(IN) Justiças no Mundo do Trabalho: Questões Emergentes e Desafios Permanentes | Anos 90 | 2020
No contexto mundial que vivemos de mudanças drásticas em diversas escalas, os conceitos de justiça e injustiça tomam centralidade e tornam-se fundamentais para pensar uma sociedade democrática e comprometida com os direitos humanos e a dignidade humana. No campo dos conflitos trabalhistas, envolvendo assalariados urbanos e rurais, o próprio reconhecimento do Estado desta condição (direitos) tardou e demora ainda para os trabalhadores e trabalhadoras do campo, mais do que em relação aos seus colegas urbanos e industriais. No Brasil, este atraso foi de exatos vinte anos, entre a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho, em maio de 1943, e aquela do Estatuto do Trabalhador Rural, finalmente aprovado em março de 1963, entrando em vigor meses depois.
A tradição do desprezo pelo rural, no mundo ocidental, é histórica na cultura dominante. Portanto, não é surpreendente constatar tamanha diferença de tratamento por parte de autoridades que definiam também o salário mínimo rural (e portanto a aposentadoria) como a metade daquele regional reconhecido para os empregados urbanos e industriais. A conquista de direitos inéditos pelos trabalhadores rurais – a simples medição do esforço consentido pelo canavieiro, por exemplo, com a Tabela de Tarefas (BARROS, 2014), o repouso remunerado, o décimo terceiro salário etc. – foi acompanhada da instalação de tribunais especializados que supostamente visavam a mediar e resolver os conflitos. Por isso, a denominação de Juntas de Conciliação e Julgamento, o Estado atuando na tradição Varguista como pacificador dos conflitos.
Os termos que os acadêmicos costumam usar para definir as relações mantidas por trabalhadores com a Justiça do Trabalho revelam muito. Aqueles dos próprios trabalhadores revelam até mais. Frequentemente, escrevemos em termos de “acesso” à Justiça, como se fosse simplesmente inacessível por certo tempo. Depois de 1963, por exemplo, quando foi promulgado o Estatuto do Trabalhador Rural, os trabalhadores rurais ganharam acesso à Justiça do Trabalho (ROGERS, 2014). Mas acesso a que, exatamente? Claro que não era uma esfera da pura aplicação da justiça como um ideal. Em entrevistas feitas durante os anos 70, a antropóloga Lygia Sigaud ouviu outra frase. Os trabalhadores rurais souberam bem que, se tivessem tido uma queixa, precisariam “caçar os direitos” (SIGAUD, 1979). Assim, entendendo que a Justiça em si, como instituição, não era um fórum à parte do resto da sociedade; mostrava as mesmas desigualdades da sociedade em geral. Os juízes vieram da classe dominante e as decisões feitas eram produtos das mesmas forças que moldaram todas as outras relações sociais (DABAT; ROGERS, 2017). Então, a Justiça do Trabalho é um lugar para caçar para os direitos, ou um lugar espaço de “honra e de guerra” (MIRANDA, 1991). O que muitas vezes não é, é um lugar de justiça.
Ou pelo menos não de pleno cumprimento da legislação em vigor, pois as conciliações resultam, muitas vezes, em desistências de direitos ou parte deles. E o número de sentenças emitidas é relativamente pequeno, conforme a lógica que presidiu à elaboração do conjunto legal e judicial. Quanto à qualificação enquanto justiça ou injustiça, poderia também considerar o período dos séculos XIX e XX como de conquistas de um quadro legal e um aparato judicial que permitiram, junto com as periódicas negociações coletivas, alguns avanços positivos na condição dos assalariados regularizados. Infelizmente o que parecia ser uma via de não retorno, uma progressão contínua e, em parte, pelo menos, benéfica para o conjunto dos trabalhadores, adota, nos últimos decênios, cada vez mais a aparência de um parêntese, sendo o próprio aparato judicial ameaçado na sua existência, quanto mais sua competência e eficiência frente a relações de trabalho cada vez mais uberizadas, para utilizar o neologismo vigorando em muitos países, à escala do fenômeno.
Para a maioria da população que vivia nos séculos XIX e XX, “justiça” não era uma categoria relevante nas vidas dos trabalhadores. Sobrevivência e subsistência eram considerações mais centrais para este contingente. O século XIX trouxe o amadurecimento das ideias centrais do liberalismo: direitos naturais, liberdade, e o funcionamento impessoal do mercado. Mas, apesar disso, padrões de desigualdade e hierarquia persistiram na sociedade brasileira. O grande historiador Thomas Holt, na sua obra sobre o período pós-abolição no Caribe inglês, considerou a ideia de liberdade nas vidas de atores históricos. “Ao longo da maior parte da história humana”, ele escreveu, “o maior valor ou bem foi conseguir um sentido, não de autonomia, mas de pertencer” (HOLT, 1992, p. 5). Devemos também considerar que a importância da justiça nas vidas de trabalhadores talvez não fosse central. Mas isso não quer dizer que fosse desimportante, ou que não crescera em importância ao longo do tempo. São esses sentidos e significados que o conjunto de textos que compõe o dossiê vem historicizar.
Nesse sentido, o presente dossiê reúne trabalhos que problematizam as noções de (in)justiça e direito dos trabalhadores do século XIX e XX. Os autores apresentam reflexões que tratam dos deslocamentos provocados pelas ações individuais e/ou coletivas de diferentes sujeitos históricos em defesa da garantia de seus direitos, o que tem proporcionado o surgimento de questões contemporâneas que são desafiadoras para o campo da história, como: as diferentes práticas sociais e culturais de proteção ao assédio moral e sexual, práticas e leis de combate à jornada exaustiva e condição degradante, as cartografias dos fluxos migratórios de trabalhadoras(es) e os diferentes impactos, estratégias de erradicação da exploração do trabalho infantil e a luta contra a reforma trabalhista na América do Sul.
Nas últimas cinco décadas, o regime jurídico de trabalho brasileiro passou por importantes mudanças. Algumas mudanças para garantir direitos, outras mudanças para retirar direitos. Em 1963 foi promulgado o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), que estendeu ao meio rural importantes direitos e proteções para trabalhadores. E, em 2017, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) sofreu reformas impactantes, tidas por muitos como um enfraquecimento sério das leis. A CLT originou-se num outro momento significativo de organização e mobilização para direitos, uma geração antes do ETR. Apesar de serem importantes estes episódios de tramitação e legislação formal, os 74 anos entre a CLT e as reformas recentes têm sido marcados por esforços cotidianos na parte dos trabalhadores brasileiros para direitos, cidadania e visibilidade.
Nesse sentido, historicizar o acesso de diferentes sujeitos à justiça do trabalho é um exercício de reconhecimento do papel dos movimentos sociais e das instituições de justiça no processo de conquista e garantia dos direitos trabalhistas. Com isso, buscamos reunir trabalhos que investiguem a trajetória de homens e mulheres que recorreram à justiça em busca da garantia dos seus direitos, as negociações em torno do regime jurídico de trabalho, os impactos das leis no cotidiano do trabalhador, as mobilizações dos trabalhadores, os papéis das organizações de classe e estudos sobre trabalhadores escravizados, libertos e livres e o estabelecimento de conexões entre a escravidão e a pós-abolição. Essas trajetórias individuais ou coletivas do acesso à justiça, que tiveram suas memórias impressas nas fontes judiciais, ajudam a enxergar os avanços e os desafios permanentes no que se referem à garantia dos direitos conquistados.
Desse modo, o dossiê intitulado (in)justiças no Mundo do Trabalho aborda as diferentes táticas e estratégias usadas pelos(as) trabalhadores(as) no enfrentamento das (in)justiças, como podem ser observadas, no artigo Fotografia e Trabalho Escravo: relatos e desafios contemporâneos no Pará, de Geovanni Gomes Cabral, que trata de forma consistente e sensível a desumanidade vivida pelos trabalhadores no Pará. Ao abordar o trabalho escravo contemporâneo a partir das fotografias de João Laert, o autor coloca em tela um resgate de trabalhadores em condição de escravidão. O pesquisador destaca no texto que essas imagens retratam formas degradantes de exploração e de violação aos direitos humanos, pois demonstram homens sujeitos a trabalhos forçados em diversas frentes de atuação.
O pesquisador Cristiano Luís Christillino, no artigo Vinho velho em pipa nova: as propostas de Varnhagen para a reformulação da Lei de Terras de 1850, explora os problemas que a primeira legislação fundiária do Império encontrava para regulamentar a medição e venda das terras públicas no Brasil. O autor chama atenção para as tensões políticas existentes em torno do assunto. Ao problematizar o projeto defendido por Francisco Adolfo de Varnhagen, que propôs uma regulamentação que “não ultrapassou os limites da política conservadora quanto à restrição ao acesso à terra”, o investigador lança luz sobre a tese defendida pelos ruralistas do século XIX, ou seja, a qual propunha a cobrança de foro pelo estado e a dinamização do sistema de vendas das terras públicas, num contexto em que as discussões sobre a centralização do Estado monárquico e as expectativas com a imigração europeia são consideradas uma fonte de receita para o autor da proposta.
Já a pesquisadora Florencia Gutierrez apresenta uma discussão sobre a criação da justiça do trabalho na Argentina e o seu impacto na província açucareira de Tucumán, no texto intitulado Judicializar o conflito e construir direitos. A experiência dos trabalhadores açucareiros na justiça do trabalho. Tucumán durante o primeiro peronismo. No trabalho, os leitores podem observar, a partir da judicialização dos conflitos, o processo de negociação dos direitos e reconfiguração do lugar do trabalhador da zona canavieira. Por fim, o artigo de José Marcelo Marques Ferreira Filho, A dimensão espacial dos conflitos trabalhistas no Nordeste açucareiro: repensando os limites da Justiça do Trabalho na plantation (Pernambuco, século XX), introduz uma análise geográfica à discussão sobre a Justiça do Trabalho na zona da mata do Nordeste. Ferreira Filho argua que estudos sobre o tema precisam levar em conta este aspecto da questão porque as relações sociais têm sido estruturadas pela sua geografia. Usando processos trabalhistas das Juntas de Escada e Nazaré da Mata, Ferreira Filho deduziu que os trabalhadores mais suscetíveis a abrir um processo eram os que viviam mais próximos às Juntas. Quer dizer, havia um aspecto geográfico na geração dos processos como um corpo. “Podemos concluir,” ele escreve, “que a configuração espacial concentracionária da plantation impediu a maior parte dos trabalhadores reclamarem”. A literatura tem incluído várias considerações sobre processos trabalhistas, inclusive gênero, tipo de reivindicação, município, tipo de empregador, e outros. Mas não temos outro estudo que faça um argumento geográfico assim, que possa transformar nesse modo nossa abordagem ao arquivo de processos. É com esse espírito combativo da classe trabalhadora que convidamos o leitor a conhecer as estratégias desenvolvidas por diferentes sujeitos para enfrentar as injustiças do mundo do trabalho na América do Sul.
Referências
BARROS, Júlio César Pessoa de. Conflitos e negociações no campo durante o primeiro governo de Miguel Arraes em Pernambuco (1963-1964). Dissertação – (Mestrado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.
DABAT, Christine Rufino; ROGERS, Thomas D. Uma peculiaridade do trabalho nesta região. A voz dos trabalhadores nos arquivos da Justiça do Trabalho na Universidade Federal de Pernambuco. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 6, n. 12, p. 327-342, 2014.
DABAT, Christine Rufino; ROGERS, Thomas D. Sugarcane Workers in Search of Justice: Rural Labour through the Lens of the State. International Review of Social History, v. 62, 2017.
HOLT, Thomas. The Problem of Freedom: Race, Labor, and Politics in Jamaica and Britain, 1832-1938. Baltimore and London: Johns Hopkins University Press, 1992.
MIRANDA, Moema Maria Marques de. Espaço de honra e de guerra: etnografia de uma Junta Trabalhista. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1991.
SIGAUD, Lygia. A luta de classes em dois atos: notas sobre um ciclo de greves camponesas. Revista Dados, Rio de Janeiro, v. 29, n. 3, 1986.
Organizadores
Christine Paulette Yves Rufino Dabat – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: christine.dabat@ufpe.br https://orcid.org/0000-0002-5715-7098
Juliana Alves de Andrade – Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). E-mail: juliana.alvesandrade@ufrpe.br https://orcid.org/0000-0002-8807-5327
Thomas D. Rogers – Emory University (EU), Atlanta, EUA. E-mail: tomrogers@emory.edu https://orcid.org/0000-0002-7628-4375
Referências desta apresentação
DABAT, Christine Paulette Yves Rufino; ANDRADE, Juliana Alves de; ROGERS, Thomas D. Apresentação. Anos 90. Porto Alegre, v.27, 2020. Acessar publicação original [DR]