Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964 | Maria Luiza Tucci Carneiro

Maria Luiza Tucci Carneiro Imagem Mosaico na TV
Maria Luiza Tucci Carneiro | Imagem: Mosaico na TV

O livro “Impressos Subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964” foi escrito pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e lançado em 2020. A obra, que possui 212 páginas, possui as seguintes seções (todas escritas pela autora): Preâmbulo; introdução; capítulo 1 “Os impressos no mundo da sedição”; capítulo 2 “Na trilha do impresso político”; capítulo 3 “A arte de imprimir e protestar”; capítulo 4 “Artistas de protesto”; capítulo 5 “Panfletos Irreverentes”; Considerações Finais; Fontes; Bibliografia e Iconografia.

A autora fez toda a sua formação em história pela USP, tendo defendido a tese de título “O Anti-semitismo na Era Vargas: Fantasmas de uma geração (1930-1945)” e a tese livre docente “Cidadão do Mundo. O Brasil diante da questão dos judeus refugiados do nazi-fascismo (1933-1950)”. Carneiro atualmente é professora sênior da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Em sua carreira, têm realizado projetos e atividades junto de diferentes instituições, como a Associação Brasileira A Hebraica de São Paulo e o Arquivo do Estado de São Paulo. Sobre este arquivo, a historiadora já havia coordenado, junto de Boris Kossoy, um Projeto Integrado Arquivo/Universidade (PROIN)

A historiadora, que também é romancista, publicou e participou de diversos trabalhos que discutem principalmente as temáticas do autoritarismo e da intolerância, sobretudo através do caso brasileiro, além de suas conexões com o ambiente internacional. Pode-se dizer que ela possui experiência na área de História do Brasil Contemporâneo, atuando principalmente nos seguintes temas: holocausto, autoritarismo, antissemitismo, racismo e memória. Dentre os seus trabalhos, destaca-se a organização do livro “O anti-semitismo nas Américas” (CARNEIRO, 2007) e os recentes artigos “Travessias sem volta: judeus poloneses refugiados no Brasil, 1939- 1945” (CARNEIRO, 2018A) e “Imigrantes indesejáveis: ideologia do etiquetamento durante a Era Vargas” (CARNEIRO, 2018).

O presente livro possui como foco a investigação dos impressos subversivos consultados junto ao Fundo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP), que está sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo (SP) e cuja possibilidade de acesso para pesquisa somente ocorreu a partir de 1995. A escolha de 1924 está relacionada com a própria criação do Deops que ocorreu neste ano, já o seu limite temporal, conforme Carneiro expõe, ocorre devido ao período da Ditadura militar possuir “especificidades que merece[m] estudos à parte”. Sobre este regime ditatorial, a historiadora expressa que apesar do forte aparato de repressão sustentado por Atos Institucionais e pela Lei de Segurança Nacional, foi possível circular na clandestinidade artes gráficas de protesto. (CARNEIRO, 2020, p.13)

A autora expõe que pretende analisar o corpus documental como historiadora das ideias políticas, no entanto, é possível perceber que a obra traz contribuições para diversos campos, desde a história da arte, história intelectual ou história da cultura impressa brasileira. Isto ocorre pela própria construção da análise de Carneiro, que articula discussões sobre a materialidade dos impressos confiscados, as trajetórias e conexões entre os seus produtores, as correntes estéticas que circulavam no período, os projetos e visão de mundo daqueles que contestavam o status quo, além do modo como o aparato estatal visava definir os limites entre o lícito e o ilícito e gerenciar o universo simbólico dos grupos subalternos.

Sobre este último ponto, Carneiro deixa claro que se trata de uma sociedade cuja elite do poder era dotada de uma mentalidade racista, xenófoba e conservadora, que influenciava as autoridades policiais na busca pelos impressos considerados como evidências de atividades criminosas, além de participarem ou orquestrarem uma intensa produção de bens culturais diversos que possuíam o intuito de garantir a sua continuidade no poder. Ao mesmo tempo, no caso dos documentos presentes no fundo em questão, por ironia do destino, esse volume de provas de crime político identificada junto aos autos policiais preservou a memória da intolerância desta sociedade. (CARNEIRO, 2020, p.19).

Dentre os principais diálogos teórico-metodológicos, alguns dos autores mobilizados no decorrer da obra são Carlo Ginzburg, Roger Chartier e Roberto Darnton. Carneiro evoca as discussões de Ginzburg sobre o paradigma indiciário a fim de “buscar detalhes que possibilitem identificar as marcas da censura e os atos de subversão, nem sempre perceptíveis”. (CARNEIRO, 2020, p.18). Existe uma aproximação da abordagem de Chartier sobre a prática da leitura e atenção à materialidade dos impressos, além de um diálogo mais estreito com o livro “Edição e Sedição” do historiador estadunidense. Carneiro se aproxima particularmente do termo “sedição” do estudo de Darnton que trata do ambiente de produção literária do Antigo Regime francês, em que é possível tomar sedição “como um desvio que, mediante o texto e no texto, se instaura com relação às ortodoxias” (DARNTON, 1992, p.11).

Darnton propõe que não se trata de que a literatura clandestina desembocaria em um levante ou tomada de consciência automático, mas sim que as obras consideradas como impróprias de circular pelas autoridades seriam capazes de propor diferentes opiniões, recusar as normas, suspeitar de autoridades e reconstruir hierarquias. (DARNTON, 1992, p.11). Com relação ao caso brasileiro, tanto as autoridades políticas quanto os seus opositores reconheciam a força da palavra e da imagem para circular suas ideias, o que corroborou com a formação de um ambiente de controle e vigilância, que contava inclusive com apoio de setores da população. Contudo, como a própria presença dos materiais confiscado sugere, havia um mundo clandestino e sombreado onde foram elaboradas tais impressos de potencial sedicioso. Em suas palavras: “(…) os impressos de protesto conseguiram vazar as barreiras oficiais abrindo caminho para a resistência que usou o papel como suporte: produziu arte, fez panfletagem e pichação, subvertendo a ordem oficial (CARNEIRO, 2020, p.34)

Sobre o trabalho com a documentação, a autora discorre logo no início do livro acerca da mudança no estatuto dos documentos trabalhados, isto é, desde o tipo de memória de perseguição e intolerância que eles não deixam de ser registro, as possíveis motivações de mudança da ordem social que contribuíram para a sua elaboração, além da função de evidência que motivou a sua apreensão e presença no fundo Deops. Neste último caso, conforme Carneiro expõe:

Grande parte dos impressos confiscados era anexada aos prontuários e dossiês com o objetivo de comprovar o delito de ideias, nem sempre palpável. Identificado com o nome do cidadão ou da instituição investigada, cada processo pode ser analisado como um espaço recriado da memória individual e coletiva, construído ao sabor dos preconceitos e no calor dos mitos políticos. A estrutura de cada prontuário demonstra a preocupação que as autoridades tinham em documentar o crime em todas as suas variedades interpretativas: política, econômica, artística e social. (…). Deslocados do seu ‘habitat’, os documentos eram anexados de forma a compor com a narrativa policial a serviço da repressão explícita ou simbólica. Neste momento, os impressos, em seus diferentes suportes e múltiplas variáveis, ganham estatuto de prova documental. (CARNEIRO, 2020, p.18-19).

Carneiro discorre que, com base na documentação consultada, é possível evidenciar dois grupos distintos que, de alguma forma, experimentaram a atmosfera de inquietude e contestação nos campos social, político e cultural do Brasil. No primeiro caso estão os “Artistas vanguardistas de protesto” que, dentre outras características, possuíam formação acadêmica no campo das artes em geral, eram identificados por assinaturas, mantinham contatos com personalidades e instituições de cultura no Brasil e no exterior e usavam suas obras como estratégia de alerta e denúncia. Já no segundo grupo, dos “Artesãos panfletários”, estão pessoas sem formação acadêmica ou conhecimento das técnicas modernas de comunicação, que eram identificados com as suas associações de classe ou sindicatos, permaneceram à margem dos principais movimentos culturais e artísticos e produziam e distribuíam impressos para atrair prosélitos, articular o ideário do seu grupo e contestar a ordem vigente.

Sobre este ponto, a autora desenvolve um amplo mapeamento de diversos intelectuais desses dois tipos de grupos mencionados e que atuaram no período em foco. Carneiro, além de discorrer acerca dos diferentes materiais que tais figuras construíram e de suas filiações estéticas ou políticas, também escreve sobre suas trajetórias, desde o país ou local de nascimento, tipo de sua formação, ambientes de trabalho e a produção que realizou. Além disso, são mencionados os diálogos e relações entre tais personalidades, o envolvimento com associações, grupos, instituições ou com o próprio governo atual. É construído um amplo quadro que ilumina desde aspectos comuns a diferenças acerca das possibilidades ou chances de se tornar produtor de um tipo de material crítico ao governo para intelectuais com suas respectivas trajetórias. No caso das instituições ou associações, há um levantamento aprofundado dos espaços de sociabilidade das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.

Por fim, a obra encerra-se com um estudo aprofundado dos panfletos confiscados pelo Deops/SP. Carneiro expõe que eles raramente usavam imagens, e que sua característica comum de ser um pequeno texto construído em tom convocatório favorecia uma leitura dinâmica, convocando o indivíduo à rebelião, procurando quebrar a apatia cristalizada pelo discurso popular. Ainda sobre este tipo de material, é possível dizer que havia uma pretensão educativa ou convocatória do público-alvo que, pelas ações e propaganda das forças com maior poder, nem sempre se mostrava sensível às reivindicações expressas neste tipo de suporte. Nas palavras da historiadora sobre estes materiais:

Editados em português, na sua maioria, os panfletos expressam as plataformas políticas dos mais distintos grupos sociais. Serviam como provas comprometedoras do crime político, de acordo com a lógica da desconfiança adotada pelas autoridades policiais cientes do poder das palavras de ordem. (CARNEIRO, 2020, p.148)

De maneira geral, é possível dizer que dois grupos com distintos objetivos empreendiam a produção de panfletos no período. Por um lado, havia aqueles da “resistência antifascista”, isto é, dos que investiam na formação de uma consciência política massa trabalhadora e cujas ações eram limitadas pela censura institucionalizada pelo Estado republicano, além de terem sido caçados como portadores de “outras vontades”, ou seja, eram considerados como indesejáveis. Por outro, existe o caso dos “governistas”, que “procuravam anestesiar o espírito crítico e investir na domesticação da classe trabalhadora”. (CARNEIRO, 2020, p.151).

No caso dos panfletos do primeiro grupo, que em sua maioria foram tirados de circulação por representarem um perigo à ordem instituída, a autora faz um mapeamento dos estilos comuns de panfletos confiscados pela Polícia Política do Estado de São Paulo entre 1924 e 1954. Havia desde aqueles de teor de alerta, com caráter preventivo; de denúncia; de chamamento para a ação; convidativos; educativos etc. Já os panfletos oficiais, que são raros nos arquivos da Polícia Política, eles possuem certos objetivos como informar a população sobre os atos do Estado, cooptar determinados segmentos do povo ou combater aqueles que seriam considerados os “perigos” da nação. Alguns dos panfletos são expostos em sua íntegra, sendo feita uma descrição de seu conteúdo e razão da apreensão, na qual conseguimos acompanhar o processo de construção deste quadro geral empreendido pela autora.

Dentre as contribuições do livro “Impressos Subversivos”, é possível destacar o refinamento teórico e metodológico da autora ao construir um quadro ao mesmo tempo complexo e compreensível acerca do ambiente de circulação desses materiais. Mesmo com a autora pontuando as diferenças de cada administração e estrutura governamental do longo período abordado, percebemos a força que a “propaganda política cumpriu com o seu papel de camuflar o mundo da repressão que não convinha vir à superfície.” (CARNEIRO, 2020, p.179). Sua obra recupera a ação de uma Polícia política que acuava os inimigos do regime, cerceando as falas que estavam em desacordo com o discurso oficial. Ao mesmo tempo, através do exame deste amplo material contestatório e das trajetórias de seus produtores, Carneiro oportuniza que conheçamos caminhos e suportes que foram utilizados no passado para expressar a sua indignação. A historiadora encerra a obra evidenciando a necessidade de recuperarmos esta nossa capacidade de indignar frente às formas de violência e humilhação que enfrentamos nos tempos atuais.

Referências

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imigrantes indesejáveis. A ideologia do etiquetamento durante a Era Vargas. Revista USP, (119), 2018, 115-130.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964. São Paulo: USP/CAPES; FAPESP; Intermeios, 2020.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo nas Américas: história e memória. São Paulo: Fapesp/EdUSP, 2007.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Travessia sem volta: judeus e poloneses refugiados no Brasil, 1939-1945. Revista del CESLA. International Latin American Studies Review, (22), 2018A, p. 7-52.

DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.


Resenhista

Gustavo Tiengo Pontes – Doutor em História (PPGH-UFSC). Professor de História no Instituto Estadual de Educação de Santa Catarina (IEE-SC). E-mail: gustavotpontes@gmail.com  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0601-0587


Referências desta Resenha

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964. São Paulo: USP/CAPES; FAPESP; Intermeios, 2020. Resenha de: PONTES, Gustavo Tiengo . A Memória da Intolerância: Impressos Confiscados Pelo estado brasileiro entre 1924 e 1964. Caminhos da História. Montes Claros, v.27, n.2,  p.174-179, jul./dez.2022. Acessar publicação original [DR]

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