Excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de ocuparem cargos públicos e do acesso à educação superior, as mulheres do século XIX estavam, majoritariamente, circunscritas ao espaço privado (TELLES, 1997, p. 408). Além disso, estavam constritas por enredos de arte e ficção masculinas que reforçavam a idealização das mulheres em seus papéis familiares, como mães amorosas, esposas virtuosas e filhas dedicadas. Contudo, também foram muitas as mulheres que conquistaram o território da escrita, superando a “tirania do alfabeto, tendo primeiro que aprendê-lo para depois deslindar os mecanismos de dominação nele contidos” (TELLES, 1997, p. 410).
O livro de Constância Lima Duarte conduz o leitor pelo cenário multifacetado da imprensa destinada ao público feminino no Brasil do século XIX, no qual emergiram tanto discursos legitimadores do status quo patriarcal, quanto posicionamentos incisivos em prol da ampliação de direitos. Fruto de um extenso trabalho de pesquisa, a obra reúne 143 títulos de revistas e jornais que circularam ao longo daquele século, independentemente de terem sido escritos e dirigidos por homens ou mulheres e se identificarem ou não com o ideário feminista. A proposta da autora proporciona um olhar abrangente acerca da condição da mulher, de sua formação intelectual e da construção cultural e discursiva de sua identidade na sociedade brasileira oitocentista.
As diferenças entre imprensa feminina – voltada e pensada para mulheres – e imprensa feminista – dirigida para o mesmo público, mas com mote contestador e de luta por direitos – ficam evidentes ao longo do livro, embora alguns periódicos apresentem posições contraditórias, a exemplo do Jornal das Famílias (1863-1878), no qual coexistiam artigos conservadores, reiterando a exclusiva função doméstica para a mulher, e aqueles que defendiam o direito à instrução e ao trabalho (DUARTE, 2016, p. 165). O estudo de Duarte constata também a existência de diálogos e de uma rede de intercâmbios e apoio intelectual como marca desta imprensa no século XIX, em virtude da publicação de um mesmo texto em diferentes periódicos, circulação de colaboradores e notas que celebravam o surgimento de novos títulos.
Os periódicos arrolados surpreendem pela larga amplitude alcançada no território nacional, compreendendo publicações de norte a sul do país, o que demonstra que “esta imprensa tensionou a opinião pública não só no centro, como também nas periferias” (DUARTE, 2016, p. 18). A heterogeneidade destes impressos revela, por sua vez, a maior complexidade que a sociedade brasileira foi adquirindo ao longo daquele século, no qual se encontravam periódicos assumidamente feministas ou conservadores, os que se limitavam ao passatempo, os que visavam certos segmentos e os que se dedicavam a temas específicos como política, educação, literatura, moda e humor.
O livro conta com um texto introdutório intitulado A história possível: imprensa e emancipação da mulher no Brasil no século XIX, no qual a autora aborda sua trajetória de pesquisa1 e a insuficiência de trabalhos existentes sobre a temática, evidenciando a quase invisibilidade do periodismo feminino nas obras relativas à história da imprensa. Também destaca estudos de caso, capitaneados especialmente por pesquisadoras, que contribuíram para deslindar a participação feminina nesse cenário, além das compilações dedicadas à imprensa regional, imprescindíveis para a preservação de registros, dado a inexistência atualmente de exemplares de muitos jornais. E finaliza com uma breve síntese que aglutina as experiências jornalísticas catalogadas e desvenda o percurso que conduziu a mulher de leitora a redatora, com destaque ao período pós 1870, quando se multiplicaram órgãos feministas:
Assim, o protagonismo feminino adentra as redações e toma para si a direção política e ideológica de muitas das folhas destinadas às mulheres. De leitoras a redatoras, abrem espaço às vozes femininas antes reclusas às alcovas, e empreendem a transformação hoje perceptível no perfil dessa imprensa: de “revistas de moda” a órgãos de reflexão (DUARTE, 2016, p. 26).
O dicionário ilustrado, composto pelas publicações arroladas, é apresentado em ordem cronológica, porém inclui um índice alfabético remissivo e um sumário por ano de publicação. Cada verbete contém, quando disponível, a capa do periódico, seu subtítulo, o nome do editor ou editora, cidade de origem, tipografia, datas do primeiro e último número, proposta editorial – discutida por meio de citações diretas dos jornais -, formato gráfico e a relação dos principais colaboradores e colaboradoras. Além de notas explicativas, referências bibliográficas e a localização das fontes em acervos, arquivos, bibliotecas e sites. O trabalho primoroso de compilação elaborado Duarte abre uma senda para estudantes, professores e estudiosos do periodismo e da história intelectual da mulher, ao aglutinar uma grande quantidade de informações fragmentadas em um único volume. Muitos verbetes carecem de maiores elucidações, seja pela dificuldade de acesso às fontes seja pela escassez de informações sobre tais empreendimentos e seus protagonistas, mas cumprem o papel pretendido pela autora de exercerem função de guia norteador para novas pesquisas.
Apesar de muitos estudos sobre história da imprensa pontuarem a atuação do jornalista francês Pierre Placher nos primeiros passos da palavra imprensa no Brasil, pouca atenção é dada para o fato dele ser responsável pela criação do primeiro periódico destinado ao público feminino que se tem notícia no Brasil, o Espelho Diamantino, que circulou no Rio de Janeiro entre 1827 e 1828 com foco em literatura, política e defesa da instrução feminina. Dois anos mais tarde, surgiu em São João del-Rei o Mentor das Brasileiras (1829-1832), também dirigido por um homem, o professor José Alcebíades Carneiro, advogando pela escolarização do sexo feminino. Interessante observar a análise semântica proposta pela autora acerca dessas primeiras iniciativas, revelando a ideologia patriarcal que os orientava, pois ao apresentarem-se como Mentor e Espelho – além de outros títulos como Farol, Manual e Despertar – se colocavam “acima das mulheres e como guias responsáveis pela mudança de seu status quo” (DUARTE, 2016, p. 21). Entretanto, apesar de endossar uma mentalidade conservadora, deve-se destacar o espaço aberto às mulheres no jornal mineiro, em seção reservada para as opiniões e produções literárias das leitoras. Não tardaria a ocupação de espaços maiores como colaboradoras e, posteriormente, como redatoras e proprietárias.
Entre os pioneiros do gênero, também merece destaque A Mulher do Simplicio ou A Fluminense exaltada (1832-1846), primeiro de uma série de periódicos editados por Francisco de Paula Brito. Mulato e de origem humilde, Paula Brito foi editor, tipógrafo, jornalista, escritor e precursor da imprensa negra no Brasil.
O primeiro jornal fundado e dirigido por uma mulher no território nacional data de 1833.2Belona Irada contra os Sectários de Momo foi editado em Porto Alegre, sob a direção de Maria Josefa Barreto – responsável também por Idade D’Ouro (1833), em conjunto com Manuel dos Passos Figueroa – e tinha caráter estritamente político, posicionando-se em favor do Partido Caramuru e contra os Farrapos. Embora a circulação regional e a temática abordada tenham contribuído para a nula repercussão nacional, a existência de tais publicações acena para a participação e reivindicação feminina à voz na cena política. Nesse ensejo, a autora lista também A mineira no Rio de Janeiro (1833) e A filha do Timandro ou A brasileira patriota (1849) – ambos dirigidos por mulheres -, nos quais debates sobre a identidade nacional e questões políticas se sobrepuseram às discussões acerca da condição feminina.
Na década de 1850, o Jornal das Senhoras (1852-1855) adentrou à cena pública. Dirigido por Joana Paula Manso de Noronha, jornalista e romancista argentina radicada no Brasil, o Jornal das Senhoras foi um marco do periodismo feminino, destacando-se pelo discurso emancipacionista, de incentivo à instrução e de conscientização do valor da mulher.
Na segunda metade do século XIX, enquanto muitos órgãos de imprensa feminina pautavam-se pelo entretenimento, sem questionar as estruturas vigentes, pelo reforço da doutrinação moral ou relegavam à mulher apenas o papel passivo de musas inspiradoras e leitoras, uma gama de novos periódicos contribuiu para sedimentar as reivindicações feministas no Brasil. É o caso de O Sexo Feminino (1873-1889), sucedido por O Quinze de Novembro do Sexo Feminino (1889-1890), dirigidos por Francisca Senhorinha da Mota Diniz, com a proposta de defender a educação, a instrução e a emancipação da mulher. Em editorial de sete de setembro de 1873, Diniz apresentava com lucidez os princípios norteadores de seu empreendimento e seu posicionamento em relação ao papel reservado à mulher na sociedade brasileira:
O século XIX, século das luzes, não se findará sem que os homens se convençam de que mais da metade dos males que os oprimem é devido ao descuido que eles têm tido na educação das mulheres, e ao falso suposto de pensarem que a mulher não passa de um traste da casa, grosseiro […] (O SEXO FEMININO apud DUARTE, 2016, p. 188).
Entre os periódicos de contestação também merecem destaque O Domingo (1873-1875), sob direção de Violante Atalipa Ximenes de Bivar e Vellasco; A Mensageira (1897-1900) de Presciliana Duarte de Almeida; e o Escrinio (1898-1910), fundado por Andradina América de Andrade Oliveira, que defendiam com firmeza o direito da mulher à educação e pretendiam colaborar com a emancipação e a igualdade intelectual entre os gêneros. Além do República das Moças (1879), dirigido por um grupo de jovens contrárias ao regime monárquico e que expressavam seus descontentamentos políticos em textos desafiadores. Em seu primeiro exemplar estampou os seguintes dizeres: “Já que aos homens falta valor para derrubarem essa carunchosa Monarquia, sejamos nós as defensoras dos direitos do povo, e tomem eles a direção dos negócios domésticos. Viva a República. Viva o belo sexo” (REPUBLICA DAS MOÇAS apud DUARTE, 2016, p. 238).
As colaborações proporcionam outra perspectiva de reflexão, pois “mais do que os livros foram os jornais e as revistas os primeiros e principais veículos da produção letrada feminina, que desde o início se configuraram em espaços de aglutinação, divulgação e resistência” (DUARTE, 2016, p. 14). Qualquer que seja o seu formato – escritos militantes, crônicas, textos ficcionais ou poéticos -, essa imprensa recebeu a colaboração de mulheres ilustres, como Maria Firmina dos Reis, Narcísa Amália, Alice de Sá Rego, Honorata Oliveira Mourão, Adelina Lopes, Francisca Júlia da Silva, Ignez Sabino, Auta de Souza e Júlia Lopes de Almeida, apenas para citar algumas.
Apesar de muitos periódicos terem sucumbido rapidamente às dificuldades financeiras, próprias do mercado editorial brasileiro do século XIX, há que se ressaltar a longevidade do Almanach das Senhoras (1871-1927) e Corymbo (1884-1944). Assim como o elo entre o discurso feminista e a luta antiescravagista, que encontra paralelo em outros países, pois foi observando a opressão escravista que muitas mulheres tomaram consciência da própria subalternidade. Nesse ensejo, pode-se citar textos publicados no jornal O Porvir (1873) e A Rosa (1883) e a emblemática circulação do Ave Libertas (1885), órgão de divulgação da sociedade abolicionista homônima criada por um grupo de senhoras em Recife.
O dicionário ilustrado sobre a imprensa feminina e feminista no Brasil do século XIX preenche uma lacuna importante no tocante à história da imprensa nacional, ao aglutinar órgãos consagrados entre os estudiosos e dar visibilidade aos pouco conhecidos, regionais, políticos, militantes, apresentando ainda indicações bibliográficas e localização nos arquivos. A despeito de ter como público-alvo pesquisadores especializados, a leitura é agradável a todos que se interessam por história do Brasil, pois ressalta a riqueza e as nuances das sociabilidades e do ambiente político-intelectual dos oitocentos. Atualmente, Constância Lima Duarte prepara o segundo volume da obra, sobre jornais e revistas do século XX, no qual se evidencia a ampla segmentação, mas que igualmente desempenharam papel importante na difusão de ideais femininos e feministas.
Referências
TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: DEL PRIORI, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. Coordenação de textos de Carla Bassanezi. São Paulo: Contexto, 1997. p. 401-442. [ Links ]
Notas
1 Atualmente professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Constância Lima Duarte é uma pesquisadora prolífera da literatura de autoria feminina, história das mulheres e do movimento feminista no Brasil. O referido livro é um desdobramento de pesquisas realizadas desde meados da década de 1980, nas quais busca conhecer a produção intelectual da mulher brasileira em suas diferentes modalidades.
2 O Jornal das Senhoras (1852-1855), dirigido por Joana Paula Manso de Noronha, foi considerado o primeiro dirigido por uma mulher no Brasil. Contudo, Duarte lista quatro periódicos capitaneados por mulheres que, apesar de não obterem repercussão nacional ou longa duração, circularam nas décadas de 1830 e 1840.
Errata
Na resenha Imprensa Feminina e Feminista no Brasil: século XIX – Dicionário Ilustrado, com número de DOI:http://dx.doi.org/10.1590/1980-43620170000000017, publicada na revista História (São Paulo) v.36, e17.2017 ISSN 1980-4369, página inicial 1, página final 5, na página 1
Onde se lia:
JORDÃO, Carlos Eduardo: MACHADO JR., VEDDA, Miguel (Orgs.).
IMPRENSA FEMININA E FEMINISTA NO BRASIL: SÉCULO XIX – DICIONÁRIO ILUSTRADO.
Belo Horizonte: Autêntica, 2016 – Paula da Silva RAMOS – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP/Assis.
Leia-se:
DUARTE, Constância Lima.
IMPRENSA FEMININA E FEMINISTA NO BRASIL: SÉCULO XIX – DICIONÁRIO ILUSTRADO.
Belo Horizonte: Autêntica, 2016 – Paula da Silva RAMOS – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP/Assis.
Resenhista
Paula da Silva Ramos – Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis. Bolsista CAPES.
Referências desta resenha
DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX – Dicionário Ilustrado. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. Resenha de RAMOS, Paula da Silva. História v.36 Franca 2017.
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