ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII). São Paulo: Edusp, 2012, p. 256. Resenha de: ESTEVES, Germano Miguel Favaro. História [Unesp] v.33 no.1 Franca Jan./June 2014.
Nos últimos decênios, mais precisamente a partir dos anos oitenta, vimos o aumento e consolidação dos estudos relativos à antiguidade e ao medievo no Brasil. Temas que eram tão distantes de nossos pesquisadores, agora eles tomam corpo em grupos de estudos, congressos e encontros internacionais, na formação de profissionais antiquistas e medievalistas que compõem o quadro docente das universidades brasileiras.
Nesse percurso se insere a produção de Ruy de Oliveira Andrade Filho, professor de História Medieval na UNESP. Seu livro, resultado de seu doutoramento na USP em 1997, revisto e agora publicado pela Editora da USP, traz uma significativa contribuição, ao lado de artigos e capítulos de livros que o próprio autor vinha publicando, para o debate de uma estimulante temática: a íntima relação entre religião e poder.
Já na introdução, Andrade Filho, com uma linguagem clara, trata da progressiva aproximação entre as estruturas do reino visigodo e as da Igreja, o que resultaria na elaboração de uma teoria da realeza, em que o rei é considerado o “ungido do Senhor”. Havia, portanto, um profundo sentido teocrático da realeza, que encontraria sua legitimidade na sanção divina à autoridade do rei. A monarquia, assim, revestia-se de um caráter sobrenatural fornecido e legitimado pela Igreja.
Como ferramentas para sua análise, o autor faz uso de uma gama de fontes que englobam hagiografias, leis civis e conciliares e um corpus de textos litúrgicos, dialogando diretamente com várias pesquisas sobre o reino visigodo. Esse corpus documental é utilizado de forma dinâmica para explicar a religiosidade e a montagem da monarquia católica com a conversão de Recaredo.
No primeiro capítulo da obra, intitulado “Uma Hispânia Convertida?”, a indagação logo no caput mostra-nos os problemas suscitados pela cristianização da Península Ibérica na Antiguidade Tardia. O paganismo explicitado por meio de cultos e práticas religiosas que, segundo Andrade Filho, são “difíceis de desenraizar” mostra a oposição entre o mundo urbano e o mundo rural. Este último representava um desafio maior para a penetração do Cristianismo; porém, após a conversão/cristianização, a verdadeira ortodoxia católica não teria grandes problemas no combate às heresias, era o ambiente em que existia maior severidade dos cristãos contra o paganismo. Em contrapartida, o mundo urbano, no que tange à religião, é o lugar do bispado, que se torna, em muitos casos, um mecanismo de ascensão social em que o grupo nobiliárquico dominante, a elite hispano-romana e visigoda, disputa esse tão almejado posto de poder.
No segundo capítulo da obra, intitulado “Cultura e Religião no Reino de Toledo”, o autor trata diretamente das consequências da conversão de Recaredo e da formação da Societas Fidelium Christi, quando supõe a composição do reino visigodo de Toledo como um corpo unitário, coeso por uma só fé e regido por uma cabeça cuja autoridade provinha do próprio Deus, e no qual os segmentos eclesiásticos tentavam disseminar uma nova concepção do sagrado, centrada em uma pretensa distinção entre os fatos religiosos e não religiosos. Porém, o mundo rural, pouco tocado pelo cristianismo católico, continuava a se alimentar dos velhos fundos de crenças ancestrais, tornando-se um meio que exigia da Igreja e de seus clérigos um movimento inverso, “de cima para baixo”, na tentativa de reordenar a sociedade segundo as finalidades religiosas.
Por meio do debate entre historiografia e fontes primárias, o autor busca desde o Baixo Império Romano a justificativa para a montagem da “Societas Fidelium Christi“, centrada na questão da “analogia antropomórfica”, expressa em leis civis, cânones conciliares e outros textos da Hispânia visigótica. Nos procedimentos de cristianização impostos pelo clero à população pagã, articulavam-se diversas relações e interpenetrações entre a “religiosidade popular” e a “oficial”. O Cristianismo veiculava a ideia de que as práticas pagãs estavam sob o jugo dos espíritos do Mal, unindo-se de forma íntima a idolatria, a magia e a heresia, fato que oferece ao pesquisador um vasto campo de possibilidades para a análise de tais temas.
No capítulo seguinte, intitulado “Religiosidade ou Religiosidades?”, o autor ressalta o costume de chamar de paganismo as manifestações relativas à religiosidade popular e mostra as dificuldades de uma sociedade mista em relação à religiosidade pretendida. Instiga-nos a pensar sobre a profundidade alcançada pelo Cristianismo e sobre a efetiva conversão e/ou cristianização produzida no reino visigodo. Segundo Andrade Filho, “a expressão religiosidade popular produz os efeitos mais diversos” (p. 104), mostrando o problema de definição de tal expressão e apontando o caráter empobrecedor de uma análise que a aborda como se tratasse de meras “permanências ou resistências pagãs” dentro do contexto hispano-visigodo. O autor demonstra, ainda, como ocorre a relação entre as práticas cristãs e as pagãs em diversas fontes do período. As práticas pagãs eram condenadas em concílios, regras monásticas e hagiografias; entretanto, tal condenação resulta na assimilação de mitos e ritos pagãos pela teoria cristã, além da aquisição, por parte dos santos, de muitas características de deuses e heróis clássicos ou mesmo pré-romanos. Ou seja, produzem um Cristianismo que dá continuidade a crenças anteriores a ele. Dessa forma, a pergunta persiste: “haveria então, efetivamente, uma religiosidade popular?”.
No quarto capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, Andrade Filho toca em um dos pontos essenciais de sua tese: a formação da “analogia antropomórfica”. Para o autor, a conversão ao catolicismo torna-se fundamento ideológico do reino de Toledo, e o Cristianismo é o elemento de coesão social. A conversão de Recaredo seria interpretada como um novo princípio, e a aliança entre Deus e a monarquia seria expressa na junção “rex-regnum“, corroborada pelo rito da unção régia: aproximava-se o posto do monarca com o da realeza judaica e, assim, o legitimava. O Deus cristão seria, antes de tudo, um Deus de vitória, do qual se poderia solicitar o triunfo, pois o monarca era escolhido pela gratia Dei. Segundo o autor, “de forma mais ampla, todos os habitantes do reino, enquanto cristãos, faziam parte de um corpo maior: da Igreja, do corpus Christi” (p. 162).
Em seu quinto e último capítulo, “Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo”, Andrade Filho demonstra a necessidade de novas análises documentais, indica como o Cristianismo criou uma cosmologia que, apesar das críticas, englobou diversos componentes do esquema pagão e que seria adotada e desenvolvida por Isidoro de Sevilha, na concepção dualista do homem integral, dotado de corpo e alma. Segundo o autor, é com base nesse pensamento hierofânico que se articula a metáfora da analogia antropomórfica, com suas correspondentes ligações entre o reino/corpo e a Igreja/alma, os quais deveriam compor um todo, isto é, a sociedade cristã.
Com uma análise minuciosa das fontes literárias do período, principalmente os documentos hagiográficos, que expressam os momentos de angústia em que vivia a sociedade visigoda cristã, Andrade Filho toca a questão do monopólio da intermediação do sagrado por parte do ordo clericorum, relação complexa diante das realidades cotidianas, pois, se para o mundo culto a leitura do “corpo místico” parecia plausível como sinal divino, tal ideia seria difícil de ser assimilada pela “religiosidade popular”, que ficava restrita ao destino de sua gente, de sua terra e de seus bens locais. Sendo assim, configuram-se dois tipos de paganismo: aquele praticado pelas elites, oficial e essencialmente urbano, e o dos humildes do campo, reduzido em grande medida, pela Igreja da época e pela historiografia tradicional, à condição conjunto de meros hábitos e usos sociais.
Observa-se, portanto, que o autor instiga o leitor à medida que aborda o tema de forma aberta e com metodologias não convencionais aos textos. Além disso, o autor deixa de lado as teorias prontas e as análises superficiais, demonstrando grande sensibilidade com relação à produção de um material científico valioso para a interpretação da sociedade do período. Ao abordar a monarquia visigoda, mostra-nos como esta se comporta e se contempla em um espelho ideal, ao transcender o elemento institucional da Igreja e colocar a religiosidade e a monarquia em meio a um processo em que novos valores são incorporados. Enfim, a obra de Andrade Filho, de forma clara e ao mesmo tempo erudita, incita-nos a pensar as relações entre religião e religiosidade, o catolicismo pós-conversão e a religiosidade partilhada dentro e fora do reino visigodo de Toledo. Constitui, pois, valiosa contribuição para os estudos referentes ao reino visigodo e à Antiguidade Tardia.
Germano Miguel Favaro Esteves – Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da UNESP /Assis.
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