situadas, cada ser mulher e homem, tem um grupo originário e está submetido às regras de comportamento que se firmam desde a ética hegemônica. Se em geral é assim, desde o ponto de vista da construção de sua especificidade de homem e mulher, são determinantes sua classe, raça, religião e a forma de inserção social na sociedade. Deste modo, a partir dessas variáveis fundamentais, constroem-se o ser mulher e o ser homem.
Na história do feminismo, principalmente a partir dos anos 60, houve uma busca sistemática de uma identidade coletiva das mulheres, tentando forçar sua legitimidade política. Neste curso, a busca por uma identidade coletiva única não respondia às cismas e dissidências dentro do movimento. Assim, as especificidades que transversalizaram a vida cotidiana das mulheres (por exemplo, etnia, classe, gênero, sexualidade, religião, etc.,) colocaram em dúvida a possibilidade de um sujeito universal desprovido de suas vivências específicas. Coube ao movimento repensar o novo sujeito contextualizado historicamente e, portando, diferenciado internamente.
Essa situação suscitou polêmicas no seio do feminismo. Sem embargo, em nossa compreensão, unir as mulheres em uma identidade de gênero única, crendo que todas as mulheres vivem as mesmas situações é ocultar a existência de distintas formas de vivenciar a opressão e, ao mesmo tempo, negar a existência de hierarquias existentes nas relações de poder entre mulheres que pertencem a diferentes classes sociais, grupos étnicos distintos e culturas diversas.
Um acontecimento importante dos anos oitenta, no nível da teorização, foi a constatação de que categorias como mulher, homem, masculino, feminino, possuem conteúdos históricos específicos e se toma analiticamente problemático tentar aplicar a estas categorias uma universalidade, sob pena de cometermos os mesmos erros que temos criticado. Estas preocupações são as mesmas trazidas por Gebara e suscitam o debate que se encontra na ordem dia do pensar feminista.
Considerando estas preocupações, nas quais a autora chama a atenção quanto ao uso da categoria gênero, que é não absolutizar a opressão das mulheres e o receio de se cair em construções utópicas universalizantes, que se mostraram incapazes de dar conta desta múltipla realidade, levando-nos a uma revisão de práticas e teorias.
Rompendo o silêncio. Uma fenomenologia feminista do mal é uma leitura instigante do início ao fim, possibilitando novas reflexões sobre o mal humano, particularmente o mal que atinge as mulheres.
Nota
1SCOTI, Joan, Gênero: uma categoria útil para a análise histórica, Tradução: Christine Rufino Dabat, Maria Betânia Ávila, Recife, SOS Corpo, 1996, p. 11.
Maria de Fátima Guimarães – Professora Visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE.
GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes, 2000. Resenha de: GUIMARÃES, Maria de Fátima. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.19, n.1, p.221-224, jan./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]
ELIAS Nobert (Aut), Sobre o Tempo (T), Jorge Zahar Editora (E), REZENDE Antônio Paulo (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Tempo, Duração, Passado
A concepção de tempo acompanha, sempre, a reflexão do historiador. No cotidiano, muitas vezes, não percebemos o quanto ela é valiosa, para que se possa organizar a vida e estruturar as possíveis identidades culturais da sociedade. O livro de Nobert Elias é um ensaio que traz subsídios importantes para se pensar o tempo como uma construção social. A dimensão simbólica do tempo é ressaltada o que ajuda a ver os objetos da cultura permeados pelas mudanças e permanências que marcam a construção da história. Elias critica a perspectiva newtoniana, mostrando que o tempo não é dado objetivo, mas também não embarca na perspectiva kantiana que vê o tempo como uma estrutura a priori do espírito. Seus encaminhamentos teórico-metodológicos levam a estabelecer um rico diálogo da história com a sociologia do conhecimento.
Nobert Elias tem uma obra vasta. Muitos dos seus livros já foram publicados no Brasil, entre eles A Sociedade dos Indivíduos, Os Alemães e dois volumes do consagrado O Processo Civilizador. É inegável a erudição de Elias e suas contribuições para se compreender a modernidade. Suas reflexões têm esse propósito básico de investigar os rumos históricos da cultura, nas suas buscas por um sentido que a entrelaçasse. Nesse livro, ele não foge dessa perspectiva, destacando a complexidade social e lógica que está conectada com a invenção da concepção de tempo, predominante na sociedade contemporânea. Para isso, traça comparações com culturas de formações diferentes, inclusive de sociedades indígenas da América. Seu foco privilegiado é a cultura ocidental.
Pensar o tempo como uma relação social permite relativizar o discurso que estimulou a apologia do progresso, empobrecendo as interpretações do iluminismo, preocupado em demonstrar a riqueza social a partir da produção de mercadorias. A concepção de tempo não está dissociada das relações de poder que, inclusive, procuram naturalizá-Ia. As conquistas culturais não são feitas sem conflitos e têm fortes ligações com os interesses de cada grupo. Elias ressalta que o conceito tempo pressupõe um nível elevado de síntese e capacidade criadora dos indivíduos. Ele não é o resultado, apenas, da imaginação genial de algum pensador, mas resultado de um patrimônio cultural sofisticado, sobretudo se o relacionamos com a modernização ocorrida na chamada civilização ocidental.
“Todo indivíduo, por maior que seja sua contribuição criadora constrói a partir de um patrimônio de saber já adquirido, o qual ele contribui para aumentar”, essa é uma afirmativa que sustenta o alicerce do ensaio de Elias. Mas ele não deixa de destacar a importância da coerção social. Diz ele: ” A transformação da coerção exerci da de fora para dentro pela instituição social do tempo num sistema de autodisciplina que abarque toda existência do indivíduo ilustra, explicitamente, a maneira como processo civilizador para formar os hábitos sociais que são partes integrantes de qualquer estrutura de personalidade”. É inegável que Elias dialoga com maestria com a obra de Freud. A cultura não é o território exclusivo da construção do prazer, do fluxo contínuo do desejo. Sem repressão, sem controle e regra social seria impossível se pensar a convivência entre os seres humanos. Eles buscam um equilíbrio que nunca alcançam na sua plenitude.
Mesmo com o projeto vitorioso da modernidade ocidental, as temporalidades continuam existindo na multiplicidade. Quem lê O Labirinto da Solidão, do escritor Octavio Paz, verifica como as diversas as maneiras de conceber o tempo são importantes para construção de identidade social de um povo. As marcas da magia e da religiosidade estarão, sempre, presentes no cotidiano, por mais que se racionalizem as práticas sociais. Elias mostra, com vários exemplos, como o conflito entre a objetividade e a subjetividade deve ser compreendido para que as estruturas temporais de uma sociedade possam ser interpretadas. Dentro da sua perspectiva evolucionista, as instituições vão ganhando complexidade e a concepção de tempo hegemônica, na sociedade ocidental, é resultado dessa relação dinâmica.
A rica análise de Elias apresenta, porém, já no seu final, um comentário interessante. Diz o autor: ”Nada é mais freqüente do que ver historiadores erigirem-se em juízes dos homens do passado, que já não têm como se defender, tomando por norma os valores de sua própria época”(p. 148). Realmente, não se pode negar a existência dos julgamentos, dos juízos de valor presente em obras de historiadores. Não são apenas os historiadores que cometem esse tipo de pecado. Elias, no seu argumento mais geral, fortalece a idéia que sua análise está mais próxima da verdade, pois consegue captar as mudanças e permanências, percebendo com mais clareza o desenvolvimento das instituições sociais. Acrescenta: “Em suma a história dos historiadores é a história a curto prazo” (p.148). Sua afirmação é equivocada. Nem todos os historiadores dedicam-se a estudos localizados e privilegiam a curta duração. Esquece de toda contribuição trazida pela Escola dos Annales e das reflexões teóricas de Braudel e sua obra centrada na longa duração.
As conclusões críticas de Elias parecem retomar a polêmica entre Sociologia e História. A questão da produção da verdade ainda está presente na elaboração das pesquisas. Ela continua fundamental, mas não podemos isolá-Ia em determinados campos do saber. Cabe ao historiador não abandonar o diálogo entre passado e presente, com critérios definidos. Não há verdades definitivas. Ela é sempre relativa, mas isso não impede que se indiquem os caminhos da sua formulação e seus limites. As críticas ao positivismo não significam o fim dos critérios científicos, mas uma maneira diferente de se pensar a ciência.
Há, atualmente, uma troca de informações e teorias nas diversas áreas de produção do conhecimento, sem a adoção de hierarquias. O próprio ensaio de Elias revela essa dimensão, como também toda a trajetória da pesquisa história mais recente. Tanto o sociólogo quanto o historiador vivem dificuldades na articulação dos seus saberes. Não há como nomeá-Ios de maneira homogênea, pois as trilhas de cada um exigem também invenção e criatividade. Na História, a Escola dos Annales ressaltou a necessidade de procurar diálogo com os outros saberes para poder desvendar a complexidade do social.
Existe muita generalização, por parte de Elias, quando enfatiza: “Que a maioria dos historiadores, até o momento, deixe de levar em conta os processos sociais a longo prazo parece-me decorrer, em parte, de uma falta de reflexão sistemática sobre os problemas com que grupos humanos se confrontaram no passado e continuam a se confrontar no presente”(p.157). Mesmo quando se preocupa com a curta duração ou a micro-história, o trabalho do historiador não perde de vista uma reflexão sobre o tempo, as diferenças entre as suas dimensões. O perigo de uniformizar as experiências não é só do historiador mas de qualquer intérprete do social. O historiador não é apenas um sistematizador de fontes. Sua reflexão sobre a experiência humana está presente na construção da metodologia e nas conclusões da sua pesquisa.
É importante assinalar que “Sobre o Tempo” é melhor entendido quando o atrelamos a uma compreensão da modernidade, enquanto projeto civilizatório. Não podemos esquecer, porém, que esse projeto é construído sob o signo de confrontos. Existe um projeto que conseguiu se tornar vencedor, mas as resistências continuam, apesar da presença da cultura de massas. Outros projetos também buscam seus espaços, defendem a liberdade e autonomia, não desprezam a crítica e a dúvida como bases para fundação do conhecimento, no entanto se recusam a aceitar o mundo instalado pelo capitalismo, também ele herdeiro das aventuras da modernidade. A concepção de tempo hegemônica diz muito desses choques e dessas diferenças e nos leva a refletir sobre algumas conclusões otimistas de Elias, dentro de uma perspectiva evolucionista, de aperfeiçoamento das instituições sociais. Uma delas merece, com certeza, que o leitor retome suas peregrinações pela história, sem desprezar a complexidade que a envolve. Diz Elias: “Passo a passo, ao longo de uma evolução milenar, o problema do calendário, outrora irritante, foi mais ou menos resolvido. E como atualmente, os calendários já não criam muitas dificuldades, as pessoas esvaziam da memória as antigas épocas em que ainda causavam problemas”. Nem tudo está tão resolvido com parece entender Elias.
Os tempos históricos terminam por se condensar no presente, segundo reflexões de Santo Agostinho. O presente é síntese, mas também memória, utopia, sonho, resistência. As leituras do contemporâneo nos permitem constatar a diversidade de vivências temporais. Não é apenas o tempo dos calendários que nos domina. Lembramos, outra vez, o ensaio O Labirinto da Solidão que faz uma construção preciosa sobre as aventuras da modernidade, a partir da sociedade mexicana, trazendo também uma reflexão sobre tempo e sua dimensão mítica ainda presente. Se a linearidade dos calendários ajuda a modernizar as relações sociais, ela também revela toda uma estruturação de poder, que silencia as diferenças e busca o homogêneo. Esse tempo da produção das mercadorias, da eficiência técnica se confronta com outras maneiras de querer viver a vida e desfazer o peso de cultura tecnicista. O próprio exemplo dado por Elias de um ritual dos Índios americanos acena para a força das singularidades de cada cultura. O projeto civilizador continua sem esmagar todas as diferenças. Ainda bem, pois garante a possibilidade de reinventar a história e traçar travessias não muito previsíveis.
Antônio Paulo Rezende – Professor do Departamento de História da UFPE.
ELIAS, Nobert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. Resenha de: REZENDE, Antônio Paulo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.19, n.1, p. 225-228, jan./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]
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NARO, Nancy Priscilla. A Slaves Place, a Master’s World: Fashioning Dependency in Rural Brazil. London: Continuum, 2000. Resenha de: HOFFNAGEL, Marc Jay. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.20, n.1, p.301-304, jan./dez. 2002.
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CASTORIADIS Cornelius (Aut), Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI (T), Civilização Brasileira (E), REZENDE Antônio Paulo (Res), Clio – UFPE (CRPHr), História da Sociedade, Conceito de Imaginário, Conceito de Autonomia, Séc. (a.C) 05-01, Séc. 01-20
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LINDOSO Dirceu (Aut), A Utopia Arpada – rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real (1832-1850) (T), Paz e Terra (E), FERRAZ Maria do Socorro (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Rebelições, Pobres, Matas do Tombo Real, Séc. 19, Guerra dos Cabanos, Província de Pernambuco, América – Brasil
LINDOSO, Dirceu. A Utopia Arpada – rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real (1832-1850). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Resenha de: FERRAZ, Maria do Socorro. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.21, n.1, p. 333-336, jan./dez. 2003.
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MINTZ, Sidney W. O poder amargo do açúcar: produtores escravizados, consumidores proletarizados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2003. Resenha de: MACIEL, Caio Augusto Amorim. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.22, n.1, p.363-366, jan./dez. 2004.
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FERREIRA Marieta de Moraes (Coord), João Goulart: entre a memória e a história (T), Editora FGV (E), MONTENEGRO Antônio Torres (Res), Clio – UFPE (CRPHr), João Goulart, Memória, Séc. 20, América – Brasil
FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Resenha de: MONTENEGRO, Antônio Torres. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.24, n.1, p. 313-317, jan./jun. 2006.
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BUCHET, Christian; VERGÉ-FRANCESCHI, Michel (Dir.). La Mer, la france et l´Amérique Latine. Paris: PUPS, 2006. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.24, n.2, p.333-336, jul./dez. 2006.
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ALVES Tarcísio Marcos de (Aut), A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937 (T), Néctar (E), SILVA Edson (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Comunidade do Caldeirão, Santa Cruz do Deserto, Séc. 20, Estado do Ceará, América – Brasil
ALVES, Tarcísio Marcos de. A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937. Recife: Néctar, 2008. Resenha de: SILVA, Edson. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.25, n.2, p.349-354, jul./dez. 2007.
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DABAT Christine Rufino (Aut), Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura/ a academia e os próprios atores sociais (T), Editora Universitária da UFPE (E), Clio – UFPE (CRPHr), Relações de Trabalho, Condições de Vida, Trabalhadores Rurais, Zona Canavieira, Estado de Pernambuco, América – Brasil,
O objetivo de uma resenha é despertar o desejo de ler uma obra, destacando seus aspectos principais e traços originais que possam propiciar aos leitores descoberta, enriquecimento, reflexão, revisão das idéias já consolidadas, num processo de diálogo com o (a) autor (a), possibilitando utilidade e prazer intelectual associados. Tratando-se de “Moradores de Engenho”, de Christine Rufino Dabat, lançado pela Editora Universitária da UFPE em 2007, o principal desafio a ser superado reside na dimensão do livro (800 páginas) numa época cibernética durante a qual se acostumou os leitores a breves e sucessivas leituras de materiais eletrônicos consoantes com a aceleração e a fragmentação do tempo; por se tratar de uma tese de doutoramento em História, pode enfrentar também uma desconfiança face ao caráter especializado e técnico-acadêmico da obra, dificultando a ampla divulgação do livro. Em face desses dois freios iniciais, proponho-me mostrar que o leitor, que superar esse costume e essa desconfiança, terá a fruição do prazer e da utilidade ao ler a muito bem cuidada edição da tese de doutoramento de Christine Rufino Dabat: Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais.
Inicialmente, destaco algumas facilidades que a qualidade da edição propicia ao leitor: o sumário é extremamente detalhado, permitindo acompanhar o encadeamento e o conteúdo de cada um dos oito capítulos distribuídos em três partes. No texto, encontram-se notas de rodapé referenciais, explicativas e complementares que permitem uma leitura fluente do conteúdo central enriquecido aqui, acolá por quadros. A bibliografia estende-se sobre 40 laudas e constitui-se num acervo extraordinário para estudiosos da sociedade da cana-de-açúcar.
O autor dessa resenha não é historiador, mas geógrafo; participou como examinador externo da banca de Doutorado, que, sob a presidência da Profª Maria do Socorro Ferraz Barbosa – orientadora, examinou o trabalho acadêmico e foi unânime em destacar a originalidade e a contribuição que essa tese trouxe para a reinterpretação radical da zona canavieira de Pernambuco, objeto de inúmeros estudos anteriores. Para historiadores há muitas possibilidades de abordar as múltiplas técnicas de fazer história presentes na obra: relações com fontes literárias, organização e tratamento da historiografia, uso de arquivos, incursões no campo da antropologia, coleta e repasse da memória viva dos trabalhadores rurais, cada um desses diversos passos sendo objeto de muitas e debatidas polêmicas metodológicas no âmbito da História. Nada disso, portanto, será tema dessa resenha, pelo simples fato da identidade disciplinar do seu autor.
Mas, além das tecnicalidades disciplinares, a autora propõe uma tese: destaca um evento, “um episódio identificado como singular na evolução das relações de trabalho no campo”, isto é, a saída dos moradores dos engenhos para as “pontas de rua” das cidades da zona canavieira de Pernambuco, para afirmar que se trata de uma inflexão na longa história da exploração dos trabalhadores da cana-de-açúcar, inflexão que foi interpretada pelos setores dominantes da sociedade, através da literatura e da produção acadêmica, como uma mudança dificultando a identificação do “continuum” da incrível exploração do trabalho, desde a escravidão até nossos dias, que caracteriza a zona canavieira de Pernambuco entre as poucas regiões do mundo sem rupturas. É na memória viva das vitimas dessa exploração, que a autora encontra uma interpretação histórica capaz de recuperar esse “continuum”, e de situar o evento na longa duração da exploração e nas lutas políticas, sindicais e culturais do presente. A quais interesses afinal servem os recortes históricos e a afirmação da sucessão de mudanças senão àqueles que se beneficiaram dessa exploração contínua?
A obra de Christine Rufino Dabat não é de um pesquisador iniciante, como o é, hoje em dia, comum, tratando-se de tese de doutoramento. Longamente amadurecida, resulta de um itinerário afetivo, intelectual e militante de cerca de trinta anos. Entre idas e vindas na problemática das relações de trabalho vinculadas à “plantation” canavieira destaca-se a descoberta da obra de Sidney W. Mintz, disponibilizada em português numa coletânea organizada pela autora e publicada em 2003 pela Editora Universitária da UFPE, sob o título “O poder amargo do açúcar. Produtores escravizados, consumidores proletarizados.” Nesse autor, “involuntário farol intelectual de uma jornada acadêmica em forma de labirinto”, Christine Rufino Dabat encontrou o fio de Ariadne para debater e superar os entendimentos consagrados na historiografia nacional acerca da “Morada”; em “Moradores de Engenho” reinsere essa condição no contexto da “economia mundo” de Immanuel Wallerstein e mostra como as relações de trabalho e produção de açúcar são desde o início marcadas pela “modernidade precoce” (p. 388 a 434) relativizando e interpretando, à luz do eurocentrismo, o longo percurso historiográfico nacional do feudal ao capitalismo mercantil e ao capitalismo industrial.
Essa análise historiográfica desenvolvida no capítulo 5 constitui, junto com o capítulo anterior, a 2ª parte do livro. Em “Interpretações da morada”, a autora, após ter situado numa 1ª parte o contexto histórico do episódio que é objeto do trabalho, reserva cerca de 110 páginas a um estudo das visões da morada em José Lins do Rego e Gilberto Freyre, mostrando como a produção cultural foi capaz de criar representações duráveis e fundas, além dos debates acadêmicos norteados pelo evolucionismo cultural. Ao jovem leitor, além da releitura das obras de Lins do Rego e Freyre guiada pela desconstrução empreendida por Christine Rufino Dabat, aconselha-se assistir ao filme de Cláudio Assis “O Baixio das Bestas” que, filmado na zona canavieira de Pernambuco, assume também um caráter universal ao representar a total e brutal desumanização e instrumentalização das relações no período atual da “economia mundo”.
A 3ª parte de “Moradores de Engenho”, estende-se sobre mais da metade do livro e propõe uma reconstrução da história sob o título “A morada na experiência dos moradores”. São abordadas sucessivamente, as condições de vida dos trabalhadores rurais na época da morada, as condições de trabalho e as condições políticas denominadas “violência e cidadania”. Os textos resgatam falas dos trabalhadores e interpretações da autora remetendo sempre a outros estudiosos que se dedicaram ao estudo da vida, das relações de trabalho e da política na zona canavieira. Trata-se de uma minuciosa reconstituição, ficando claro o intuito da autora de dar prioridade à memória viva dos trabalhadores de modo a romper com a “lei do silêncio”, que afeta essa parte dos agentes da região em contraste com a abundância das produções culturais e acadêmicas recuperadas na parte anterior. Christine Rufino Dabat constrói respeitosamente, com os trabalhadores, uma história renovada pela empatia que sustenta a longa militância com os entrevistados, que revelam não ter saudade do passado mesmo se o presente continua marcado pela exploração. Reexamina assim, junto com eles, “a interpretação dada ao desenvolvimento histórico da região”.
Ao ler essa parte, lembrei de um texto do escritor nascido na Martinica, também terra de plantações criadas na “modernidade precoce”, Edouard Glissant, que procuro traduzir aqui:
O significado (a “história”) da paisagem ou da Natureza é a clareza revelada do processo através do qual uma comunidade cortada dos seus laços ou de suas raízes (e, talvez mesmo desde o início, de quaisquer possibilidades de enraizamento) pouco a pouco vem sofrendo a paisagem, merecendo sua natureza e conhecendo seu país” (…) ”Aprofundar esse significado é levar essa clareza à consciência. O esforço teimoso em direção à terra é um esforço para a história. (GLISSANT E., L’intention poétique. Paris: Gallimard, 1997).
Tradução livre de:
La signification (l’”histoire”) du paysage ou de La Nature, c’est La clarté révelée du processus par quoi une communauté coupée de ses liens et de see racines (et, peut-être même au départ, de toutes possibilités d’enracinement) peu à peu souffre le paysage, merite sa nature, connaît son pays. » (…) Approfondir la signification c’est porter cette clarté à la consciência. L’effort ardu vers la terre est un effort vers l’histoire. »
Jan Bitoun – Professor do Departamento de Ciências Geográficas da UFPE.
DABAT, Christine Rufino. Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. Resenha de: BITOUN, Jan. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p.257-261, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]
CARDOSO Ciro Flamario (Aut), Um historiador fala de teoria e metodologia/ Ensaios (T), Edusp (E), SILVA Severino Vicente da (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Teoria da História, Filosofia da História, Epistemologia Historia, Metodologia da História, História da Historiografia
São poucos os historiadores brasileiros que podem apresentar uma produção tão rica e diversificada quanto o professor Ciro Flamarion Cardoso. Parte de sua vida foi vivida fora do Brasil, à época da ditadura militar e, contudo a sua presença foi marcante na formação de uma geração que leu e refletiu o Métodos da História, seus escritos sobre o trabalho escravo na antiguidade e Uma Teoria da História. Em suas obras nota-se uma constante critica à pequena importância que o estudo da filosofia tem recebido na formação dos historiadores no Brasil. Essa preocupação teórica o levou a refletir, com outros autores, em Caminhos da História.
Após os eventos do final dos anos oitenta, ocorreu a debandada dos historiadores para fora dos caminhos da interpretação marxista da história. Ciro Flamarion é um dos raros que mantém a sua adesão àquele método de estudo, àquela filosofia explicativa da história. Assim, não surpreende a edição desses ensaios, produzido ao longo de doze anos, resultado de suas reflexões e perplexidades, advindas de sua prática docente.
Pouco avesso aos salameques e ao culto das novidades por serem novidades, o autor de Um Historiador fala de teoria e metodologia, continua fiel ao viés fundamental de sua obra. Ciro nos mostra como ele continua capaz de dialogar com o mundo e apresenta o marxismo como ainda capaz de dar conta da complexidade que estudos setoriais não conseguem, segundo ele, enfrentar plenamente.
Dividido em quatro partes, o livro organiza didaticamente os grandes temas que estudos históricos enfrentam atualmente. Na primeira parte, composta por dois capítulos, o Autor dedica-se a debater as novas perspectivas e compreensão do Tempo e do Espaço para a História, dedicando um capítulo para o debate sobre a construção do espaço, nesses novos tempos em que as realidades parecem estar cada vez compressas e em que os limites geográficos, definidos matemática e geometricamente no final do século XIX, mostram-se ineficazes para a compreensão das políticas atuais dos países e estados.
A segunda parte é dedicada ao acompanhamento do debate epistemológico atual, com destaque especial ao anti-realismo do pensamento histórico contemporâneo e sobre a influência negativa que o Autor entende que as teorias do conhecimento exercem na atual produção histórica no Brasil. Talvez seja a sua adesão incondicional ao marxismo que o impeça de olhar com maior simpatia a atual produção vinda dos programas de pós-graduação das universidades, talvez muito ávidas por aceitar as novidades conseqüentes das contradições européias, aceitas sem o respaldo de um estudo filosófico que seja capaz de assumir as novas tendências sem superar simples macaqueação própria do novidadeirismo.
A terceira parte é dedicada à reflexão do pensamento histórico e ao debate historiográfico contemporâneo. Embora instigante, essa parte pode ser apontada como frustrante por limitar esse debate apenas até os anos trinta. Esperava-se mais, na reflexão sobre a atual produção, essa que vem desde a segunda metade do século. Mas, talvez, com esse enorme hiato, o autor queira nos dizer que não ocorreu ainda uma real e nova interpretação da história brasileira, nem universal, além daquelas que foram apresentadas nas primeiras décadas do século XX, pouco importando que seja uma história produzida nos limites do Brasil ou além deles. Seria isso produzido pela quebra dos paradigmas, pela queda física, antes da metáfora, do muro que separavam as duas maiores experiências políticas ideológicas do século findo há quase uma década, ou a duas décadas, como quer um outro historiador marxista, Eric Hobsbawm. Interessante capítulo, desta parte, é quando nosso Autor quase se transforma em perscrutador do futuro ao discorrer sobre “que história convirá ao século 21” e reflete sobre como a crise dos paradigmas, o cultivo quase niilista da dúvida permanente e da certeza de que só a dúvida existe pode levar os historiadores a perder a perspectiva, atolando-se nos mais diversos solipsismos.
A parte quarta desse livro é dedicada a debater questões mais setorizadas tanto quanto à teoria quanto ao método histórico. No nono capítulo estão abordadas questões atuais no debate sociológico, político e histórico, referindo-se mais diretamente às questões étnicas, tão pungentes e atraentes numa globalização na qual para não se tornarem massas liquidas, voltam-se a paradigmas pré-modernos vestidos em vistosas roupagens pós-modernosas, escondendo nas colorações cintilantes, ranços de racismos que podem fazer retornar com mais tragicidade situações aparentemente vencidas em meados do século XIX. Capítulo muito interessante é o dedicado à chamada História das Religiões, uma quase ciência e uma quase teologia, ou uma teologia que não quer dizer-se como tal. Para ele muitos dos que se dizem historiadores das religiões, deixaram-se seduzir pelos mistérios que atraem os crentes, esquecendo-se dos problemas que são os verdadeiros interesses do historiador, do cientista. Ao crente basta a admiração e contemplação da verdade religiosa, ao historiador a admiração serve apenas de pretexto para iniciar a busca do entendimento de porque homens e mulheres, em determinados tempos e lugares, criaram sistemas e necessitaram afirmar que esses sistemas foram doados gratuitamente por alguma entidade não humana, mas superior aos homens e mulheres Tais adesões à pseudociência História das religiões só é possível pela negativa em abordar os problemas humanos a partir de sua materialidade.
A leitura dos Ensaios contidos em Um historiador fala de teoria e metodologia é interessante àquele que já se encontra na militância da história, seja como professor apenas, seja como professor, pesquisador e historiador. Para os que estão iniciando-se nos afazeres do historiador, essa é uma leitura obrigatória. Nela ocorrerá o encontro com um permanente estudioso da história, e um constante enamorado pelas criações dos homens que vivem as contradições das sociedades que criam e na qual vivem.
Severino Vicente da Silva – Professor adjunto, atuante no programa de pós-graduação do Departamento de História da UFPE.
CARDOSO, Ciro Flamario. Um historiador fala de teoria e metodologia, Ensaios. Bauru, SP: Edusp, 2005. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 262-265, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]
LIAUZU Claude (Dir), Dictionnaire de la colonisation française (T), TOPOR Hélène d’Almeida (Cons-cient), BROCHEUX Pierre (Cons-cient), COTTIAS Myriam (Cons-cient), REGNAULT Jean-Marc (Cons-cient), Larousse (E), DABAT Christine Rufino (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Dicionário, Colonização Francesa, Europa – França, Séc. 19-20, Ásia – Vietnam, África – Argélia, África – Margreb, América, África, Ásia – Oriente Próximo
Entre as muitas obras recentes que tratam do passado colonial da França, o Dicionário da colonização francesa destaca-se pela abrangência das temáticas e análises, numa época de grandes debates no campo desta história. Falecido no ano da publicação deste dicionário, o grande historiador Claude Liauzu o organizou com a preocupação central de valorizar a seriedade na determinação dos fatos e respeitar a pluralidade das interpretações. Ele introduz o volume « A colonização em questões » (p. 9-25) expondo suas ambições e limites.
Os grandes embates que ocupam a fábrica da história colonial na França dos séculos XIX e XX, e sua eventual instrumentalização pelos poderes políticos, torna o assunto atual. Claude Liauzu e sua equipe de dezenas de colaboradores (entre os quais pesquisadores oriundos dos países antigamentes colonizados) decidiram encarar o desafio, afirmando a necessidade de oferecer aos leitores pontos de referência seguros a partir dos quais eles possam definir uma opinião informada no fogo cruzado das « guerras de memória ». Daí a forma de dicionário. São setecentos e setenta e cinco entradas que dizem respeito a pessoas, eventos, mas também categorias de análise histórica. « Tempos fortes », que antecedem sequência alfabética, estabelecem a periodização do assunto. Dezoito mapas e uma bibliografia (dividida tematicamente), no fim da obra, além de diversos índices (de pessoas, lugares e temas, disponíveis na internet) ajudam o leitor a se situar. Os nomes que, nos textos, remetem a artigos próprios são assinalados por asterisco e setas associam outros relacionados.
São tratados aspectos variados, destacando-se a definição do próprio título « colonização » com vários desdobramentos: etimológicos (« colônia », p. 200-201, e « colônia penal » p. 201) ; sociais e políticos como o dossiê « colonos – brancos pobres e ´franceses majorados » (p. 202-210) com várias seções, inclusive o « colono visto pelo colonizado » ; geográficos, mostrando as dimensões políticas, em cada região em que atuou, América, África, Ásia, Próximo Oriente ; culturais, revelando os diversos olhares sobre o fenômeno, « escola colonial » (p. 258), « a escola do colonizado » (p. 259-263), « professores primários » (p. 381), « estudantes colonizados » (p. 280), e mesmo as prestigiosas instituições acadêmicas como a « Escola francesa do Extremo Oriente » (p. 263), focada em aspectos tocando diretamente à historiografia. « As colônias na escola » (p. 265) complementada pelo dossiê « criança e propaganda colonial – Convencer os jovens da metrópole » (p. 269) e o artigo « Propaganda colonial oficial » (p. 538-539), expõe a maneira como a colonização foi ensinada pelos manuais e outros meios de divulgação, desde a criação da escola pública, laica, gratuita e obrigatória, pelos próprios governos da IIIa. República, que promoviam ambas.
« Escritores e colonização » trata da literatura acerca deste fenômeno, seguindo uma entrada rápida sobre o papel de editoras como as Éditions de Minuit, que publicaram grandes textos de combate contra a colonização, em particular A questão, de Henri Alleg, denunciando a tortura utilizada pelo exército francês durante a guerra – que não dizia seu nome – da Argélia. Enfim, « palavras e colonização », (p. 482), « migrações e colonização » (p. 470). « República e colonização – Relações ambíguas » (p. 552-557), faz objeto de um dos numerosos dossiês analíticos que pontuam a obra, com um subtítulo « colonização e civilização », onde são tratados os grandes traços do discurso dominante a respeito do assunto. Outro dossiê, « Capitalismo e colonização. Um debate » (p. 168-172), mostra como se articulam império e prosperidade na metrópole, ao longo dos séculos. « Cristianismo, missões e colonização » (p. 185-191) seguido de « Cristianismo e descolonização » (p. 191-193) focam no papel dos religiosos, numa empresa estatal cuja fase republicana foi marcada pelo anti-clericalismo.
Outros conjuntos de artigos poderiam assim ser singularizados, particularmente em torno dos artigos-dossiês que propõem uma síntese sobre dado assunto, tentando equilibrar o tratamento dos diversos espaços geográficos que, através de quatro continentes, sofreram a marca da empresa colonial francesa : por exemplo, a Nova Caledônia (p. 501-505), complementada por outros artigos como « religiões da Oceânia », (p. 551) « Oceânia » (p. 506-507) « Novas Hébridas Vanuatu » (p. 505) e assuntos, às vezes esquecidos, como o de Moruroa, atol onde os franceses efetuaram seus experimentos nucleares (p. 481).
Em « Raça » incluindo « a política das raças », « racismo » (p. 545-548), Liauzu, autor do maior número de entradas, evoca um campo que detalhou no seu notável estudo Raça e civilização. O outro na civilização ocidental (Paris: Syros, 1992). Ao lado dos artigos esperados sobre a « escravidão – quatro séculos de história da colonização » (p.272-277) e sua abrogação, com a figura emblemática de Victor Schoelcher (p. 579), os autores não se furtam a mencionar eventos recentes, como a Lei Taubira (2001), que confere ao tráfico negreiro o estatuto de crime contra a humanidade (« Comitê para a memória da escravidão » p. 210) e a mal afamada lei de 2005, posteriormente abrogada sob pressão dos meios acadêmicos e mais amplamente cidadãos, que pretendia obrigar ao ensino dos « aspectos positivos » da colonização francesa (p. 533).
Os autores utilizam conceitos atuais como os « lugares de memória » (p. 409-413), complementado em « imaginário e espaços » (p. 364-366), e lugares, simplesmente, inclusive presídios famosos (« Poulo Condor », no Vietnam, p. 536) ou manifestações físicas importantes como o « Mediterrâneo » (p. 460), ou ainda espaços situados no tempo como o artigo « O Magreb na véspera da colonização – Blocagens e tentativas de reforma ». (p. 437-440), ou « o grande deserto do Sahara » (p. 568).
Entre os assuntos tratados em si podem ser citados como exemplos as grandes temáticas do « povoamento » (p. 527), « campesinato » (p. 524), « industrialização » (p. 379), assim como conceitos: « negritude » (p. 495), « nacionalismos » (p. 488). As posições das grandes forças políticas são detalhadas (« Internacional Comunista » (p. 383); « OAS » (p. 506) « FLN » (p. 299) com seus desdobramentos: « chefes históricos », « Federação de França do FLN »; « Pan-africanismo » (p. 514). Personalidades de destaque como Ahmed Messali Hadj, nacionalista argelino do século XX, Ho Chi Minh (p. 359) ou Solitude (p. 586) heroina da resistência ao restabelecimento da escravidão nas Antilhas são tratados com particular cuidado assim como as « resistências à conquista » (p. 557) e grandes rebeliões, como a Kanak, em 1878 (p. 393) ou a insurreição em Madagascar de 1947 (p. 435) e as diversas organizações (partidos e movimentos armados, mas também confrarias e outras) de resistência dos povos colonizados pela França. Entre os personagens mencionados, pode-se destacar os resistentes à colonização, inclusive franceses como Camille Pelletan que denunciava no seu jornal, A justiça, a maneira como as autoridades republicanas francesas impunham sua civilização « por meio de canhões » (p. 526). Em obra póstuma de Claude Liauzu, História do anti-colonialismo na França do século XVI a nossos dias (Paris: Colin, 2007), este aspecto ganha vulto.
Obviamente, aspectos econômicos da empresa colonial estão presentes : as companhias que recebiam concessões da potência colonial (p. 213-216), « cultura de seringueira na Indochina » (p. 358) etc. Também é tratada a dimensão propriamente militar, os métodos de conquista e administração – « governo colonial » (p. 315-319) ; « ministério das colônias » (p. 472-473) – de vastos espaços e populações numerosas em âmbitos geográficos diversos e longínquos, embora nenhuma predominância seja dedicada a estes assuntos clássicos. No entanto, menciona-se aspectos peculiares como, sob o título « Marinha, Marinheiros – o seu papel na expansão colonial » (p. 444), evocando a situação difícil destes, muitas vezes oriundos de territórios colonizados. O maior destaque é dedicado aos conflitos de descolonização, sobretudo na Argélia, que se desdobra em dois dossiês: « guerra de Argélia – Uma guerra que não diz seu nome » (p. 321-335) e « guerra de Argélia e liberdades – Estado de sítio e poderes especiais » (p. 340); para garantir o equilíbrio no tratamento, há também : « Guerra de Indochina – A primeira guerra de descolonização» (p. 341-350).
Aspectos culturais têm, em compensação, muito destaque, desde « festas » (p. 297), « canção » (p. 179), como testemunho da cultura popular, refletindo preconceitos sob os apetrechos do exotismo, mas também nas dimensões de resistência como o anti-militarismo. Famosos artistas são retratados, como Josephine Baker (p. 130-131), cujo sucesso revelou visões metropolitanas da coisa tropical, por assim dizer, e influenciou numa mudança, surpreendentemente recente, nas mentalidades. « Fotografia – a colocação em imagens das colônias » (p. 529), « pintura orientalista » (p. 510) e « Cinema » (p. 194-200), tratam tanto de documentos fotografados encenados ou não, documentários e ficções, mostrando também os esforços de alguns autores para romper com os clichês coloniais, como o premiado « Indígenas », de Rachid Bouchareb (Cannes 2006). A literatura abrange as representações, inclusive populares, como a personagem bretã « Bécassine e suas aventuras coloniais » (p. 140) mas também as produções de criadores de horizontes diversos : literatura da África negra, magrebina, da Nova Caledônia, da Polinésia, « Indochina : edição e literatura » (p. 374) e enfim, « literatura e colonização » (p. 421), seguida de um artigo curioso : « literatura, romance policial e descolonização » (p. 422), mencionando sobretudo obras recentes que tratam de episódios de repressão na própria metrópole contra pessoas oriundas das (ex)colônias.
Muitos atores da descolonização, em várias áreas, literatura e política em particular, fazem parte do elenco biografado: como Leopoldo Sedar Senghor (p. 584), Albert Memmi (p. 461-462), Aimé Césaire (p. 176), desaparecido recentemente. Eles dividem páginas com autores franceses cuja obra e engajamento lhes estão ligados ou opostos: SaintJohn Perse (p. 572), Jean Paul Sartre (p. 578), Céline (p. 174), Camus (p. 163-164), André Malraux (p. 441). Outros autores, cuja obra fez evoluir consideravelmente os instrumentos do pensar da coisa colonial, são mencionados, por exemplo, Marcel Mauss (p. 458), Jean Dresch (251), Cheikh Anta Diop (p. 183), Frantz Fanon (286) e Maxime Rodinson (p. 565), além de revistas como « Presença africana », que marcou as gerações da descolonização fazendo « a ligação com os intelectuais franceses » (p. 538), bem como editores como François Maspéro (p. 455) que abasteceu os militantes anti-colonialistas com obras de Castro, Ho Chi Minh, Basil Davidson e tantos outros.
Entre as dimensões culturais, poderia se singularizar a questão das línguas criadas pela própria colonização « pidgin » (p. 532), « petit nègre » (p. 527) , « pataouète » (p. 523) e « sabir » (p. 568), assim como seu impacto sobre o francês : termos próprios à história colonial ou por ela gerados como « força negra » (p. 302) « spahis » (p. 587) « méharistes », os policiais do deserto (p. 461); ou ainda « bled » palavra oriunda do árabe falado na Argélia que passsou na língua francesa para designar o campo ; « bidonville » (clássica tradução de favela), cuja origem é marroquina ; « béké », termo das Antilhas, até hoje empregado para os descendentes de plantadores ; « cafre » termo utilizado na ilha da Réunion para designar as populações mestiças (p. 160).
O artigo « folie et psychiatrie » (p. 302) evoca a obra pioneira de Frantz Fanon e a recém formada sociedade franco-argelina de psiquiatria, cujo primeiro congresso (2003) consagrou o reconhecimento científico dos traumas resultantes da colonização e guerras de libertação. O dossiê « Saúde » (p. 575-577) trata da epidemiologia, mas sobretudo do imaginário e da justificação da exploração colonial apresentada como compensada pela assistência primária à saúde das populações colonizadas:« Institutos Pasteur » (p. 381) ; « Médicos » (p. 459) « quinine » (p. 544). Os autores do Dicionário não hesitam em abordar assuntos difíceis como o dossiê sobre « mestiçagens e uniões mistas – Da marginalidade à pluralidade incontornável » (p. 465-470); « homossexualidade » (p. 361); « corpos – realidades e imaginários » (p. 223-227) « prostitutas » (p. 539), ao qual corresponde o artigo «masculinidade colonial » (p. 454-455). Embora haja um dossiê importante « mulheres – elas também têm uma história » (p. 287- 295) associado ao artigo « moças – Um novo tipo social nascido da colonização » (p. 387-389), sua presença, esparsa em outras entradas, inclusive biográficas (poucas), é discreta.
Em suma, Dicionário da colonização francesa é uma obra que prima pela coragem dos autores, abrangência e atualidade dos assuntos e sobriedade benvinda no tratamento.
Christine Rufino Dabat – Professora do Departamento de História da UFPE.
LIAUZU, Claude (Dir.). Dictionnaire de la colonisation française. Conselho científico: Hélène d’Almeida Topor, Pierre Brocheux, Myriam Cottias, Jean-Marc Regnault. Paris: Larousse, 2007. Resenha de: DABAT, Christine Rufino. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 266-271, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]
GOMES Edvânia Torres Aguiar (Aut), Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica (T), Massangana (E), SERNA Aura González (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Natureza, Paisagem Cidade do Recife, Séc. 20, América – Brasil
Este trabalho produzido originariamente sob a forma de tese em 1997 pode ser considerado de vanguarda em diversas acepções, analisando o seu conteúdo e suas advertências no plano das novidades que cercam a discussão contemporânea sobre Paisagem. Pode-se argumentar que se trata de um trabalho clássico na revisão dos conceitos mais primevos dos primeiros entendimentos sobre paisagem, desde a escola alemã, passando por alguns desdobramentos disciplinares inclusive para além da Geografia. Por outro lado, pode ser considerado crítico na perspectiva sócio-ambiental, ao se utilizar este trabalho no âmbito do urbanismo. Verifica-se o efeito denúncia que marca os embates entre o idealizado e o realizado, entre a cidade e o meio. A voz de distintos segmentos da sociedade se expressa através dos 600 questionários trabalhados, capturando as vertentes da representação da cidade no final do século passado. Através dessas falas são reveladas as idealizações e representações da cidade, podendo subsidiar o urbanismo e a gestão dos espaços públicos na metrópole recifense. Essa mescla guarda nexos marcados pelo esforço transversal, enunciando que não existe novidade na feitura das práticas e interesses – principalmente quando se trata de um mundo confeccionado colonialmente, que se busca num jogo de espelhos – e sim, que o mundo é permanentemente (re)criado. Este trabalho é uma excelente maneira de afirmar que não é por natureza que se compreendem e se estabelecem múltiplas aproximações ao objeto do saber. É preciso sentir, estar apaixonado, em conexão com referentes que historicamente constituem elos estruturadores da cidade, mas, e, principalmente, priorizar na escolha por tornar visíveis experiências vividas, na fala de seus usuários, identificando sentimentos profundos do povo na relação com trechos da cidade, para descobrir neles os elementos, mesmo confusos, que podem impulsionar relações de respeito por representações culturais fundamentais que reflitam, na paisagem, as necessidades humanas que a reproduzem. Trata-se de uma pesquisa instigante, qualitativa, e quantitativa de corte teórico e empírico, que passando pela apropriação fenomenológica, subsidiada por um rico elenco de fotografias, mapas, gráficos e gravuras conseguiu preservar a coerência entre o método de pesquisa e a apresentação da realidade estudada. A autora partindo das contribuições da geografia alemã leva-nos de passeio, pela trajetória da paisagem, aproveitando aportes de diversas disciplinas, em legados de historiadores, psicólogos, antropólogos, poetas, filósofos para analisar a composição da paisagem: o meio físico e o meio social, em estreito nexo com as percepções, o imaginário, a atividade humana constituída por atos, com os quais visa algo. A pesquisa tem como campo empírico o dilema na perspectiva das coexistências do planejador, do artista, do político, do cientista, do simples habitantes em uma cidade anfíbia, marcada por atributos da natureza e engenharia humana. As águas dos rios e dos manguezais que configuram o sítio da cidade são enfatizadas a luz desses diferentes segmentos da sociedade em suas práticas. No contemporâneo, até olhares menos atentos registram evidentes provas de agressão como negação a presença das águas na cidade, subestimando a sua morfologia genuína. Através de uma linguagem simples e dialogando com imagens, letras de músicas, poesias, o trabalho nos ajuda a entender que em função da subordinação à lógica da acumulação de riqueza, este processo de construir os espaços vividos se faz à custa de uma decadente condição da sociedade, singularizando alguns resultados que impactam os modos vida dos seus habitantes. Nesse campo, a autora dialoga com reflexões realizadas por renomados geógrafos como Josué de Castro, Milton Santos, Manoel Correia de Andrade, Rachel Caldas Lins e Jan Bitoun, bem como com poetas como Bento Teixeira, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, Chico Science, consegue ilustrar faces desses impactos no sítio urbano natural do Recife. Os historiadores, urbanistas, engenheiros pesquisados em suas obras propiciam apoio para firmar a posição da autora em suas críticas aos processos de planejamentos da cidade, com a adoção de mudanças que priorizam a técnica aplicada a demandas pseudo uníssonas, tornadas homogeneizantes na leitura de escala global. Como através de um painel, passando pelos primeiros esboços da cidade Mauricia até os dias atuais, com base nos trabalhos comparativos, Edvânia propicia uma revisão da concepção da paisagem idealizada para a cidade e refletida na estrutura do planejamento e suas práticas ao longo da história. O trabalho utiliza três eixos espaciais como referências para cotejar Recife à luz de algumas questões urbanas significativas e que dizem respeito ao cotidiano daqueles que animam a cidade do Recife. As variáveis eleitas espelham a história do presente e do futuro, revelando aproximações entre as representações das paisagens instituídas e divulgadas do Recife e as representações contidas nas falas e depoimentos de alguns usuários de seus espaços. As inquietações da autora são marcas indeléveis que saltam nas páginas deste livro realizando um arco interdisciplinar no sentido acadêmico, mas também no sentido da vivência. De um lado essas inquietações remontam as vivências cotidianas de lembranças primordiais de vida familiar percorrendo a cidade, mas também as interpelações da vida profissional na passagem como técnica em Órgãos de Planejamento Urbano Ambiental na cidade do Recife e, continuando como intelectual, no ideário Gramsciano que inspira as conexões entre intelectuais e o povo-nação. Evidencia-se, assim, a novidade do trabalho, no movimento que incorpora e o inspira, como uma importante contribuição da autora, que se tornará cada vez mais necessária para nos ajudar a recolocar na ordem do dia a agenda do meio físico e do meio ambiental nos espaços da vida urbana, numa cidade de referência histórica para a reprodução das culturas. Edvânia o manifesta nas inquietações finais: “Afinal o que é natureza? Esta pergunta aparentemente tão simples de responder não encontra eco plausível na história da confecção de Paisagens de nossas cidades. Os pilares sobre os quais foram edificados os espaços urbanos não contemplam entendimentos nítidos acerca da existência da natureza possível. No “mundo da engenharia e da técnica” ideologicamente os elementos físico-naturais são convertidos em acessórios subliminares até o surgimento de protótipos que os substituam”. A obra finaliza como se estivesse iniciando pela carga de provocações que evoca e pelas inquietações que ultrapassam a leitura e fazem vagar o pensamento. Nesse sentido, cabe concluir essa resenha retomando mais um importante atributo desse trabalho que é a forma como ele se encontra estruturado em seqüência ascendente partindo da teoria, história e a parte empírica. Dividido em blocos que podem ser lidos de forma solta, enfim degustados, o livro é uma referência sem dúvidas para aqueles que querem aprender a paisagem e apreender as paisagens e a história da cidade do Recife enquanto registro e nova metodologia.
Aura González Serna – Doutora em Serviço Social pela UFPE, (2005). Docente Pesquisadora, na direção do Grupo Território na “Universidad Pontificia Bolivarianam-UPB”. Campus de Laureles. Medellín, Colômbia. E-mail: aura.gonzalez@upb.edu.co
GOMES, Edvânia Torres Aguiar. Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica. Recife: Massangana, 2007. Resenha de: SERNA, Aura González. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.2, p.375-378, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]
ELLIOTT John H. (Aut), Impérios del mundo atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830) (T), Taurus (E), SOUZA George F. Cabral de (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Império Inglês, Império Espanhol, América, Séc. 16-19
Ao longo de muitas décadas de minuciosa pesquisa, John Elliott, autor de El Conde-Duque de Olivares e La España Imperial, entre outras importantes obras, se destacou como um dos mais renomados especialistas na história da Espanha. Mais recentemente seu interesse deslocou-se também para os cenários coloniais da monarquia hispânica. O leitor brasileiro em geral conhece de John Elliot apenas os excelentes textos presentes na monumental História da América Latina da Universidade de Cambridge, organizada por Leslie Bethell e publicada no Brasil no final da década de 90. No seu último livro, Imperios del Mundo Atlántico, que como o restante da obra de Elliott ainda não teve tradução brasileira, realiza uma abordagem comparativa da história do continente americano.
O método comparativo em história não é prática inédita no Brasil, mas devido a sua alta complexidade, infelizmente não logrou reunir muitos adeptos. O exemplo mais conhecido é o da obra clássica de Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil), na qual ele ensaiou algumas comparações entre os diferentes colonizadores do continente americano, concretamente entre portugueses, espanhóis e holandeses, atribuindo de forma um tanto intuitiva, características de fundo psicológico a cada um deles. Em 1939, Herbert Bolton lançava a questão: as Américas têm um história comum? A pergunta, proposta a modo de desafio, provocou reações, embora as dificuldades subjacentes a este tipo de análise tenham desanimado os historiadores. Realizar estudos comparativos expõe o historiador ao duro dilema de ter que escolher entre trabalhar dados secundários para ampliar o universo de análise ou reduzi-lo a patamares bastante limitados, se deseja trabalhar com fontes primárias. Uma obra clássica na qual se utilizou o método comparativo surgiu nos anos 70, quando James Lang advogava em Conquest and Commerce que a principal diferença entre os dois impérios seria o perfil de conquista do colonizador espanhol, ao passo que o inglês se inclinaria, sobretudo, pela tentativa de estabelecer redes comerciais em suas novas possessões.
Em Impérios del Mundo Atlántico, Elliot empreende a difícil tarefa de estabelecer comparações entre os impérios espanhol e inglês na América. O hispanista inglês consegue em seu trabalho (fruto de anos de experiência como pesquisador e professor em várias universidades européias), equacionar bem o problema da abordagem comparativa, embora tenha que esquivar o desafio de incluir também o Império Português. Este aparece apenas em algumas passagens específicas, quando a menção às suas características ajuda a esclarecer aspectos concretos, como por exemplo, o da utilização da mão-de-obra escrava africana. O autor reconhece que incluir a América portuguesa no espectro de análise agigantaria a tarefa de forma a torná-la por demais ampla para os limites de um volume. Não obstante, a opção por centrar-se nas áreas de colonização espanhola e britânica não desmerece a obra. O livro foi estruturado em três partes (La ocupación, La consolidación e La emancipación) formadas por quatro capítulos cada. Ao longo de suas mais de 800 páginas, o autor trabalha com uma ampla gama de eixos temáticos. Sua abordagem se interessa pelos aspectos relacionados com a adaptação do colonizador aos recursos alimentícios disponíveis no novo mundo, a postura do europeu frente aos nativos, os posicionamentos frente à mestiçagem em suas várias facetas, as variantes na organização da produção e da utilização da mão-de-obra, as práticas político-administrativas e os processos de desagregação dos vínculos coloniais. Elliott, graças aos seus amplos conhecimentos de história moderna, transcende os aspectos propriamente locais na sua abordagem, conectando as manifestações da experiência colonial no novo mundo com as estruturas mentais e as práticas políticas e culturais de origem dos colonizadores. Na opinião do autor, são as experiências européias destes colonizadores que fizeram com que os espanhóis recorressem freqüentemente à figura do mouro para caracterizar os indígenas (sobretudo os das áreas de maior desenvolvimento civilizacional) ao passo que ingleses os relacionassem com os irlandeses. É através deste olhar mais amplo, que o autor pode, por exemplo, tecer esclarecedores comentários acerca das formas como colonizadores britânicos e espanhóis entendiam a questão da cristianização dos nativos. No caso britânico, o esforço missionário, tão característico da colonização espanhola no Novo Mundo, se viu embaraçado seja pela falta de uma política estatal de catequese pungente, seja pela concepção da predestinação que regia a cultura religiosa de muitos dos colonos puritanos. Entre os colonizadores espanhóis, Elliott detecta o envolvimento direto da coroa no mister de cristianizar os nativos. A instituição do padroado régio, se por um lado dava ao monarca espanhol amplos poderes em matéria eclesiástica no Novo Mundo, por outro o obrigava a empenhar-se na salvação das almas dos indígenas, sob pena de ter sua consciência maculada. Também nesse caso o cenário europeu interfere diretamente nas realidades construídas no além-mar: os missionários católicos chegados ao continente depois das reformas tridentinas entendiam o objeto de sua atuação de forma bastante diferente dos primeiros missionários da “fase heróica” da catequese. Em relação aos aspectos políticos, Elliott esquadrinha inteligentemente de que formas os conflitos políticos seiscentistas da Inglaterra influenciaram a cultura política dos colonos britânicos, traçando um interessante paralelo entre estes e os colonos espanhóis durante o processo de desagregação dos respectivos vínculos coloniais.
A mais recente obra de Elliott disponibiliza ainda uma longa lista de bibliografia que inclui contribuições monográficas sobre a história da América colonial publicadas após o ano 2000. O primoroso estilo do autor e a excelente tradução (monitorada pelo próprio Elliott, profundo conhecedor do idioma castelhano) garantem uma leitura agradável, ao passo que um bem elaborado índice analítico facilita as consultas mais pontuais. A tradução ao português desta e de outras obras suas representaria inegavelmente um poderoso estímulo aos estudiosos do período colonial da América portuguesa para romper as tradicionais barreiras que atualmente setorizam o estudo das experiências coloniais no Novo Mundo.
George F. Cabral de Souza – Professor no Departamento de História da UFPE. Pesquisador financiado pela FACEPE. Membro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.
ELLIOTT, John H. Impérios del mundo atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830). Madrid: Taurus, 2006. Resenha de: SOUZA, George F. Cabral de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.2, p. 379-382, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]
MARZAL Manuel (Ed), BACIGALUPO Luis (Ed), Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773) (T), Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú (E), Universidad del Pacífico (E), Instituto Francés de Estudios Andinos (IFEA) (E),DIAS Camila Loureiro (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Jesuítas, Modernidade, América Ibérica, América Latina, América -, Sec. 16-18
Desde a renovação historiográfica de que a Companhia de Jesus foi objeto − agora há mais de vinte anos −, sua história esteve especialmente relacionada à questão da modernidade. Isso porque o movimento que consistiu no désenclavement1 da história da Ordem (até então controlada quase exclusivamente por seus membros e limitada a um enquadramento nacional de cunho apologético) resultou em sua apropriação por historiadores leigos, na qualidade de um “observatório” do período moderno. O que se procura, desde então, não é mensurar a contribuição dos jesuítas, mas antes questionar a modernidade por meio da história da Companhia de Jesus. Instituição essa que, de fato, se apresenta como campo privilegiado de observação, por uma dupla razão: seu apostolado universalista, e a sua organização institucional responsável pela formação de um corpus documental contínuo, capaz de trazer elementos de resposta a muitas das questões sobre o período moderno2.
Esse renovamento atendeu em parte ao anseio de abordar a história moderna da Europa a partir de um espaço supranacional, correspondendo à identidade e forma de operação da Ordem inaciana3. Contudo, se teve ares programáticos primordialmente na França e Itália, rapidamente o debate adquiriu uma dimensão internacional e, dos vários campos em que se desenvolveu, sem dúvida o da história da ciência e educação e o das missões e evangelização confirmaram-se os mais dinâmicos4.
Assim, a pergunta que de imediato se coloca a respeito de uma publicação que leva o nome de “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica” é a de saber qual a sua relação com esse contexto de renovação historiográfica. O livro foi publicado em 2007, e traz a lume as atas de um colóquio internacional de mesmo nome realizado no Peru, em 2003. A proposta dos organizadores − um dos quais ele próprio jesuíta5 − aos participantes do encontro era a de avaliar a contribuição da Companhia de Jesus para o desenvolvimento da modernidade na América. Em outras palavras, solicitou-se aos colaboradores a tarefa de delinear algumas características da modernidade na tradição cultural americana, a partir dos diferentes âmbitos em que atuaram os jesuítas, partindo da hipótese inicial segundo a qual a produção intelectual e a atividade educacional e missionária de “alguns padres” da Companhia de Jesus teriam representado o “primeiro e decisivo resplendor da cultura moderna no mundo católico”6. Colocada nesses termos, a questão de fato não parece atender ao novo delineamento metodológico acima referido. Porém, como se explicita na própria introdução, ela foi superada pelas contribuições que, em muitos casos, fizeram realmente valer os ganhos da, ainda recente, renovação. Optou-se então por uma organização da publicação em função das questões levantadas no encontro, e é justamente esse o aspecto mais interessante do livro a se observar.
A obra tem dois volumes: o primeiro, um impresso de portentosas dimensões (pouco mais de quinhentas páginas), conta com uma introdução e vinte e dois artigos. O segundo, em suporte eletrônico (mini-cd) que acompanha o volume impresso, conta com dezessete artigos, além de um apêndice onde foram publicados dois documentos de interesse para os estudiosos da Companhia de Jesus na América Latina: uma apresentação do projeto de reconstituição do acervo histórico da Universidade Javeriana de Bogotá e uma extensa bibliografia sobre os jesuítas na história do Peru. Em ambos os tomos, os artigos foram distribuídos em três seções. A primeira pretende ser uma relação dos textos que tratam dos aspectos teológicos e filosóficos da contribuição jesuíta à construção da modernidade (Los jesuitas y la razón moderna). A segunda reúne os artigos que tratam, em seus múltiplos âmbitos de atuação − ciências naturais e humanas, educação, missão, tecnologia, economia, arte, arquitetura etc. −, a inserção “multifacetada” dos jesuítas no contexto histórico e cultural das colônias americanas (Los jesuitas y la patria criolla). Por fim, a terceira seção agrupa artigos que abordam temas relacionados à expulsão dos jesuítas das colônias americanas, englobando aspectos econômicos, políticos e culturais (Los jesuitas y la crisis de la expulsión).
É compreensível que numa obra que traz a contribuição de quase quarenta autores, de várias áreas e relações diversas com a instituição objeto do debate, as visões sobre a mesma questão sejam defasadas, e revelem a presença tanto de autores que se vêem diretamente engajados nessa renovação historiográfica quanto de outros que lhe são visivelmente alheios. Com efeito, é difícil encontrar nesse livro um eixo que dê realmente conta de todas as contribuições. Mas o fato é que, independentemente da qualidade desigual dos artigos, essa publicação permite-nos esboçar algumas tendências na maneira como a história da Companhia de Jesus vem sendo emprestada pelos pesquisadores interessados na modernidade, especificamente ibero-americana.
Modernidade é, pois, o conceito-chave deste livro. A partir daí, dois problemas de definição se apresentam: um relativo à sua cronologia, e outro, ao delineamento dos seus principais traços característicos. Cada autor opera com uma concepção distinta da modernidade, ora associando-a ao Renascimento, ora à Ilustração, e às vezes ao século XVII. Alguns não consideram o problema, outros o colocam claramente, explicitando seu posicionamento, outros, ainda, o tomam como principal objeto de reflexão. Porém, para Luis Bacigalupo, autor da introdução, o termo moderno abarca menos o sentido do período que se inicia no fim da Idade Média e termina com a Revolução Francesa do que aquilo que representa o pensamento questionador do consuetudinário, sendo que a modernidade se caracteriza, então, como uma era da “cultura em crise” (p. 24). Ainda segundo o organizador, um dos seus principais traços característicos é o fato de ser expansiva, isto é, de tender a aplicar os êxitos da razão a todos os campos do conhecimento e das atividades humanas; a ciência e a educação revelando-se, pois, âmbitos importantes de sua definição e veiculação. Assim, o eixo escolhido no livro para caracterizá-la é o da tensa relação entre princípios de ações divergentes: se por um lado, a razão moderna impele o homem a se emancipar das irracionalidades que o “escravizavam”, por outro, estimula o Estado a ações que visam o seu fortalecimento, pela expansão comercial, industrial e burocrática, gerando forças paradoxais entre a liberdade do indivíduo e a soberania do Estado.
Nessa encruzilhada, a Companhia de Jesus que, justamente por conta do seu apostolado universal, sempre ocupou um lugar central, do ponto de vista social, político e cultural, no processo de expansão do velho mundo e de formação das novas sociedades americanas7, desempenhou um papel importante, tanto na sistematização de estruturas do colonialismo quanto na formação dos quadros que posteriormente foram responsáveis pela emancipação das colônias. Entendida nesses termos, a atuação da Companhia de Jesus na América revela uma contradição crucial para a modernidade americana, na sua relação com a Europa, e parece ser esse paradoxismo do sistema colonial o eixo em torno do qual se reúnem as questões colocadas pelas diversas, e heterogêneas, contribuições.
Em uma apreciação alheia à distribuição dos artigos nas seções definidas pelos organizadores, é possível notar a presença marcante de duas classes de contribuições: artigos que aproximam o tema da modernidade ao da formação das sociedades coloniais, e outros que determinam ênfase na construção da “pátria criolla”. Quanto a esta última, duas questões são nomeadamente abordadas: a responsabilidade dos jesuítas na educação da elite nativa e seu papel na construção de uma identidade nacional.
Assim, o debate teológico-jurídico, que por uma reavaliação do aristotelismo, procurou justificar moralmente a escravidão, é explorado nos artigos de Josep Ignasi Saranyana e de Francisco Moreno Rejón. No que concerne à formulação de um modelo e aos aspectos relacionados à empresa missionária propriamente dita há que se conferir, por exemplo, as contribuições de Jeffrey Klaiber, S.J., Javier Baptista, S.J., Ignacio del Río e Norberto Levinton. Já o texto de Antonella Romano − que se destaca por chamar a atenção para a missão como espaço de produção de ciência, por conta da mobilização de técnicas e saberes que visavam ao domínio territorial − submete a relação entre centro e periferia a uma perspectiva mais ampla, mostrando que a América não somente importou e mestiçou, mas também foi protagonista na construção da cultura moderna. Nesse mesmo sentido vai o argumento de Carmen Salazar-Soler, em seu artigo sobre o desenvolvimento de técnicas mineradoras no Peru nos séculos XVI e XVII.
O tema das atividades educativas dos colégios administrados pelos jesuítas é especialmente mobilizado pelos autores desse livro, e responde a interrogações de enquadramento nacional, desde a abordagem da educação dos caciques, por Monique Alaperrine-Bouyer, até a organização e consolidação de uma estrutura de ensino e formação dos espanhóis e filhos de espanhóis. Nesse sentido, para Maria Cristina Torales Pacheco, os jesuítas teriam assentado na Nova Espanha as bases de uma “esfera pública burguesa”8, na qual se teria formado a geração que posteriormente foi responsável pela emancipação política “e construção do México como país independente” (p. 158).
Porém, adverte Pacheco, não foi apenas na formação de uma classe social que a Companhia de Jesus desempenhou um papel importante: os jesuítas também se implicaram diretamente na construção da identidade nacional. É o que procuram revelar, por exemplo, os estudos sobre os conflitos no seio da própria Ordem, entre os jesuítas nativos e aqueles oriundos da Europa. Bernard Lavallé demonstra que, embora tenha tentado, a cúria generalícia romana não conseguiu coibir a entrada, na instituição, de membros americanos, que acabaram se impondo: pouco tempo depois da chegada dos jesuítas, conclui o autor, os criollos instruídos em seus colégios chegaram a dominar os postos do clero secular em suas respectivas dioceses, gerando conflitos. Pedro Guibovich Pérez identifica no Poema hispano-latino, do jesuíta peruano Rodrigo de Valdés (1619-1682), uma exaltação nacionalista: evidenciando as disputas entre nativos e estrangeiros dentro da própria Companhia, segundo o autor, Valdés mostrava erudição como estratégia de defesa da capacidade intelectual dos criollos, e fazia uso do gênero corográfico como instrumento de exaltação da “pátria chica”.
Também Clavijero (1731-1787) é apresentado, por Beatriz Domingues, como um dos construtores do “patriotismo” mexicano. Como ele, outros jesuítas exilados na Itália, após as expulsões de 1767, contribuíram à construção de uma identidade nacional ao contradizer as teorias de Buffon e De Pauw sobre a degenerescência da natureza americana. Este mesmo assunto passa por vários outros artigos, um dos quais trata especificamente do jesuíta Juan de Velasco, com relação à história equatoriana (Carmen-José Alejos Grau). Quanto a isso, é de se notar as referências obrigatórias aos estudos de Antonello Gerbi e Miguel Batlori9.
A questão dos nacionalismos levantada pela análise da “literatura de exílio” aproxima-nos então de outro importante tema tratado em artigos que também lhe fazem referência, e que acabou originando uma seção à parte: os contextos das expulsões (José del Rey Fajardo, S.J., Francisco de Borja Medina, S.J., Manuel Marzal, S.J., Sandra Negro). Porém, não só essa literatura do exílio, como igualmente aspectos econômicos da expulsão (Guillermo Bravo Acevedo e Kendall W. Brown), relativos aos conflitos no Paraguai (Martín Maria Morales, S.J. e Barbara Ganso) e à definição das fronteiras amazônicas (Fernando Rosas Moscoso) são assuntos levantados, deixando patente a predominância da questão nacional no tratamento da história da Companhia de Jesus na América.
Ora, a correspondência dos marcos cronológicos da história do período moderno e da colonização da América com os da história dos jesuítas (1540-1773) não é fruto de mera coincidência. Se a história da Companhia de Jesus nos momentos de sua fundação e consolidação institucional possibilita questionar o período moderno por um enquadramento supranacional, entretanto, no contexto da sua supressão, a história da Ordem proporciona fecundo campo de análise da questão nacional. E, se o debate franco-italiano privilegiou os séculos XVI e XVII − de construção da identidade jesuíta e definição do apostolado universalista e missionário −, abrindo espaço para a análise da atuação dos padres no âmbito das ciências e das missões, nos meios acadêmicos hispano-americanos (onde aliás a presença de jesuítas historiadores se faz notar de maneira mais evidente), os temas permanecem associados sobretudo ao século XVIII, contexto em que se encadeou uma série de fenômenos que desembocaram na expulsão dos jesuítas dos domínios imperiais europeus e, por fim, na supressão da Ordem. Sob o aspecto historiográfico, então, o livro “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica”, parece confirmar uma tendência própria ao debate hispânico, em que as circunstâncias, causas e conseqüências das expulsões constituem objetos privilegiados de estudo10.
Não é de pouco interesse notar, quanto a isso, um desequilíbrio na publicação que, se reúne na sua maior parte textos referentes à história do México e Peru, conta apenas com a colaboração de Rafael Chambouleyron no que diz respeito aos jesuítas na América portuguesa (embora a baliza cronológica da publicação se inicie em 1549, ano da fundação, no Brasil, da primeira missão jesuíta americana). Se incorporasse a vertente brasileira desse debate, o livro talvez apresentasse um outro tom − contudo ainda em vias de se delinear11.
Notas
1 Termo que, em francês, significa desenclausuração; foi cunhado por Luce Giard, curadora de um volume considerado marco desse novo significado conferido aos estudos jesuítas. Les jésuites à la Renaissance. Système éducatif et production du savoir, dir. Luce GIARD, Paris: Presses universitaires de France, 1995.
2 ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, Présentation, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, pp. 247-260.
3 CANTÚ, Francesca. I gesuiti tra vecchio e nuovo mondo. Note sulla recente storiografia, in Carlo OSSOLA, Marcello VERGA & Maria Antonietta VISCEGLIA (eds.), Religione cultura e política nell’Europa dell’età moderna. Studi offerti a Mario Rosa dagli amici, Firenze: Leo S. Olschki, 2003, pp.173-187.
4 FABRE, Pierre-Antoine. L’histoire des jésuites hors les murs. L’état de la recherche em France. Annali di storia dell’esegesi. Anatomia di un corpo religioso: l’identità dei gesuiti in età moderna, 19/2, 2002, pp. 357-367. Citamos apenas algumas das publicações coletivas mais recentes sobre missão, ensino e ciência: CAROLINO, Luis Miguel & CAMENIETZKI, Carlos Ziller (coord.), Jesuítas, Ensino e Ciência. Séculos XVI-XVIII, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. CHINCHILLA, Perla & ROMANO, Antonella (coord.), Escrituras de la modernidad. Los jesuitas entre cultura retórica y cultura científica, Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2008; FABRE, Pierre-Antoine & VINCENT, Bernard (comp.), Missions religieuses modernes. “Notre lieu est le monde”, Roma: École française de Rome, 2007. Não se pode deixar de mencionar a contribuição dos Estados Unidos a esse renovamento historiográfico, da qual podemos citar, ainda restringindo-nos a publicações coletivas, O’MALLEY, J., BAUILEY, G.A., HARRIS, S.J. & KENNEDY, T.F. (eds.), The Jesuits: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 1999 e, dos mesmos organizadores, The Jesuits II: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 2006. Também na relação entre poder e religião, a Companhia de Jesus inspirou sólidas pesquisas, como se pode conferir em MOLINIÉ, Annie, MERLE, Alexandra & GUILLAUMEALONSO, Aracelo (dir.), Les jésuites en Espagne et en Amérique. Jeux et enjeux du pouvoir (XVIe-XVIIIe siècles), Paris: PUPS, 2007.
5 Esse colóquio foi organizado pela Universidade Católica do Peru, por Luis Bacigalupo e Manuel Marzal Fuentes, S.J. († 2005).
6 “La hipótesis general que motivó la convocatoria a este coloquio es que la producción intelectual y la obra educativa y misionera de algunos padres da Compañía de Jesús habrían sido el primer y decisivo resplandor de la cultura moderna en el mundo católico. Para explorar esa hipótesis, la comisión organizadora del coloquio invitó a académicos de prestigio, quienes aceptaron delinear algunas características de la modernidad en la tradición cultural iberoamericana, partiendo de los diferentes ámbitos en que actuaron los jesuitas entre 1549 y1773”, BACIGALUPO, Luis E. Introducción, in Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica. 1549 y 1773, p.15.
7 ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, “Présentation”, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, p. 255.
8 No seu artigo intitulado “Los jesuítas novohispanos, la modernidad y el espacio público ilustrado”, a autora se diz tributária dos estudos de Roger Chartier e Jürgen Habermas.
9 BATLORI, Miguel. La cultura hispano-italiana de los jesuítas expulsos, Madrid: Biblioteca Românica Hispánica 1966. GERBI, Antonello. La disputa del Nuovo Mondo. Storia de una polemica. 1750-1900, Milano-Napoli, Ricciardi, 1955.
10 De fato, os organizadores do livro Les jésuites en Espagne et en Amérique (cf. supra n. 4) notam que temas relacionados ao destino dos jesuítas no século XVIII ou as missões do Paraguai constituem uma parte importante dos estudos referentes à influência da Companhia de Jesus no mundo ibero-americano. Alguns trabalhos recentemente têm procurado outros caminhos: além do livro em questão, ver, por exemplo, Julian J. LOZANO NAVARRO. La Compañía de Jesús y el poder en la España de los Austrias, Madrid: Cátedra, 2005.
11 Embora pesquisadores brasileiros se dediquem aos estudos jesuítas há vários anos, os empreendimentos coletivos são bastante recentes. Em 2007, também foram publicadas no Brasil as atas de um colóquio referente à Companhia de Jesus, por iniciativa dos próprios jesuítas: BINGEMER, M. C. L., MAC DOWEL, J. A. & NEUTZLING, I. (orgs.), A Globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos. Anais do Seminário Internacional realizado entre 25 e 29 de setembro de 2006 na PUC-RJ, Unisinos-RS e na Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia (FAGE), de Belo Horizonte, São Paulo: Loyola, 2007. Apesar de o próprio título da publicação expressar uma diferença importante com relação ao debate hispano-americano, não é suficiente para definir o tom das discussões brasileiras. Acompanhado deste presente volume e da edição, que deve sair em breve, das atas do colóquio internacional realizado em 2007 na Universidade de São Paulo, “Contextos missionários: religião e poder no Império português”, seus contornos se tornarão mais claros. Este último colóquio, embora não estivesse centrado especificamente nos jesuítas, contou com a colaboração de alguns importantes especialistas em história da Companhia de Jesus. De todo modo, importa aqui salientar o recorte imperial atribuído ao objeto, como indicado no próprio título do encontro.
Camila Loureiro Dias – Doutoranda EHESS, Paris.
MARZAL, Manuel; BACIGALUPO, Luis (Eds.) Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773). Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú; Universidad del Pacífico; Instituto Francés de Estudios Andinos (IFEA), 2007. Resenha de: DIAS, Camila Loureiro. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.27, n.1, p. 417-425, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]
RICUPERO Rodrigo (Aut), A formação da elite colonial. Brasil (c. 1530 – c. 1630) (T), Alameda (E), SOUZA George Félix Cabral de (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Elite Colonial, Séc. 16-17, América – Brasil
Os momentos iniciais da efetiva conquista e ocupação dos territórios americanos do império português são de fundamental importância para todo o posterior desenvolvimento histórico do Brasil. Durante estes anos se desenharam os traços básicos da distribuição espacial da América portuguesa, traços que repercutem até hoje nas dinâmicas do país. Vem dessa época também algumas das principais feições sociais do país, bem como uma parcela importante do caldo sociológico que compõe suas culturas políticas. Apesar de sua importância, poucos são os historiadores que ousam mergulhar nestas águas profundas, nesta fase ao mesmo tempo tão longínqua e tão presente de nossa história. As razões para isso em geral giram em torno do problema das fontes. Essa é uma questão que se repete para outros objetos do período colonial, o que faz desta fase a menos conhecida de nossa história, pese seu caráter fundante.
A obra em tela enfrenta estas limitações e ousa incursionar no primeiro século de colonização. Sua baliza cronológica inicial é 1530, momento em que a política da coroa em relação às terras que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesilhas “dá um salto de qualidade, com a iniciativa do povoamento das terras da costa do Brasil”. O fechamento do período do estudo é a invasão de Pernambuco pela West Indische Compagnie, em 1630, fase em que a conjuntura externa foi sacudida pela entrada em cena de novas potências e pela crise geral do século XVII. Do ponto de vista geográfico, o estudo abrange toda a área costeira da colônia, salientando o autor, que a repartição do estado do Maranhão somente se efetivou a partir de 1626.
As fontes foram magistralmente reunidas por Ricupero, que revisitou um vasto material transcrito e publicado em vários veículos como os Anais e a Coleção de Documentos da Biblioteca Nacional, as revistas de vários Institutos Históricos, inúmeras crônicas, relatórios, descrições, sumários, memórias e compêndios publicados no Brasil e em Portugal. As fontes manuscritas consultadas também foram variadas e numerosas. Ricupero utilizou-se de cartas régias, consultas, processos de disputa de terras, registros de chancelaria régia e das ordens militares, processos inquisitoriais e códices diversos depositados em Lisboa, no Porto e em Évora. No Brasil, consultou fundos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A relação das fontes e bibliografia ocupa sessenta e sete páginas e se constitui por si só num importante guia de pesquisa.
O trabalho se divide em três partes: “Honras e mercês”, “Conquista e Governo” e “Terra, Trabalho e Poder”. Ao longo destas três seções estão distribuídos nove capítulos. Os primeiros dois capítulos, inseridos na seção “Honras e Mercês” discutem como, a partir da concepção de que a principal tarefa da realeza é a distribuição da justiça, as práticas de recompensas por serviços prestados desempenharam um papel importante na atração de colonizadores e no pagamento de suas ações em prol da consolidação dos primeiros núcleos de colonização. O autor elenca um farto rol de exemplos de como a pressa em recompensar e a vagareza em castigar eram elementos indispensáveis no trato com os primeiros colonizadores.
Três capítulos formam a segunda parte do trabalho. Nela o autor esquadrinha as ações iniciais de ocupação efetiva do território, afrontando a presença cada vez mais intensa de outros europeus, sobretudo franceses. Os aspectos legais, militares, econômicos e administrativos são abordados. Destaca-se a necessidade de mais estudos sobre a administração colonial e dos ocupantes dos cargos nesse período. A montagem do Estado colonial nesta fase é analisada sob o prisma da legislação da época e dos provimentos passados aos designados para os cargos da governança. Não se descuida, entretanto, do papel que as redes familiares e clientelares tiveram na formação de uma elite de poder, na qual as principais figuras incrementavam seu raio de influência exatamente pelo controle das indicações e nomeações para os postos de mando.
A terceira e última parte, “Terra, trabalho e poder”, referência direta ao texto da Profa. Vera Lúcia Amaral Ferlini, orientadora do trabalho, é a mais extensa do livro, contendo quatro capítulos. Nesta seção o autor analisa como a ocupação dos cargos de governo permitia um acesso direto aos mecanismos de distribuição de terras e, conseqüentemente, na formação de dilatados patrimônios. Em paralelo, especialmente nos primeiros anos do período em estudo, o acesso privilegiado a outros bens explorados na imensa costa atlântica do continente representava uma considerável possibilidade de ganhos para aqueles que ocupavam posições cimeiras na administração local ou para seus apaniguados. Freqüentemente, esses ganhos e vantagens eram conseguidos ao arrepio da lei. Seja pelo trato ilícito, seja pelo açambarcamento de determinadas atividades, vários são os exemplos de como as autoridades se valiam dos poderes que lhe foram investidos para sacar proveito próprio de recursos que deveriam ser exclusivos do monarca ou que poderiam beneficiar um maior número de colonizadores.
Entra nesta questão, além da terra, o indispensável aporte de mão-de-obra. Neste campo, o autor demonstra como os dilatados poderes concedidos aos representantes do poder real na colônia acabaram permitindo que os mesmos consolidassem suas redes clientelares através do controle da divisão do contingente humano indígena entre as propriedades de parentes ou achegados. Coloca-se em relevo a atuação dos jesuítas na arregimentação de indígenas, bem como as reações dos colonizadores as interferências inacianas e à legislação regulamentadora emanada de Lisboa e Madri.
Os dois últimos capítulos, “O patrimônio fundiário I e II” oferecem abundante informação sobre o processo de ocupação das terras pelas unidades produtivas nas capitanias, iniciando-se pela Bahia, seguida pelas capitanias do centro-sul, Pernambuco e Itamaracá, Paraíba e Sergipe e finalmente a costa leste-oeste. Nestes capítulos figuram cinco interessantes tabelas que reúnem e sistematizam dados sobre os senhores de engenho do Recôncavo Baiano e de Pernambuco e Itamaracá, apontando informações sobre sua participação na governança colonial e seu estatuto social.
Ao longo de todo o texto, Ricupero dá ao poder central um papel de relevo e de controle sobre o processo de ocupação da nova colônia. Esta inclinação deriva diretamente da opção que faz pela idéia de que a colonização se realiza dentro dos quadros do Antigo Sistema Colonial. Daí também o seu empenho em tentar afirmar a existência de um senso de unidade territorial e centralidade administrativa e a sua crítica à idéia de “América Portuguesa”, alegando sua ausência na documentação consultada. O autor faz questão, entretanto, de expressar sua negação à vinculação automática retroativa ao Estado que se formaria a posteriori.
Apesar deste posicionamento, no decorrer do seu trabalho, o autor menciona dezenas de exemplos de como as brechas da autoridade régia permitiam que os componentes das primeiras gerações da “elite brasileira” lograssem, em direto afrontamento às normais emanadas do centro, sacar vantagens para interesses próprios. Pese as afirmações do autor no sentido de dar um papel de relevo à coroa – como cabeça e impulsionadora do aparelho de dominação sobre a colônia através de seus representantes, máxime o Governador-geral – a impressão que fica do livro é de que ao contrário de defender os interesses da coroa, os seus oficiais instrumentalizam os poderes que lhe eram delegados para beneficiar a si próprios e a suas redes clientelares. O desvirtuamento das normativas sobre os indígenas é um bom exemplo disso.
Os mecanismos de formação das elites no eixo centro-sul, descritos por Fragoso e outros autores em trabalhos recentes, emergem claramente dos casos estudados por Ricupero, apesar de algumas discordâncias do autor em relação à interpretação da formas e intenções das concessões de mercês régias. Na própria referência ao que entende por elite (nota 43, página 22), o autor se remete às discussões propostas por Bicalho. Por isso soa “estranha” a defesa feita pelo autor, diretamente em duas ocasiões (na introdução e nas considerações finais) e indiretamente em algumas passagens ao longo do texto, da concepção do Antigo Sistema Colonial como chave interpretativa para a formação de uma elite brasileira.
A abordagem do autor sobre as esparsas fontes do período inicial da colonização lança indagações atuais sobre um material que se revela extremamente rico em informações históricas. O laborioso trabalho de pesquisa vem apresentado em um texto claro e de agradável leitura, e se beneficia ainda de um primoroso trabalho de edição. Os capítulos finais seriam ainda mais informativos se acompanhados de mapas para orientação espacial do leitor. Ricupero apresenta assim uma sólida contribuição para a crescente produção científica sobre o período colonial e nos oferece interessantes elementos para o salutar debate historiográfico em torno à suas interpretações. Seu livro integra, indiscutivelmente, o rol de obras obrigatórias para o estudo do nosso período fundacional.
George Félix Cabral de Souza – Universidade Federal de Pernambuco.
RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial. Brasil (c. 1530 – c. 1630). São Paulo: Alameda, 2009. Resenha de: SOUZA, George Félix Cabral de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.27, n.2, p.329-333, jul./dez. 2009. Acessar publicação original [DR]
SERRERA Ramón María (Aut), La América de los Habsburgo (1517-1700) (T), Universidad de Sevilla (E), Fundación Real Maestranza de Caballería de Sevilla (E), SÁNCHEZ Carlos Alberto González (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Dinastia dos Habsburgo, Europa -, América -, Europa – Espanha, Séc. 15-17
Reseñar un libro no en pocas ocasiones puede llegar a ser una labor aburrida y tediosa, sobre todo cuando no es el fruto de una decisión personal sino de una obligación editorial, un compromiso o cualquier otra de las componendas propias de la vida académica. La tarea puede complicarse aun más si la obra no es del gusto del reseñador; o su temática no cuadra con sus aficiones y preocupaciones científicas, ni su calidad alcanza un mínimo de solvencia. Bien saben los implicados en estas lides los sinsabores e ingratitudes que puede plantear la redacción de una crítica negativa, aunque fuere constructiva, sobre trabajos en los que, en el peor de los casos, siquiera se ha vertido tiempo, alguna ilusión y esfuerzo. Por ello soy de la opinión, como Cervantes, de que todo libro merece respeto, pues algo bueno siempre guardan. No en vano don Miguel leía hasta los papeles tirados en las calles.
No es éste el pleito del que ahora me ocupa, todo un alarde de reposado saber, rigor y sutileza historiográfica. Resultado de muchos y calmos años de investigación y reflexión; de una vida dada al empeño de comprender y hacer saber a los demás acerca del impacto de América en el devenir histórico de la España, y Europa en general, del Antiguo Régimen. Ya decía Erasmo que es el mejor sabio-profesor quien se da con fruición al estudio para a la postre regalar el provecho a sus alumnos y a todo aquel con deseos de aprender. Créanme si les digo que semejante cometido siempre ha sido la meta de don Ramón María Serrera, catedrático de Historia de América de la Universidad de Sevilla. Basta con interrogar al numeroso y premiado alumnado que ha tenido la suerte de disfrutar de su minerva durante su ya dilatada carrera profesional. A ellos va dedicado el libro al que ahora doy la bienvenida y enhorabuena; ¿quieren mejor refrendo de lo dicho, mayor prueba de generosidad docente y personal? Alguno, resuelto en desconfianza y recelos, podría atribuir mi juicio, por interesado y subjetivo, a la admiración y amistad que, desde hace largo tiempo, profeso al autor. Cierto es, pero les aseguro que ambos estados anímicos son una agradecida consecuencia de lo mucho y bueno que me ha enseñado de viva voz o en letra impresa; no solo de historia, también de arte y música, de ética y honradez, humana e intelectual. De la cultura en definitiva. Decían los clásicos que el cariño, el trato, la conversación y los hechos conservan las amistades.
Pues bien, el libro en cierne, La América de los Habsburgo (1517-1700) –título acertado por lo inusual de Habsburgo en otros de cariz similar-, está concebido como un manual universitario, un útil de consulta para el estudio de una de las asignaturas que el Profesor Serrera viene impartiendo desde tiempo atrás (América en la Edad Moderna). De ahí que para la dilatada elaboración del texto se haya servido de las fuentes documentales, manuscritas e impresas, antiguas y modernas, actualizadas y repensadas, que distinguen su diverso cúmulo de saberes, maná indispensable al adecuado conocimiento de una materia tratada e interpretada con rigurosos criterios científicoacadémicos. Por ello no es uno más de los manuales al uso que suelen exhibir una suma informativa sin apenas introspección del historiador, es decir, la casi simple secuencia de los hechos y personajes, de variopinta naturaleza, correspondientes a la época de referencia, con frecuencia realizada a partir de los manuales precedentes. No olvidemos que estas iniciativas suelen tener su origen en propuestas editoriales, cuyas miras con frecuencia giran en torno a la oportunidad de un determinado producto en el mercado. Así, los autores se ven apremiados por una ajustada programación empresarial, la que, a su vez, delimita de forma precisa la ejecución de la obra en la forma prevista y en un tiempo determinado.
La de don Ramón, en cambio, fue una decisión personal, tomada, hace 20 años, sin otro ánimo crematístico que poner a prueba sus conocimientos y capacidad comunicativa –de sobra magistral- en la confección de un texto, a modo de guía de estudio y alta divulgación, capaz de ofertar a propios y extraños un panorama analítico de la América Española en los siglos XVI y XVII, desde una perspectiva total e integradora, o sea, afrontando cada una de las manifestaciones que definen una época y su humanidad (geografía, economía, sociedad, política, cultura y civilización). Porque abomina la actual especialización de la historiografía en temáticas acotadas y exclusivistas fuera de las cuales no se sabe nada: el virus mortal de las humanidades. De ahí la importancia que concede, entre otras muchas variables, al arte, y a la cultura en última instancia; parámetros que le ayudan a definir mejor sus objetos de estudio, exquisitamente plasmados en las cuantiosas imágenes que ilustran las páginas del libro. Una especie de treta afortunada con la que nos quiere delatar la importancia de la imagen como documento histórico, vestigios del pasado en el presente, no mudos sino elocuentes, a la par que los escritos, dotados de una preciosa información esencial para la mejor comprensión de la época en la que surgen y se expresan.
El cometido del libro, por tanto, requirió atención esmerada y trabajo pausado; no menos, audacia, ingenio y, sobre todo, sapiencia acrecentada. A la larga, como se ha demostrado, llegaría la hora de la cuestión editorial. Esta manera de proceder y de buen hacer ha dado a luz una magnífica síntesis interpretativa en la que quedan virtuosamente equilibradas la información factual y la reflexión crítica, la profundidad y la difusión; al mejor estilo de don Antonio Domínguez Ortiz y don Guillermo Céspedes, próvidos historiadores a los que nuestro autor profesa una inteligente consideración. Si a ello le unimos el alarde de exquisitez plasmado en su prosa, sencilla y elegante a la vez, colorista y expresiva sin necesidad de artificios retóricos, las mercedes del libro están servidas por doquier en el texto.
Una de sus mejores cualidades, sin duda, es la pericia historiográfica del autor, arraigada en la mesura y el sentido común, el tiento y la prudencia. Garantes de una aproximación a los procesos históricos tratados al margen de juicios y evaluaciones éticos, una manera de ejercer el oficio que él mismo estima antihistórica y propensa a descontextualizar los fenómenos en estudio, o lo que es igual, a abordarlos fuera de las coordenadas culturales y mentales dentro de las cuales se desarrollan. No por casualidad su relato se distancia de aquella historiografía, en tiempos dominante, presa de una concepción eurocéntrica, y chovinista por defecto, en la que adquiere un exagerado protagonismo el hombre blanco a costa de las civilizaciones autóctonas. La de don Ramón en cambio enfatiza en el desarrollo de una trayectoria histórica resultado de las grandes migraciones atlánticas y del contacto multicultural entre europeos, indígenas y africanos, dentro de un orden colonial -un sistema de dominio- desplegado a través de una red intercontinental de circuitos comerciales, intelectuales, culturales y políticos. Ello tampoco le impide ignorar la diversidad ni las grandes diferencias de estructura y experiencia histórica entre Europa y el Mundo Atlántico, o admitir que la cultura americana no fue una réplica exacta de la europea. Del mismo modo huye de teorías totalizadoras en la interpretación del pasado, consciente del determinismo y relativismo que propician, dejando escaso margen de acción a la irracionalidad y libertad del hombre, factores en nada incompatibles con los estructurales.
La forma de hacer historia del profesor Serrera, obvio es, facilita la reflexión y el debate mediante el despliegue de problemas y líneas de investigación de cara a los posibles interesados en este menester. Más aun cuando aborda cuestiones controvertidas o desfiguradas por tópicos carentes de escrúpulos científicos, sea el caso de los distintos episodios que tienen que ver con la leyenda negra todavía vigente y, lo que es peor, a menudo encorsetados en discursos oficiales a este y el otro lado del Atlántico. Cuita que, a la par, no le predispone hacia una leyenda rosa o dorada, sino hacia otra gris claro, el color que nos ayude a asumir nuestra historia tal como fue, sin complejos de madrastra ni sentimientos de culpa descontextualizados y al albur de quienes los manipulan depositando en ellos fines espurios e interesados.
Este gran libro en todos los órdenes, como fuere, transita por una silva de conocimientos -auxiliada de un encomiable y auxiliar piélago de gráficos y mapas-, entre 1517, año de la llegada al trono de Carlos I, y 1700, fecha del óbito de Carlos II sin herederos y del fin de la dinastía de los Austrias en España. He aquí una cronología que precipita la razón principal del título de una obra cuyo argumento se divide en tres grandes apartados. El primero cubre una etapa crucial de la historia de las Indias españolas (1517-1542), correspondiente al ciclo de la conquista de aquel Nuevo Mundo, en el que se dirimen con maestría cuestiones tan trascendentes como el “choque cultural”, concepto que, dados los efectos desestructuradores de la acción conquistadora, el autor aprecia más coherente que los de “aculturación”, “occidentalización” o “transculturación”. También el proceso de dominación militar y su justificación teológica, la resistencia, activa y pasiva, de la población indígena, para terminar con un precioso capítulo de historia cultural imbuido en las novedades, y su asimilación por los europeos, que empezaron a exhibir unas tierras demasiado lejanas y extrañas: la dietética, la flora, la fauna, el medio ambiente y un sinfín de otras albricias que empezaron a transmitir las plumas de los primeros pobladores españoles. Gentes a la ventura que, conforme a su utillaje mental y referente simbólico, solían ver lo que escriben y no al contrario.
El segundo bloque temático afronta el periodo coincidente con la reorganización del sistema colonial, que nuestro historiador extiende de 1542 a 1598. Casi medio siglo en el que América va dejando de ser el espacio ideal del conquistador, el fraile y el encomendero para convertirse en el ecumene del colono, el funcionario y el cura. Porque es la época del nacimiento de una población multicultural y, como consecuencia inmediata, del impacto de los mestizajes a causa de un continuo tránsito, además de humano, de conocimientos, prácticas e imaginarios, germen del enfrentamiento de modos de vida, tradiciones y sistemas de pensamientos diferentes que la apertura de los nuevos mundos provocó. Son los años de la emergencia de un nuevo orden social, de un método de explotación de los recursos, con los metales preciosos y la Carrera de Indias como ejes, catalizador de una economía-mundo que algunos ven cual principios de la globalización actual; del despliegue del poder real y su centralizadora maquinaria burocrática-institucional. Atrás no queda, en medio de la Contrarreforma, la formación de la Iglesia Indiana, expresión de un catolicismo militante que tendrá en la misión y el control de las conciencias (la Inquisición y la extirpación de idolatrías) una de sus principales señas de identidad, patente de igual manera en un arte y una cultura concebidos como retórica cristiana.
Llegamos así a la última de las partes del libro, dedicada a poner de relieve la consolidación de la personalidad continental de América durante el Seiscientos, un siglo de crisis en Europa que exhala una coyuntura opuesta, o diferente (reajustes, cambios, transformaciones), en unas Indias atlánticas que empiezan a afianzar su autoidentidad. Es por ello que el profesor Serrera nos aperciba aquí, con esmero y agudeza, de los riesgos que conlleva ensayar la historia de América desde una perspectiva exclusivamente metropolitana; pues podemos caer en una visión reduccionista, alejada de la realidad y, peor aun, muy cercana a los postulados ideológicos del gobernante peninsular del XVII. Con este presupuesto metodológico se incide en la autonomía y autosuficiencia, en parte consecuencia de la postración de la Metrópoli, que irá desarrollando el Nuevo Continente. El fenómeno, como bien pone de manifiesto el autor, se dejará sentir en las diferentes facetas de la vida colonial, ya sea a través del progresivo protagonismo de la economía rural (la hacienda) frente a la minería y el tráfico oceánico; de las tensiones de una sociedad multiétnica, del auge de la Iglesia Nacional (la expansión conventual), del incremento del poder criollo y las lacras de la política colonial (corrupción, clientelismo, venalidad). Todo ello enmarcado en una cultura barroca cuya criollización le presta un perfil sincrético y sui generis.
En fin, creo que no es poco el abismo de sugerentes ideas, hechos y especulaciones que el libro sometido a mi opinión nos ofrece. Confío que en poco tiempo nos referiremos a él como “el Serrera”, cual se alude al “Elliott” o al “Domínguez Ortiz”, una simbiosis entre autor y título que sin más denota calidad, fama, familiaridad y asiduidad de uso. Pero hora ya va siendo de dar la palabra, escrita o hablada, a los posibles y agraciados lectores, a quienes don Ramón les ha dado en breve la cosecha que ha sudado en muchos años. Espero que sus opiniones mejoren la mía, según dije, quizás sesgada por el afecto y la admiración. En cualquier caso nadie quedará defraudado de internarse en semejante copia de aciertos y bonanzas. Si falta hallaren, súplanla con discreción, porque ha de ser leve y sobre asunto muy dudoso, más dadas las muchas generalidades y particularidades, de tan varios sucesos, labradas. O traigan a la memoria al Inca Garcilaso, quien en uno de sus prefacios pide al lector el aprecio de una su traducción haciéndole saber, que hasta que no tuviere hijos de esta talla y no supiere lo que cuesta criarlos y ponerlos en tal estado, no desdeñase su trabajo. A buen seguro no caeremos en trampa tan ingrata delante de un historiador, don Ramón María Serrera, en el que coinciden grandeza de persona, ingenio y saber. Arte es saber buscar a estos hombres, y suerte topar con ellos.
Carlos Alberto González Sánchez – Universidad de Sevilla.
SERRERA, Ramón María. La América de los Habsburgo (1517-1700). Sevilla: Universidad de Sevilla; Fundación Real Maestranza de Caballería de Sevilla, 2011. Resenha de: SÁNCHEZ, Carlos Alberto González. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.1, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]
SILVEIRA Marcus Marciano Gonçalves da (Aut), Templos modernos/ templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil (T), Autêntica Editora (E), RIBEIRO Marília de Azambuja (Res), BOTELHO Angélica Cristina de Paula (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Arquitetura Religiosa, Modernismo, Demolição de Templos, Catolicismo, América – Brasil, Séc. 20
Desde a independência política do Brasil, já durante o período monárquico, surgiu a preocupação com a criação de uma identidade artístico-arquitetônica para o novo estado em vias de formação. Foi no contexto da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, por exemplo, que Manuel José Araújo de Porto Alegre encetou os primeiros debates acerca de um estilo arquitetônico nacional.
Entretanto, é somente a partir do movimento modernista e da institucionalização de uma política patrimonial para o país, com a criação do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), durante o Estado Novo, que estratégias mais incisivas em torno da criação de um modelo artístico identitário nacional começaram a ser colocadas em prática.
Na verdade, seriam os mesmos arquitetos promotores do movimento modernista aqueles que a parir do final da década de 1930, ajudariam o governo Vargas a forjar a política patrimonial do Sphan e a elaborar a “versão oficial” da memória patrimonial e artística do Brasil.
O paradoxo que caracterizou a trajetória desse grupo de arquitetos-intelectuais, marcada pelo seu envolvimento direto tanto nas políticas de preservação do “Barroco Colonial” – em especial o “Barroco Mineiro” – elevado por eles à condição de símbolo da identidade artística nacional, quanto no projeto de criação de novo “estilo brasileiro”, o moderno, também por eles legitimado, é o ponto de partida do estudo de Marcus Marciano Gonçalves da Silveira.
O livro consiste na publicação da Dissertação de Mestrado em História e Culturas Políticas do autor, junto a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nele, a partir do caso da cidade de Ferros (MG) – cuja Igreja Matriz dedicada a Santa Ana, originariamente em estilo colonial, foi demolida, na década de 1960, para a construção de um edifício em estilo modernista –, o autor procura estabelecer relações entre o processo de difusão da arquitetura religiosa modernista no Brasil, nas décadas de 1940 a 1960, com uma ideologia estatal de cunho desenvolvimentista e a escolha de políticas “modernizantes” por parte de determinados setores da Igreja Católica.
Diante do silêncio das principais narrativas sobre a história da arquitetura modernista no Brasil que, centradas na arquitetura civil, geralmente, só mencionam duas obras de arquitetura eclesiástica: a Capela da Pampulha e a Catedral de Brasília de Oscar Niemeyer, o autor se propõe a tirar da obscuridade outros projetos arquitetônicos modernistas para edifícios religiosos.
Para tanto, faz um levantamento dos projetos de igrejas em estilo modernista publicados nas principais revistas brasileiras de arquitetura entre as décadas de 40 e 60 (leia-se: Acrópole; Habitat; Arquitetura e Engenharia; Arquitetura; e, Arquitetura, Engenharia e Belas Artes).
Todavia, apesar do título do primeiro capítulo “A trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil” somente ao seu final (pp. 88-97) encontraremos uma lista e algumas imagens de projetos e de igrejas efetivamente construídas. Mesmo somando-se a esses, os projetos colocados – sem razão evidente – no Anexo A, o autor está longe de fazer um levantamento sistemático sobre o assunto: os exemplos mencionados, praticamente, só dizem respeito ao sudeste e, em número menor, ao sul do país e, além disso, o autor não se preocupa em destacar quais projetos efetivamente saíram do papel.
A primeira parte do livro, na verdade, se ocupa muito mais dos fatores ideológicos e políticos que legitimaram a destruição dos edifícios antigos e sua substituição por templos modernos.
O autor procura investigar de que forma o modernismo conseguiu fomentar a associação entre passado e atraso, e entre modernidade e progresso. O modernismo coloca-se como alternativa a um passado atrasado, não pelo seu valor histórico e estilístico, mas por ser carregado de estrangeirismos.
Neste sentido, “o projeto modernista” vincularia a idéia de retrógrado, de ultrapassado, sobretudo, aos chamados “estilos históricos”, a partir de uma construção discursiva que também reverberaria na política do próprio Sphan, uma vez que houve pouquíssimos tombamentos de edifícios em estilo eclético neste período.
Segue-se uma reconstrução da rede de interesses que uniu os arquitetos modernistas e alguns setores da Igreja. A Igreja buscava fugir de sua “identidade museológica”, a partir da retirada dos elementos decorativos que preenchiam todo o corpo do templo, tirando a atenção do altar. Assim, a ânsia de alguns setores do clero por uma renovação litúrgica que adequasse os templos à sua funcionalidade ajudou nessa aproximação.
No que tange, por exemplo, o caso da Matriz de Ferros, segundo o autor, a preocupação com o estado deplorável do templo era muito mais centrada na sua falta de funcionalidade do que no seu valor enquanto patrimônio histórico.
Neste sentido, a ausência de posicionamento do Sphan em relação à proposta de demolição da Matriz de Sant’Ana, ratifica a afirmação do autor de que o estilo “Barroco Nacional” legitimado pelos modernistas, foi praticamente o único padrão artístico que despertava o interesse da instituição, a qual deixava na mão da Igreja a responsabilidade absoluta sobre aqueles templos que “fugiam da norma”, incluídos aqueles em estilo colonial tardio.
Desta forma, a aproximação entre religiosos e arquitetos e a inércia/desinteresse dos órgãos institucionais, segundo o autor, teriam ajudado o modernismo a se colocar como a possibilidade arquitetônica capaz de atender aos desejos do clero por novas formas litúrgicas, mais adequadas ao espírito desenvolvimentista no qual o país estava mergulhado.
Na segunda parte do livro, o autor desenvolve seu estudo de caso, reconstruindo, com rica documentação, todo o processo que conduziu a demolição da antiga e a ereção da nova Matriz.
Ele destrincha toda a polêmica acerca da demolição, o Movimento Verde – pró- modernismo –, seus antagonistas, os pontos de vista, os discursos, o papel da imprensa, a decisão por meio de plebiscito, a atuação da Igreja – mais especificamente do Movimento Litúrgico –, o desinteresse dos órgãos de salvaguarda do Estado, etc.. As imagens colocadas no Anexo B muito enriquecem a percepção do leitor acerca da importância e do impacto que todo o processo teve para a cidade.
Assim, partindo de um plano mais geral, o da consolidação do modernismo como proposta mais conveniente a um Estado cujo programa político estava voltado para a “modernização” do país, o autor chega às conseqüências – a seu ver, nefastas – que a colocação em prática desta política de renovação teve para a pequena cidade de Ferros, no interior de Minas Gerais.
Destaca-se, nesta parte, a força narrativa com a qual o autor constrói seu discurso acerca da falência do projeto “modernizador” dos modernistas. Tocante é seu relato acerca de como o contraste entre o fórum – em estilo colonial – e a nova igreja representavam a memória de um arrependimento coletivo.
A imagem da estrutura arquitetônica modernista – hoje já não mais “moderna” – transformou-se assim no vestígio vivo de uma “modernidade” que não veio. A crença na eficácia da inferência arquitetônica como propulsora do progresso mostrou-se vã.
O estudo da dissolução da “paisagem tradicional mineira” na cidade de Ferros, deste modo, torna-se uma importante reflexão sobre a ausência de preocupação com o restante da paisagem urbana que caracterizou o “projeto modernista”, bem como uma lição para aqueles que fazem e implantam políticas patrimoniais neste país.
A eleição de uma ou outra forma patrimonial como mais “legítima”, em detrimento de outras, consideradas retrógradas, via de regra, acaba por retirar das gerações vindouras o direito de conhecer o seu próprio passado.
Marília de Azambuja Ribeiro – Departamento de História, UFPE.
Angélica Cristina de Paula Botelho – Bolsista PIBIC (Propesq/UFPE) do Projeto Espaço urbano, arquitetura eclesiástica e cultura tridentina da Professora Doutora Marília de Azambuja Ribeiro (Departamento de História, UFPE).
SILVEIRA, Marcus Marciano Gonçalves da. Templos modernos, templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja; BOTELHO, Angélica Cristina de Paula. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.1, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]
ZANETTI Valéria (Aut), Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre. (1840-1860), (T), MAESTRI Mário (Apres), Editora Universitária (E), Universidade de Passo Fundo (E), BERNARDES Denis Antônio de Mendonça (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Escravos, Libertos, Cidade de Porto Alegre, Séc. 19, América – Brasil
Em nossa formação como nação, como povo e como Estado a colonização e a escravidão foram fundamentais e sob muitos aspectos ainda estão presentes em seus prolongamentos. A escravidão permanecendo bem além da constituição do Estado nacional e do surgimento de um novo ente político, cultural, social e econômico: a Nação brasileira.
Sob as mais diversas visões interpretativas e com maior ou menor solidez de pesquisa documental, ambas – colonização e escravidão – foram desde logo objeto de estudos históricos muitos dos quais se tornaram referências obrigatórias na historiografia brasileira. Não podia ser diferente, mesmo de um ponto de vista teoricamente pouco ambicioso, devido, entre outros fatores, a união intrínseca entre colonização e escravidão e a longa duração de ambas por mais de quatro séculos para a primeira e quase cinco séculos para a segunda. A escravidão sobreviveu ao fim do Antigo Sistema Colonial e continuou sendo o fundamento das relações sociais de produção do Império do Brasil. Todas as tentativas iniciais feitas para desvincular a nova Nação da escravidão fracassaram sob a força avassaladora da herança colonial escravista. Assim o Império do Brasil assentou sua modernidade na manutenção de uma estrutura econômica e social arcaica. Conheceu uma nova inserção na economia internacional absorvendo várias das inovações tecnológicas oriundas da revolução industrial: navegação a vapor, estradas de ferro, cabo submarino para a comunicação com a Europa e a América do Norte, fotografia, telefone, imprensa de massa. No plano político nasceu como uma nação constitucional, com divisão de poderes, limitações ao poder imperial, declaração de direitos de cidadania, liberdade de imprensa, vida social e cultural burguesa. Mas, convivendo com tudo isto no plano das estruturas materiais e das estruturas da política e da cultura, lá estava presente a escravidão. Não é, naturalmente, fortuito, que o final do Império tenha se dado pouco depois do fim da escravidão, embora esta quase coincidência não possa e não deva ser vista como uma causalidade mecânica. A relação entre os dois acontecimentos é mais profunda e, sob muitos aspectos, não deve ser tomada em desfavor das realizações reformistas do Império. Mas esta questão nos levaria longe do objeto e do objetivo desta resenha: a escravidão urbana em Porto Alegre e, por extensão no Brasil, a partir do livro de Valéria Zanetti, aqui examinado.
A grande teia das relações escravistas que cobriu, com intensidade diversa, todo o território colonial e nacional até sua extinção tinha duas grandes expressões espaciais: a rural e a urbana. A primeira numericamente mais importante propiciou a inserção da colônia e depois do Império independente, na economia mundial. Foi, em sua fase colonial, essencial para o enriquecimento da metrópole e de suas camadas mercantis, burocráticas clericais e fradescas e do Estado monárquico português. Foi, ainda, fundamental no processo de acumulação primitiva que está na base da formação do capitalismo e da eclosão da revolução industrial do século XVIII. A escravidão urbana, mais voltada para a acumulação interna, foi, sobretudo, a escravidão dos indispensáveis serviços domésticos quando a tecnologia do cotidiano dependia em larga medida da força física: abastecimento de água e lenha, limpeza dos excrementos humanos, limpeza do lixo, transporte de alimentos, de diversas mercadorias, de móveis e mesmo de pessoas. Mas ela esteve, também, presente, no comércio urbano de miudezas, de alimentos, de bebidas. No transporte costeiro e fluvial. Produtores de renda para seus senhores, escravos e escravas urbanos foram utilizados sob a dupla forma de escravos de aluguel e de escravos de ganho. Vista no longo prazo percebemos que, ao contrário de arrefecer com a Independência e com o crescimento de uma vida urbana de recorte mais burguês, ela se intensificou. O auge da escravidão urbana no Brasil corresponde justamente aos anos de consolidação do Império e ao seu apogeu.
Durante anos, mais ou menos ignorada pela historiografia ou mitificada como mais suave, a escravidão urbana no Brasil tem sido objeto de novos e importantes estudos, que tem promovido uma verdadeira renovação do conhecimento da história brasileira em seu conjunto. Neste processo de renovação muitos são os autores e livros a serem citados. Para não cometer injustiças e omissões deixamos de mencioná-los aqui, mas o leitor encontrará boa parte deles nas referências presentes no livro de Valéria Zanetti. Que passaremos agora a examinar mais detidamente. Situando-se com originalidade na renovadora historiografia da escravidão no Brasil Valéria Zanetti nos deu um livro vigoroso, solidamente fundamentado em pesquisas de ricas fontes primárias e utilizando o melhor das referências então disponíveis. Com pleno domínio da boa escrita histórica. O que significa que a leitura é feita com agrado, além de proveito, tanto por especialistas quanto por não especialistas, o que não é pouco.
Com este livro tomamos conhecimento da escravidão urbana na Porto Alegre e arredores entre os anos 1840-1860. A autora reforça a revisão de um equívoco por vezes ainda corrente: a da pouca presença do escravo no Rio Grande do Sul. Para tanto os dados quantitativos são, naturalmente, essenciais. Ficamos assim sabendo que mesmo após o fim do tráfico a partir de 1850, o número de escravos no Rio Grande do Sul aumentou. Informação importante que significa a existência de um dinamismo econômico que necessitava do aporte de mão de obra escrava através do comércio interprovincial de escravos. Mas, os essenciais dados quantitativos são aqui a base de uma trama qualitativa de grande riqueza. Para tanto contribui em muito o uso de depoimentos de viajantes e observadores locais, do noticiário dos jornais e dos processos judiciais. As ilustrações foram escolhidas com critério, enriquecem o texto, complementando-o.
Acomodação, negociação, alimentação, vestuário, doenças, folguedos, ofícios e ocupações de escravos e escravas, feitiçarias, estupros prostituição, devoção, controle, traições, atração erótica da mulher negra, assassinatos, conflito violência, criminalidade, roubos, suicídios, resistência, sob as mais diversas formas, (in) justiça senhorial, são algumas expressões e temas estudados ao longo do livro e que registram com acuidade a presença e o modo da presença de escravos e escravas no meio urbano de Porto Alegre de meados do século XIX. Expressões e temas que podem ser aplicados às principais cidades brasileiras do período, o que situa este livro não apenas como uma valiosa contribuição para a história de Porto Alegre, mas para a história do Brasil. A enunciação dos títulos dos seus vários capítulos dará ao leitor uma idéia dos diversos aspectos da escravidão em Porto Alegre no período estudado por Valéria Zanetti: 1. O gado, a terra e o homem, 2. Porto Alegre: origem e povoamento, 3. Violência no passado, amenidades no presente: as visões da historiografia acerca do escravo urbano, 4. Crimes de escravos e libertos em Porto Alegre, 5. Vivendo em conflito e em solidariedade, 6. Vida amorosa, familiar e manifestações culturais de escravos e libertos em Porto Alegre, 7. Poder e contrapoder: resistência do escravo urbano.
Finalizemos esta breve resenha com um trecho do livro para que o leitor tenha a vontade, da qual não se arrependerá, de conhecer o livro em sua inteireza:
“A visão de que os cativos urbanos eram bem alimentados, vestiam-se adequadamente e viviam em harmonia com os senhores não combina com a informação documental. Involuntariamente, os anúncios sobre fugas na imprensa denunciam a verdadeira condição de existência civil. Arsène Isabelle esteve na província e não partilhou da visão otimista, registrando em seu diário as violências cometidas pelos senhores. Segundo Isabelle, os senhores gaúchos tratavam seus cativos como se tratavam os cães: ‘Começam por insultá-los. Se não vêm imediatamente, recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de sua senhora […] ou ainda um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro amo. Se resmungam, são ligados ao primeiro poste e então o senhor e senhora vêm com grande alegria no coração, para ver como são flagelados, até verterem sangue aqueles que não têm, muitas vezes, outro erro que a inocência de não ter sabido adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões’.
Ao percorrer as páginas deste livro, sob muitos aspectos fascinantes, não podemos deixar de pensar que muitos dos antigos males da escravidão não compõe apenas o nosso passado. Renovam-se cotidianamente em nossa (in) justiça de classe, ainda senhorial, na precariedade das diversas formas de trabalho nas áreas rurais e urbanas, na precariedade dos direitos, nas discriminações de gênero, na exploração do trabalho infantil, em renovadas formas de trabalho escravo, na violência a que está submetida a população pobre do campo e das cidades, especialmente dos descendentes diretos dos antigos escravos, nos privilégios incrustados no Estado, na sua captura pelos interesses privados.
Livros como este mostram como a boa história é sempre libertadora e não faz uma limitada e equivocada separação entre o passado e o presente. Por isso a grande mídia conservadora a ignora, promovendo best sellers que veiculam uma visão pitoresca e caricatural do nosso passado. Visão que serve apenas para acomodar os leitores na visão de que nada mudou e nada mudará.
Nota
1 Home Page: www.upf.tche.br/editora. E-mail: editora@upf.tche.br
Denis Antônio de Mendonça Bernardes – Universidade Federal de Pernambuco.
ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre. (1840-1860). Apresentação de Mário Maestri. Passo Fundo: Editora Universitária; Universidade de Passo Fundo1, 2002. (Coleção Malungo, 6). Resenha de: BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]
VAREJÃO Marcela da Silva (Aut), Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia giuridica/ giuristi e legislazione (1822 – 1935) (T), Giuffrè (E), DANTAS Laércio Albuquerque (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Positivismo, América – Brasil, Europa – Itália, Séc. 19-20
A geração de 1870 é um dos temas de grande interesse e relevância para muitos dos intelectuais que se propõem ou propuseram a estudar a história das idéias no Brasil. A essa geração deve-se, parafraseando Sílvio Romero, o “surto de idéias novas” que passou a contestar as estruturas do Estado monárquico brasileiro. A chamada Escola do Recife, muito contribuiu, de acordo com essa mesma historiografia das idéias, para a recepção do positivismo e evolucionismo europeus e suas manifestações críticas em campos diversos como filosofia, direito, política e sociologia.
Essa autoproclamada escola, pois foi nomeada por um de seus membros, Sílvio Romero, e outros a perpetuaram, definia-se como uma orientação filosófica progressiva e que permitia a cada um ter suas idéias e investigações. Seus membros se formaram na mesma Faculdade, a de Direito do Recife, e compartilharam o mesmo ambiente acadêmico.
Entretanto, não existe unanimidade entre aqueles que enveredaram pelo estudo desse grupo de intelectuais quanto à formação de uma escola de pensamento, nem tão pouco dos membros que faziam parte desse grupo. Por outro lado, mesmo que se questione a existência de uma escola ou quem são seus membros, é inegável que eles tiveram um papel importante nos diversos campos pelos quais a chamada Escola enveredou.
O livro de Marcela Varejão, Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia Del diritto, giuristi e legislazione (1822 – 1935), tem como tema mais circunscrito a relação entre os membros da Escola do Recife e os intelectuais italianos através da recepção, por parte dos primeiros, do pensamento positivista elaborado pelos segundos. O livro é o resultado da pesquisa de doutorado da autora, defendida no ano de 1999 em Milão, mas foi publicado em forma de livro apenas em 2005. A distância entre a conclusão da escrita e a publicação do livro pode deixar o leitor com a sensação de que a bibliografia utilizada é desatualizada, mas, com essa distância em mente, a leitura se torna mais indulgente nesse quesito.
O trabalho da autora consiste em rastrear a recepção do positivismo no Brasil focando na Escola do Recife através, principalmente, de sua faceta jurídica. Nesse sentido, o trabalho de Varejão se preocupa em fazer uma história das idéias sóciojurídicas com pouco ou quase nenhum contato destas com o ambiente político-social no qual elas, as idéias, e aqueles que as recepcionam e reelaboram, os intelectuais, estão inseridos.
O livro, por ser escrito e publicado na Itália e por ter os italianos como público alvo, procura nos dois primeiros capítulos inserir o leitor no contexto da recepção das idéias positivistas na América do Sul. A primeira parte do livro é dedicada a todas as nações sul-americanas. A Argentina é tomada como principal receptora e divulgadora, já os demais países, com exceção do Brasil, são tratados em separado e com pouca atenção. Nesse momento a autora se utilizou de uma bibliografia da história das idéias para a América Latina pouco atual (o livro mais recente é de 1987) e poucos trabalhos da historiografia dos países por ela trabalhados.
Já no Brasil são destacados os intelectuais que tiveram contato com o positivismo dedicando-se atenção especial ao positivismo ortodoxo capitaneado pela Igreja Positivista sediada no Rio de janeiro. A primeira parte funciona apenas como uma introdução confusa ao pensamento positivista sul-americano, o que, de qualquer maneira, se aproxima do que pareceu ser a intenção da autora.
A partir da segunda parte do livro, após mais de um terço do mesmo, Varejão inicia a sua pesquisa com profundidade. É nesse momento que ela passa a trabalhar com os membros da Escola do Recife como Tobias Barreto, Silvio Romero, Clóvis Beviláqua, Artur Orlando e João Vieira de Araújo, além de dedicar um capítulo especial à relação entre Nina Rodrigues, a Antropologia Criminal, Lombroso e sua filha, Gina Lombroso.
Daí em diante o trabalho ganha em riqueza com a análise das discussões, apropriações e rejeições das idéias de um sem número de intelectuais, principalmente os italianos. A análise da autora começa de uma dimensão mais ampla, ou seja, a introdução das idéias positivistas na Escola do Recife, em especial com Tobias Barreto, passando pelo nascimento de uma sociologia jurídica no Brasil, onde além de Barreto Varejão inclui Silvio Romero e Artur Orlando, terminando em Vieira de Araújo e sua relação entre as reformas da legislação penal de 1890 e o pensamento jurídico penal positivista italiano.
O trabalho de pesquisa de fontes realizado por Varejão é muito bem feito, entendendo-se como fontes aquelas que têm relevância dentro de uma história do pensamento jurídico-penal feita por uma jurista. Em capítulos como o último que trata de João Vieira de Araújo, por exemplo, encontra-se o ante projecto de nova edição do código criminal e o parecer de Assis Martins, exemplar raro, e até os estudos italianos do mesmo autor, também raríssimo. Entretanto, fontes de outros tipos, como jornais ou opúsculos, por exemplo, apesar de figurarem no texto são pouco explorados.
Não é à toa que a autora não se preocupa muito com esse tipo de fonte. As leituras que Varejão fez estão ligadas a uma tradição de história das idéias no Brasil associada a filósofos e juristas de renome que já trabalharam com a mesma temática, como Antônio Paim, Machado Neto, Vamireh Chacon, Nelson Saldanha, entre outros. A proposta e interesse da autora se alinham com os deles.
É a partir dessa tradição que na segunda parte ao trabalhar com Tobias Barreto é mostrado ao leitor como o próprio Barreto concebia o direito: como uma luta da humanidade contra a natureza que produziria a cultura na qual o direito estaria incluso. Essa visão de direito, por sua vez, seria derivada da leitura e refutação ou aceitação do pensamento de intelectuais italianos. Um exemplo disso foi a negação da teoria do atavismo de Lombroso por ser biologizante demais e negar a luta humana pela cultura.
Exemplos dessa relação não faltam durante todo o trabalho. Na quarta parte, quando Varejão passa a se dedicar a Artur Orlando, a autora mostrará que a concepção de direito dele estava intimamente ligada à sua percepção da sociedade. Para Orlando a Antropologia era a ciência por excelência para conhecer o homem, e o direito seria uma espécie de antropo-técnica que não poderia prescindir da Antropologia. Criticava Lombroso pelos seus exageros de querer submeter uma, o direito, à outra, a Antropologia.
O que fica claro na tese da autora é que a visão de sociedade de cada um dos membros da Escola do Recife influenciou profundamente na forma como recepcionaram as idéias positivistas italianas. Estas, por sua vez, eram em sua maioria ligadas às novas discussões jurídico-penais presentes em terreno europeu, como a Antropologia Criminal, a Sociologia Criminal e a Terceira Escola de Direito Penal. Mas não há explicação do porquê destas teorias terem despertado tanto interesse a ponto de serem abordadas por vários dos intelectuais mais importantes daquele período ligados ao direito no Brasil. É certo que a autora assinala o pertencimento destes intelectuais a uma linha evolucionista positivista em pelo menos algum momento de suas vidas, mas fora do mundo das idéias não há explicação para tal fenômeno na pesquisa proposta.
O trabalho de Marcela Varejão possui todos os méritos por se propor a fazer uma pesquisa inovadora de rastrear a recepção das idéias sócio-jurídicas nos integrantes da Escola do Recife e por dar continuidade à tradição de pesquisa de autores importantes como Antonio Paim e Miguel Reale. Acredito que cumpre muito bem com seu objetivo, como a própria banca da sua tese registrou. A autora deixou, no entanto, para outro pesquisador a tarefa de enveredar pelos caminhos ainda pouco explorados da recepção das idéias sócio-jurídicas e suas relações com o mundo social ou político.
Laércio Albuquerque Dantas – Universidade Federal de Pernambuco.
VAREJÃO, Marcela da Silva. Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia giuridica, giuristi e legislazione (1822 – 1935). Milão: Giuffrè, 2005. Resenha de: DANTAS, Laércio Albuquerque. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]
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