FABRIS, Annateresa; KERN, Maria Lúcia Bastos (orgs). Imagem e conhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.366p. Resenha de: MOLINA, Ana Heloisa. As interlocuções nada prosaicas entre imagem e conhecimento. Histórias & Perspectivas, Uberlândia, v.1, N.40 – jan./jun. 2009.
Tornou-se lugar comum afirmar que vivemos em um mundo mergulhado em imagens. Aparentemente prosaico lidar com a pluralidade de imagens que nos são dadas a ver por e em diferentes meios e suportes, a produção imagética toma uma complexidade que reúne elementos cada vez mais significativos.
No trajeto das chamadas “imagens pictográficas” considerando as artes tradicionais, a fotografia e o cinema, às imagens imateriais, procedentes em sua maioria da lógica computacional, emergiu um panorama visual marcado pela complexidade narrativa, por uma estética centrada nos procedimentos e mesmo pelo excesso de uso e exposição. É a imagem-velocidade, guiada pela diretriz computacional, que marca hoje, consideravelmente, o atual panorama imagético.
Modificou-se também a propriedade das imagens: elas já não são o exclusivo de um grupo produtor, mas, desempenham funções sociais. A imagem expandiu, e, nesse processo, adquiriu, em grande medida, o status de virtualidade.
Os estudos sobre imagem agregam muitas áreas do conhecimento e há muito vem ganhando corpo, especialmente pela Sociologia, Antropologia Visual, Semiótica e História da Arte, e em muitas dessas, em franco processo, ocorre o refazer suas perguntas ao seu objeto de estudo.
Poderíamos iniciar algumas reflexões a partir do mecanismo de criação e reprodução da imagem e o progresso paralelo do conhecimento dos processos analíticos que permitem decompor a imagem. Na perspectiva do figurativo ao virtual, o simultâneo e a manipulação da matriz imagética proporcionam novas fronteiras de análise e recombinações.
É nesse ponto que Annateresa Fabris e Maria Lúcia Bastos Kern organizam esse livro avançando para a seguinte proposição: “quais as relações (possíveis) entre imagem e conhecimento?” (p. 11).
Pesquisadoras destacadas no estudo da imagem, da História da Arte, da fotografia e da pintura, as organizadoras reúnem ensaios já publicados (sobretudo no estrangeiro) e textos de pesquisadores brasileiros.
Dividido em duas partes, responde a um objetivo metodológico “[…] compreender as diversas modalidades de conhecimento proporcionadas pela imagem manual e pela imagem técnica com base em dispositivos próprios e irredutíveis a qualquer outra possibilidade” (p.11).
Uma das qualidades do livro é a preocupação em iniciar cada bloco com um ensaio introdutório “[…] que pretende situar o leitor no âmbito de uma discussão mais ampla” (p.12), fornecendo ferramentas metodológicas capazes de problematizar reflexões particulares no interior dos diversos ensaios.
Abordar a problemática da imagem numa perspectiva histórica é a proposta da primeira parte.Dentro de um espectro temporal longo, toma imagens que percorrem o cristianismo, o século XVIII, abordando desde olhar e composição à relação arte e religião ou ainda arte e ciência.
Assim, abre a primeira parte o texto inédito de Kern sobre “Imagem manual: pintura e conhecimento” percorrendo as concepções de imagem, representação, pintura e conhecimento apresentando, em um amplo painel, as discussões filosóficas que nortearam as práticas e as modernas teorias pictóricas, desde a Antiguidade até o pós Renascimento. Encerra com uma questão que parte da premissa de Bachelard segundo a qual “todo o conhecimento é uma resposta a uma questão, pode-se verificar pela trajetória da pintura que esta se consolidou como categoria artística autônoma e que definiu as suas próprias normativas tendo por base a busca constante de respostas para os problemas vividos pelos artistas nas suas práticas e no mundo que os circunda.” (p.29).
Composto por cinco ensaios inicia esse bloco o texto de Alain Besançon, professor universitário em Paris, com “A Arte e o cristianismo” recolocando a questão da fé, da moral, da iconofilia e da iconoclastia em um outro prisma: onde encontrar a arte cristã? Em que essa arte é cristã? O autor percorre um longo trajeto e indica “Não é preciso, portanto, preocupar-se com a arte cristã, mas sim com a arte. Em nome do princípio da unidade da arte, se este for reencontrado, a arte cristã será dada por acréscimo.” (p. 52).
Na seqüência temos “Arte e ciência: funções do desenho em Leonardo da Vinci”, de Daniel Arasse, autor de, entre outros, La guilhotine et l’ imaginaire de la terreur (1987), apresentando as distinções, a aparente contradição entre a prática “científica” do desenho e sua prática “artística”, apontando a importância de da Vinci na técnica do desenho preparatório e sua influência na pintura onde “[…] para Leonardo, “saber, é saber ver”, é preciso acrescentar que, para ele, fazer saber é saber fazer ver. […]” (p.
61).
Georges Didi-Huberman, professor universitário em Paris, no texto “Pensamento por imagem, pensamento dialético, pensamento alterante: a infância da arte segundo Georges Bataille” apresenta a importância desse artista no domínio estético, suas desmontagens teóricas e suas intervenções em montagens figurativas, propondo um olhar à infância da arte enquanto dialética, considerando elementos da arte primitiva e a produzida por crianças em várias partes do mundo. “[…] não se contentar com a oposição canônica entre “a arte clássica dos civilizados adultos”, como diz ele, e “a arte primitiva” dos selvagens ou das crianças […]”. (p. 95). Por outro lado, nos diz e provoca nossas percepções quanto às formas apresentadas em telas: “[…] a alteração das forma, o processo do informe, não estão nem alhures, nem antes das formas: eles estão na sua própria ponta, ali onde seu contato é o mais decisivo, o mais doloroso, o mais deslocador” (p.112).
“A arte de exorbitar o olhar sobre A Parábola dos Cegos de Bruegel” escrito por Jean Lancri, pintor e professor na Universidade de Paris I, analisa a organização de um olhar para aquele quadro e sua composição que estaria às voltas com a questão de sua origem. “E é isso que a obra espera: um curtocircuito.
O estabelecimento de uma relação entre o ponto para o qual ela tende com o ponto de onde ela provém.”(p.134).
Fechando esse primeiro bloco, temos “Conhecer, dominar, pintar numa obra americana do século XVIII”, de Gabriela Siracusano e Marta Penhos, professoras universitárias na Argentina, que põem a descoberto o cruzamento de olhares de conquistadores, cartógrafos e artistas, entre registros icônicos e textuais, sobre a paisagem americana em uma pintura do século XVIII. Tal paisagem apreendida em “Textos e imagens concordam em mostrar esse aspecto sedutor de uma natureza que devia ser explorada para seu melhor conhecimento e controle, com vistas a um futuro proveito”. (p.148) e apontam a questão da obra imagética considerada como ferramenta de conhecimento, ou várias leituras possíveis sobre essa mesma obra.
A segunda parte dedica-se a discutir a imagem técnica desde a fotografia até o universo atual das tecnologias eletrônicas, abarcando a fotografia e suas redefinições, a construção da memória até imagens sintéticas, a holografia e o estudo de um projeto artístico.
A introdução a essa segunda parte de discussões é feita em “Imagem técnica: do fotográfico ao virtual”, de autoria de Annateresa Fabris, que analisa as possibilidades da fotografia, a influência da técnica da gravura no início de sua fatura e a dimensão avassaladora da tecnologia e sua ação no imaginário a partir de vários pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. “As respostas são variadas porque são várias as hipóteses levantadas por este momento cultural em que as novas tecnologias fazem reaflorar aquele unicum, que a reprodutibilidade fotográfica parecia ter relegado à esfera da manualidade […]”. (p.178) Abre o segundo bloco, o texto “A superfície fotográfica” de Mario Costa, pesquisador italiano dedicado aos estudos relativos à mídia, estética e tecnologia aplicada à produção artística que reflete as relações entre referente, sujeito e a dimensão da própria fotografia, propondo um outro olhar a essa captura de imagens.
“A fotografia inaugura a longa série das epifanias tecnológicas: com ela, a asseidade da imagem se revela e, ao mesmo tempo, se oculta, como jamais voltará a fazer”.(p.191) (grifos do autor).
Segue-se “Quando a fotografia (já) fazia os antropólogos sonharem: o jornal La Lumière (1851-1860)” de Étienne Samain, nome conhecido nos meios universitários por suas pesquisas sobre a fotografia. Primeira publicação francesa dedicada à fotografia, esse jornal será a fonte do autor para percorrer as mudanças e os debates sobre as técnicas fotográficas no final do século XIX e seu registro enquanto formador de um olhar antropológico, onde “[…] A revolução fotográfica instaurava uma nova ordem de visão e uma nova filosofia do olhar. Ela delineava novos campos de observação humana e, sobretudo, fazia nascer um novo tipo de observador” (p.211), indicando a presença desse suporte, em meados do século XIX, em toda parte, nas ciências naturais, humanas ou exatas, o que para Samain permanece pouco estudada.
Na seqüência, “Quadros de História Pátria: fotografia e cultura histórica oitocentista” de Maria Inez Turazzi, pesquisadora do IPHAN, toma como fonte para seu texto, uma coletânea de imagens produzidas após a proclamação da República e encontrada na biblioteca de Benjamin Constant. Não há menção ao autor do texto que acompanha e explica as imagens, (21 estampas que reproduziam 20 gravuras e pinturas de vários artistas e uma imagem fotográfica) trazendo apenas a referência a Marc Ferrez como responsável pelas fototipias. Analisando este material a autora apresenta as relações entre memória e esquecimento, via imagens, em um novo regime que se instaura e se esforça para esmaecer personagens ligados ao regime monárquico. Alia, ainda, reflexões sobre as relações entre fotografia e cultura histórica.
Em “Realismo: duas visões confluentes” a quatro mãos com Annateresa Fabris e Maria Rosaria Fabris, a primeira com pesquisas em poéticas artísticas e a segunda investigadora do neo-realismo, ambas professoras da USP, exploram o projeto Un Paese do cineasta Cesare Zavattini e o fotógrafo Paul Strand ao capturarem a poesia, ideologia e arquitetura do movimento neo-realismo no cinema italiano a partir das imagens de Luzzara, uma pequena vila na região do Pó. Os personagens e seu cotidiano serão vistos como um microcosmo de um universo maior “[…] Paul Strand não retrata seus habitantes como representantes de categorias sociológicas. Rechaçado o tipo, o fotógrafo preocupase em captar fisionomias individuais, que não remetam a nada para além delas […]”. (p.263) “A imagem da imagem e sua diferença” com Paolo Bertetto, professor de cinema na Universidade La Sapienza de Roma, considera a imagem na metrópole, os meios de comunicação de massa e as modificações na produção das formas simbólicas, em particular, das formas artísticas. “A imagem da imagem não é mais o signo metropolitano da modernidade, da simultaneidade e da multiplicidade dos estímulos, mas representa sua superação”.
(p.274) Stéphane Huchet, autor de vários ensaios sobre teoria da arte, analisa em “A nova Górgona ou o céu do processo”, que o atual fetichismo das imagens visuais envolve ainda muito do artístico sem reciprocidade. “Pergunta-se: o que é, portanto, da tarefa da estética filosófica, tão medrosa diante das imagens vindas das novas – já menos novas – tecnologias?” (p.297).Tal como o monstro mítico que congela seus espectadores ao serem fitados por seus frios olhos, a tecnologia, a máquina, o computador, tornam-se organizadores de um outro processo de criação visual.
“Idiotice e esplendor da arte atual” de Mario Perniola, professor da Universidade de Roma, abre o texto com uma instigante frase: “Na aventura artística do Ocidente, podem ser encontradas duas tendências opostas: uma, voltada para a celebração da aparência; outra, orientada para a experiência da realidade” ( p. 303). Funda seu ensaio nas relações entre o real e “a efetuabilidade máxima e a abstração máxima”, premissas do realismo atual o que promoveria o desgaste de todas as coordenadas teóricas e críticas conhecidas, provocando angústia e trauma, esplendor e arte.
O provocador texto de Vilém Flusser intitulado “Sintetizar imagens” aponta paralelos e mesmo como elementos sinônimos o programarmos modelos de computador e compormos uma obra. “Os modelos sintéticos não significam o que significava a “arte”. Significam a “vontade” do programador para dar significado à vida. Os modelos sintéticos já não são significados, mas significantes” ( p.324).
“A questão da representação na holografia” com Eduardo Kac, artista multimídia e professor do Instituto de Arte de Chicago, envereda suas reflexões em um suporte pouco estudado: a holografia. Aponta para a perspectiva dos hologramas “[…] serem uma maneira de registrar, armazenar e resgatar informações e poderem exibir uma imagem ou substituir certos objetos em sua função sem exibir nenhuma imagem, eles suscitam uma questão complexa em relação à maneira como representam (ou não)”.
(p.335) Encerra o bloco, o texto “Projeto OPUS: uma aproximação à intercriação de imagens digitais”, com o artista multimídia e fotógrafo Carlos Fadon Vicente que apresenta uma pesquisa conceitual e estética sobre arte eletrônica, examinando em particular a geração de imagens digitais sob a polaridade certezaincerteza.
“[…] A tônica de OPUS situa-se em sua estrutura dialógica, como uma co-incidência ser humano e computador, e na ausência de apelo a um brilho tecnológico, desvelando ainda uma ligação com a imaginação ativa”. (p.366) A polissemia da mensagem visual envolve ramificações de associações, uma multiplicidade de símbolos e interpretações e possui como variável de codificação, um repertório cultural construído em meio às relações sociais e históricas, implicando também pela ótica do leitor, a seleção de significados, escolhendo alguns, excluindo outros.
Uma imagem é carregada de significado, mesmo que não se saiba formulá-la adequadamente em termos discursivos ou conceituais, o que amplia suas possibilidades e vórtice de orientações a partir das novas recombinações das imagens tecnológicas.
Em um momento de reavaliações das imagens, suas produções e interfaces, suas relações com homens e máquinas cada vez mais refinadas e equipadas, essa coletânea de ensaios a partir de pressupostos, indagações e buscas da arte, da estética, da filosofia, da fotografia e da história, propõe reflexões primordiais não somente no tocante à multiplicidade e diversidade da imagem e seus suportes, mas, quanto a reorganização do conceito cultura, como também, da própria conformação de um olhar e das possibilidades de construção do conhecimento.
Para historiadores e professores interessados em entender essas transformações são necessárias duas atitudes: retirar do lugar comum o “mundo povoado por imagens” e adentrar em um território povoado por outras concepções, ferramentas metodológicas e olhares não tão prosaicos, nem tampouco inocentes.
Ana Heloisa Molina – Doutora em História (UFPR). Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação História Social. Universidade Estadual de Londrina.
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