MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina (1859-1919): uma face do conservadorismo. Maringá: UEM, 2008. 102 p. Resenha de: FONSECA, André Dioney. Religião, Estado e educação feminina. Revista Estudos Feministas v.18 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2010.
O chamado catolicismo ultramontano tem sido nas últimas décadas objeto de inúmeros estudos na área de história. É compreensível o interesse dos pesquisadores nesse projeto católico ao se considerarem os reflexos dessa autocompreensão em diferentes esferas da sociedade, em seu longo período de vigência (1800-1960). Em poucas palavras poderíamos afirmar que o ultramontanismo foi uma resposta da Igreja às ameaças que vinham se avolumando desde a ruptura das relações feudais e da ética católica, com a introdução do assalariamento, da ética mercantilista, da constituição dos Estados nacionais e da preponderância do poder civil sobre o religioso e, em especial, das transformações abruptas na esfera intelectual que abririam caminho, a partir do humanismo, à Reforma Protestante, ao Iluminismo, ao Liberalismo, ao materialismo dialético e ao socialismo.
Em face de todas essas perdas, no século XIX, a Igreja resolveu agir de maneira radical, provocando uma verdadeira agitação sociopolítica ao anunciar sua reação ao mundo moderno, condenando o capitalismo e suas teorias, bem como a esquerda em todas as suas vertentes. Em suma, o projeto político ultramontano estruturou-se em torno da rejeição à ciência, à filosofia e às artes modernas, condenando o capitalismo, a ordem burguesa, os princípios liberais e democráticos e todos os movimentos esquerdistas, como o socialismo e o comunismo.
No Brasil, as sendas para as pesquisas nesse tema foram abertas, sobretudo, por dois autores:Roberto Romano, em seu clássico Brasil: Igreja contra Estado, e Augustin Wernet, em seu também clássico A Igreja paulista no século XIX. E foi sob a orientação de Wernet que Ivan Aparecido Manoel conduziu a pesquisa que resultou no livro ora resenhado, originalmente apresentado como tese de doutoramento no fim da década de 1980, na Universidade de São Paulo. O texto foi publicado em 1996 pela editora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (EDUNESP), porém, como é comum em trabalhos que contribuem sobremaneira com as reflexões historiográficas, não tardou a se esgotar.
Desse modo, a reedição de Igreja e educação feminina (1859-1919) pela editora da Universidade Estadual de Maringá (EDUEM) coloca novamente ao alcance do público um estudo essencial aos interessados, especificamente, nos desdobramentos do catolicismo ultramontano em terras brasileiras, na história da educação, ou mais especificamente, na história da educação feminina no Brasil e, de modo geral, a todos os que se interessam pela história do Brasil, em especial, num dos temas mais recorrentes de nossa historiografia: a implexa recepção dos ideais modernistas por parte da oligarquia conservadora do Brasil.
Este último aspecto é muito importante na escrita do livro, pois, de acordo com o autor, a busca pelo entendimento das muitas faces do conservadorismo oligárquico brasileiro se fez presente em cada página de seu estudo: “uma grande interrogação orientou a escrita desse livro: como entender e explicar de modo razoavelmente competente as atitudes contraditórias e ambíguas da oligarquia brasileira” (p. 18).
O livro, que foi dividido em quatro capítulos, apresenta no primeiro um interessante panorama da educação feminina no século XIX. Se a educação das jovens não havia sido preocupação central para a oligarquia até as últimas décadas do século XIX, num momento em que as meninas eram educadas apenas para atender às lides domésticos, esse quadro alterar-se-ia radicalmente diante dos ideais modernistas que se propagaram no Brasil nos últimos decênios do século XIX. Esse novo contexto passou a exigir da mulher conhecimentos que iam além do preparo para dirigir uma casa ou governar seus escravos. Cobrava-se domínio sobre a leitura e a escrita e conhecimento mínimo da nova e complexa configuração mundial. Se a necessidade de uma educação “sociocultural” das mulheres se mostrava urgente, mais urgente ainda era para a oligarquia encontrar escolas que educassem as suas jovens, que, até então, eram instruídas, em sua grande maioria, por professores particulares, longe das precárias escolas públicas, de onde eram afastadas pelo receio que nutriam seus pais de misturá-las às crianças menos abastadas.
Todavia, a mesma modernidade que exigia uma educação diferenciada de suas filhas trazia consigo inúmeros perigos que preocupavam, deveras, a oligarquia brasileira, pois o modernismo nesse momento significava muito mais do que inovações tecnológicas; ele pressupunha extensão dos direitos civis para todos, até mesmo para as mulheres. Daí o motivo do temor da oligarquia ao feminismo, um dos maiores fantasmas que subjaziam sob os ideais modernistas.
No segundo capítulo, Ivan Manoel apresenta uma Igreja que, estando no auge de sua política de romanização (denominada catolicismo ultramontano), substanciava verdadeira ojeriza a todas as ideias modernistas que punham em xeque as doutrinas da Santa Sé. Das páginas desse capítulo transparece também um clero conservador, capitaneado por Dom Antônio Joaquim de Melo, que não poupava esforços no ataque à modernidade e que enxergava na educação, em especial na educação feminina, uma forma de livrar a família brasileira dos males modernistas.
A confluência de temores e necessidades fez com que Igreja, Estado e oligarquia se unissem. O autor demonstra no terceiro capítulo que a Igreja tinha por objetivo frear a modernidade que se infiltrava no Brasil e via na educação o melhor antídoto; o Estado, ao incentivar as escolas católicas, vislumbrava uma oportunidade de amenizar as precariedades do ensino público; já a oligarquia encontrava nas escolas católicas espaço ideal para instruir suas filhas sem maculá-las com as distorções do modernismo. Essa junção de interesses corroborou para que, em 1851, capuchinhos e freiras francesas da cidade de Chamberry, na Saboia, trouxessem para São Paulo o conjunto doutrinário ultramontano. Às irmãs de São José de Chamberry coube a tarefa de suprir a falta de escolas e atenuar a premente necessidade da oligarquia, qual seja, uma educação conservadora para suas filhas. Mas qual era a proposta educacional desse colégio? Para responder a essa indagação, Ivan Manoel reservou o quarto e último capítulo de seu livro.
As escolas das Irmãs de São José de Chamberry ofereciam três formas distintas de matrículas: o internato pago, o externato gratuito e o orfanato. O internato era o ponto forte das escolas e o externato, consequentemente, era de importância secundária. Já o orfanato punha às claras a política conservadora desse modelo de educação. O autor, a partir de documentação original, mostra que todas as forças estavam concentradas nas alunas do internato (que eram oriundas de famílias ricas), de modo que o modelo de externato (criado com o intuito de atender a famílias que não tinham condição de subsidiar o ensino de suas filhas e, sobretudo, fazer frente às escolas gratuitas mantidas pelos protestantes) possuía menor quantidade de alunas e contava com um número inferior de professores, matérias e seriação. No orfanato as meninas recebiam doutrinação religiosa e prendas para exercerem a função de empregadas domésticas, ou em casos extraordinários, a docência em escolas públicas. Além do baixíssimo nível de instrução, essas meninas do orfanato eram responsáveis por inúmeros serviços, como as lides de limpeza e de cozinha.
O olhar atento do autor sobre as fontes descortina o cotidiano nos colégios das Irmãs de São José. O primeiro aspecto destacado foi a centralidade do modelo de internato, entendido como o melhor e mais natural método de educação das crianças. O internato teria como função-chave a vigilância e, por conseguinte, o controle sobre o corpo, os gestos, os comportamentos, as linguagens etc., elementos primordiais na formação de uma mulher dotada de “ornamentos culturais”, mas também de polidez. O ensino resultava de uma mescla de disciplinas, orações diárias e leituras das obras de autores filiados ao ultramontanismo – em clara contraposição à “pedagogia moderna”. Nesse clima de severa disciplina havia ainda espaço para uma acirrada atmosfera de disputa entre as alunas, tudo sob o estímulo do modelo pedagógico que guiava os colégios das Irmãs de São José.
As conclusões do autor são reveladoras: num momento em que os referenciais modernistas avançavam pelo mundo, a oligarquia brasileira filtrou o que era interessante para sua perpetuação (abandono da herança colonial escravista e inserção no mercado mundial capitalista moderno) do que poderia ameaçar os seus tradicionais costumes (emancipação das mulheres) e pôr em risco seu status quo (extensão dos direitos civis). Uma elite, portanto, ambiguamente modernizante e conservadora. Por outro lado, o clero brasileiro marcado pelas tinturas do ultramontanismo se pôs ao lado do Estado e da oligarquia no intuito de estender seu projeto de romanização. As ações dos clérigos ultramontanos na educação foram impulsionadas pela ausência do Estado no ensino público brasileiro e pelas benesses de uma oligarquia que, paradoxalmente, investia nas escolas católicas os lucros obtidos num modelo econômico modernista com o fito de aniquilar incômodos postulados dessa mesma modernidade.
A riqueza das minúcias conjugadas magistralmente aos grandes temas da historiografia brasileira por meio de uma fluente escrita impossibilita uma apreciação satisfatória do livro de Ivan Manoel em um texto dessa natureza. Nossa intenção é lançar o convite à leitura a todos os que se interessam pelo tema tratado em Igreja e educação feminina (1859-1919), mas também a todos aqueles que apreciam obras históricas que primam pelo rigor teórico, pelo amparo documental e por uma escrita envolvente.
André Dioney Fonseca – Universidade Federal da Grande Dourados.
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