Ideologia Autoritária | Guido Rodriguez Alcalá

Um problema sempre recorrente quando se fala da integração latino-americana no plano cultural é a dificuldade de comunicação entre as metades de origem espanhola e portuguesa do continente. Os livros, revistas e jornais argentinos, mexicanos ou espanhóis circulam pelo imenso espaço entre o México e a Terra do Fogo, formando um conjunto que não é nem de longe homogêneo, mas se comunica através de uma língua comum. A produção cultural brasileira, em língua portuguesa, contudo, não tem esta repercussão fora do país, e nem mesmo entre nossos vizinhos mais próximos há uma real demanda por ela. Como contrapartida lógica, o que se produz na América hispânica nem sempre chega às estantes do Brasil, o que dificulta o diálogo e as trocas numa região que se aproxima, economicamente, cada vez mais.

Numa iniciativa do Itamaraty, surgiu a Coleção América do Sul, cujo objetivo é colocar à disposição do público brasileiro obras fundamentais, publicadas por conhecidos escritores e pesquisadores dos países da América do Sul, para o conhecimento destes países. Tais obras, devidamente traduzidas para o português, buscam estimular no leitor brasileiro o interesse pela nossa própria região do mundo e aproximar as duas metades do continente latino-americano. Tal idéia é mais do que meritória, nem tanto pela tradução dos livros (já que é impensável que um leitor culto de português seja incapaz de ler espanhol), mas pelo fato de disponibilizar, no Brasil, obras de interesse que dificilmente circulariam no país sem o apoio oficial.

Uma dessas obras recém traduzidas e publicadas é a aqui resenhada, de autoria de Guido Rodrigues Alcalá. Publicada originalmente no Paraguai em 1987, ela representou um verdadeiro divisor de águas na historiografia paraguaia, sendo mais do que merecedora de uma versão em português.

Ideologia Autoritária é composta de dois ensaios. No primeiro, são analisados os três governos ditatoriais do Paraguai anteriores a 1870, a saber, os de José Gaspar de Francia, Carlos Antonio López e Francisco Solano López. O autor analisa as várias décadas em que estes homens estiveram no poder e demonstra como, longe de representarem qualquer progresso e/ou uma “era de ouro” para o Paraguai, este período teria sido caracterizado por um verdadeiro desastre econômico, político e social. Tal desastre teria culminado com o desencadeamento da Guerra do Paraguai (ou da Tríplice Aliança), entre 1864 e 1870, que destruiu completamente o país. Alcalá deixa claro que, apesar de um ou outro exagero, os historiadores paraguaios da “era liberal” (1870-1936), os quais avaliaram com extremo rigor e pessimismo o período de Francia e dos López, estavam mais certos do que errados e que a “era liberal”, apesar dos imensos problemas, foi positiva para o país.

No segundo ensaio, totalmente conectado ao primeiro, Alcalá demonstra como os governos ditatoriais instalados no Paraguai depois de 1936 se interessaram em desmontar a visão predominante na “era liberal” e recriar uma memória histórica particular do período pré-1870 e, especialmente, do governo de Francisco Solano López. Ao invés de uma era de despotismo, terror e atraso, teria sido um período de patriotismo, desenvolvimento e progresso para o Paraguai. Como derivação lógica dessa nova maneira de ver o passado, Solano López deixava de ser um tirano e causador de uma guerra que destruiu o país para se tornar símbolo de patriotismo e progresso. Influente já nas primeiras décadas do século XX, essa perspectiva (que fazia das guerras da Tríplice Aliança e do Chaco (1932-1935) momentos gloriosos e aproximava Francia e os López de ditadores contemporâneos como Morínigo e, especialmente, Stroessner) se tornou ideologia de Estado a partir de 1936, só perdendo força, mas não desaparecendo, após a queda de Stroessner em 1989.

Neste segundo ensaio, Alcalá descreve com bastante cuidado esse processo de revisão da história paraguaia, analisando as obras dos exponentes intelectuais da mesma, como Juan O´Leary (1879-1965) e Natalício González (1897-1966). O autor é especialmente crítico a estes autores, ressaltando a sua baixa capacidade intelectual e as contradições sem fim do seu pensamento. É evidente, assim, que essa revisão historiográfica triunfou não pela sua maior capacidade explicativa da História, mas por sua conveniência política.

Fica claro, realmente, durante a leitura, que essa reversão de perspectivas não foi meramente acadêmica, mas refletiu a mudança da configuração política no Paraguai a partir dos anos 20 e, especialmente, dos 30 do século XX. Aos valores liberais e cosmopolitas da elite que haviam dominado o país nas seis décadas depois de 1870, as novas forças que ascenderam em 1936 contrapunham valores nacionalistas, antiliberais e militaristas, tendo sido necessário dar uma sustentação histórica a elas. Tanto a questão era política que qualquer crítica aos López pós-1936 era vista como crítica ao Estado paraguaio e imediatamente reprimida. O livro ora resenhado constituiu-se em marco na demolição dessa falsificação da história paraguaia construída pelas várias ditaduras entre 1936 e 1989 e, tendo sido escrito ainda no final do governo Stroessner, revela a coragem intelectual e até física do autor.

É impossível não considerar o livro excepcional. Só quem visitou a capital paraguaia pode visualizar a profusão de símbolos que, ainda hoje, povoam o cotidiano de Assunção com a memória construída das duas guerras que definiram a identidade paraguaia, a saber, aquela contra a Tríplice Aliança e a do Chaco. Ela está presente em nomes de ruas, na moeda em circulação, nos monumentos e, acima de tudo, no “Panteón de los Héroes de la Patria”, em pleno centro da capital, o qual, desde 1936, conserva as cinzas de Francia, dos López e outros protagonistas, ilustres e anônimos, destas guerras. Para um brasileiro, especialmente, acostumado a escutar, nas salas de aula, o “outro lado” da História, a experiência de caminhar por Assunção pode ser, no mínimo, interessante, e o livro de Alcalà ajuda-nos a compreender esta construção da memória.

O texto nos ajuda a perceber, igualmente, que nem o Brasil, nem o Paraguai, nem outros países ocidentais estão ilhados e que, apesar de especificidades locais, certas realidades e debates são comuns em determinados períodos. O clima antiliberal, em favor de um Estado autoritário e do corporativismo nos anos 30, por exemplo, não difere muito, seja no Paraguai seja no Brasil ou na Argentina. Já as reflexões de González, por exemplo, sobre como haveria uma oposição entre um Paraguai “autóctone” real e um “exótico”, identificado no liberalismo, são incrivelmente próximas às idéias de autores brasileiros como Cassiano Ricardo ou Plínio Salgado, que opunham um Brasil verdadeiro no Interior a outro, artificial, no Litoral.

Valeria a pena, aliás, pesquisar melhor os contatos e relações entre esses autores e grupos na América Latina nos anos 30. É conhecido que Gustavo Barroso, por exemplo, era muito lido em círculos antisemitas e pró-fascistas no Cone Sul e que o Integralismo brasileiro manteve alguns contatos com movimentos como, por exemplo, Bandeira Argentina, a Legión Civica Argentina, a Acción Nacional do Uruguai, além de outros na Colômbia, Chile e Venezuela. Tais conexões são, em geral, desconhecidas e valeria a pena estudá-las com mais detalhe.

Seria especialmente interessante, a propósito, explorar como tais relações entre todos esses grupos podiam ser próximas e, ao mesmo tempo, tensas. Próximas, porque as posições ideológicas de todos eles eram, em geral, muito parecidas; mas, ao mesmo tempo, tensas, porque a questão nacional os separava. Gustavo Barroso e Câmara Cascudo, por exemplo, ambos integralistas, com certeza apreciavam os ataques de O´Leary ou González contra o liberalismo, mas não podiam aceitar uma revisão da história paraguaia que considerasse o Brasil culpado da guerra, Solano López um herói e o Duque de Caxias um criminoso, o que levou a ásperos debates entre eles e os autores revisionistas argentinos e paraguaios. Além disso, como o nacionalismo argentino poderia aceitar um movimento que queria o fortalecimento nacional do Brasil e sua projeção na América do Sul e vice-versa?

Claro que esta questão nacionalista, muitas vezes, podia ser relativizada em face de objetivos maiores. Mesmo quando essa ideologia revisionista em relação à Guerra do Paraguai estava no auge, no governo Stroessner, o Brasil era a principal referência internacional do país e, no “Panteón de los Héroes de la Patria”, até hoje, estão placas destacando os bons ofícios e a amizade do Exército brasileiro, o que é, no mínimo, curioso, dados os fins daquele monumento. Não resta dúvida, contudo, de que os contatos dos movimentos de direita paraguaios, naqueles anos, com seus congêneres brasileiros e de outros países, com todas as suas contradições, seriam um excelente tópico para pesquisa mais aprofundada. Ao indicar isto, o livro ressalta ainda mais o seu valor.

Ainda assim, algumas – poucas – críticas podem ser feitas. Em alguns momentos, o texto resvala para o opinativo e a crítica pejorativa. Tal posição pode ser compreensível por ser esse um livro destinado não apenas ao debate acadêmico, mas também à luta política, mas nem sempre acrescenta algo ao leitor.

Além disso, há algumas inconsistências teóricas dentro da análise do autor. Ele indica que dificilmente poderíamos considerar o regime instalado no Paraguai a partir de 1936 como fascista e que pessoas como O´Leary e González (ou ainda periódicos como Guarania, que defendia o fascismo no plano internacional) poderiam ser considerados no máximo simpáticos ao fascismo europeu e/ou influenciados por ele, e nunca fascistas verdadeiros. Ele, aliás, reconhece que não havia um real movimento fascista no Paraguai naqueles anos (p. 82).

No entanto, Alcalá ressalta que as idéias fascistas circulavam com força pelo Paraguai dos anos 30 e indica a força da influência de Charles Maurras e de sua Action Française nos pensadores paraguaios responsáveis pela revisão histórica antiliberal. Ele classifica este movimento como “fascista” (p. 88) e utiliza o argumento da vasta difusão do pensamento deste para comprovar a influência das idéias fascistas européias na construção do pensamento nacionalista paraguaio. Os sinais dessa difusão são claros (e Maurras também era muito lido, naquele momento, no Brasil, Argentina, Portugal e em muitos outros lugares), mas o problema é que há uma enorme discussão historiográfica sobre se a Action Française, apesar de abertamente anti-semita e antiliberal e de ter influenciado muito a formação do pensamento fascista no mundo, era realmente fascista.

Afinal, ela promovia a mobilização popular na defesa das suas propostas, num estilo próximo do fascismo, mas era tradicionalista, monarquista e católica, o que dificilmente se encaixa no cânone fascista tradicional. Supondo-se que esta posição esteja correta, a difusão do seu pensamento no Paraguai poderia ser um argumento para ressaltar a importância do pensamento conservador de direita (mas não fascista) europeu na construção do nacionalismo paraguaio dos anos 30, e não a força do fascismo no processo. Enfim, apenas um pequeno problema que poderia ter sido evitado com um pouco mais de cuidado no uso dos conceitos.

Estes, contudo, são detalhes menores num livro que é extremamente útil e pode ajudar o leitor brasileiro a compreender melhor não apenas a história paraguaia e da América Latina em geral, mas também a do próprio Brasil, assim como as conexões entre conhecimento histórico, memória e poder que constroem continuamente a História. De parabéns o autor, os tradutores e o governo brasileiro pela iniciativa.


Resenhista

João Fábio Bertonha – Doutor em História pela UNICAMP (1998). Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá.


Referências desta Resenha

ALCALÁ, Guido Rodriguez. Ideologia Autoritária. Trad. Luiz Felipe Viel Moreira e Marcela Cristina Quinteros. Brasília: Funag; IPRI, 2005. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Diálogos. Maringá, v.10, n.3, 233-237, 2006. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.