Identidades e fronteiras no medievo ibérico | Fátima Regina Fernandes
A obra Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico, coordenado pela professora doutora Fátima Regina Fernandes, é fruto de estudos conjuntos realizados pelos pesquisadores do Núcleo de Estudos Mediterrânicos – NEMED – vinculado à Universidade Federal do Paraná e o grupo Espai, Poder e Cultura da Universidade de Lérida, apoiado por instituições de fomento brasileiras e espanholas. Como expresso pelo título do livro, o tema que perpassa todos os capítulos relaciona-se com formação de identidades e fronteiras nos espaços ibéricos nos séculos VII a XV, interesse haurido de reflexões contemporâneas a cerca de temas que tocam o Ocidente Medieval.
Em contexto de globalização, o interesse do presente estudos surge a partir do questionamento das fronteiras e identidades atualmente estabelecidas, seja entre instituições ou mesmo entre grupos de indivíduos, o que exige um exercício de reflexão em torno da utilização de concepções da atualidade para pensar em questões específicas à medievalidade ibérica, o que exige aos pesquisadores um esforço em evitar possíveis anacronismos.
Diante de tal proposito, no primeiro capítulo, intitulado “A fronteira luso-castelhano medieval, os homens que nela viviam e o seu papel da construção da identidade portuguesa”, Fátima Regina Fernandes dedica atenção à região fronteiriça de Entre-Tejo-e-Odiana, ou Guadiana, e principalmente aos ataques de saque entre a vila portuguesa de Elvas e a castelhana de Badajoz ao longo do reinado de Fernando IV e da regência do mestre de Avis. Nesse período, Gil Fernandes ocupou posição de destaque por sua atuação nas entradas contra as terras badajocenses e na defesa de seu município, assim como na resistência local a favor do regente e mestre de Avis durante as tensões com Juan I Trastâmara, e as pretensões do castelhano em invadir Portugal. Tomando por base as ações de Gil Fernandes, a autora conclui demonstrando que, distante das relações de poder com o rei, os habitantes dos meios municipais demonstraram uma maior ligação com suas origens, o que desembocaria numa posterior consciência de identidade nacional.
No segundo capítulo, “Expressões da representatividade social na Catalunha tardomedieval”, Flocel Sabaté aborda como a relação entre o poder régio, nobiliárquico e municipal se deu no âmbito específico do espaço catalão. Diante dessa proposta, o autor afirma que a debilidade do poder dos monarcas aragoneses nos séculos XIII e XIV os forçou a reconhecer a legitimidade das bases nobiliárquicas e das elites urbanas nos assuntos do reino, sendo as Cortes os espaços de negociação e representação de tais instâncias. Frente às pretensões de afirmação da supremacia régia, a Catalunha estabeleceu uma identidade própria daqueles que habitam seu espaço e, para tanto, se apoiou em denominações como “nação” – coletivo humano constituído por comportamentos comuns, tais como a língua –, “terra” – espaço físico homogêneo do qual advinha a soberania catalã – e o geral – identificava com o bem comum. Por fim, enquanto o rei se colocava como cabeça do corpo místico da realeza, a Catalunha buscou seu lugar neste sistema ao inserir Barcelona na posição do coração.
Em “Identidades e fronteira(s) na Hispania Visigoda segundo o pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII)”, terceiro capítulo do livro, Renan Frighetto aborda a tentativa de formação de uma identidade única no mundo imperial romano a partir da concepção da supremacia dos civilizados – cidadãos romanos – sobre os bárbaros. Contudo, essa concepção ruiu com o enfraquecimento da autoridade romana a partir do século V e a ascensão de grupos bárbaros, muitas vezes defensores do próprio Império, tal como os visigodos. Após a desaparição do regnum – com a morte de Alarico II, em 507 –, esse grupo de bárbaros se converteu ao catolicismo, o que propiciou a Isidoro de Sevilha apresentar argumentos para a identidade comum dessas gentes com base no amparo de seu poder régio pelo catolicismo. Mas também para este caso, o autor demonstra que a pretensões do eclesiástico se configurava como uma construção idealizada, haja vista a existência de confrontos entre os hispano-visigodos e demais grupos no espaço ibérico. Portanto, a obra de Isidoro apresenta elementos contraditórios, mas que ganharam uma configuração uníssona com o intuito de fortalecer a monarquia católica hispano-visigoda.
No quarto capítulo, intitulado “Fronteiras da Tolerância e Identidades na Castela de Afonso X”, Aline Dias da Silveira, analisa a questão da tolerância no reinado de Afonso X, na particularidade da Península Ibérica Medieval e a presença na Corte afonsina de homens de saber de diferentes credos. Para além do espaço cortesão, porém, as relações entre cristãos, mouros e judeus não ocorria de forma pacífica. Utilizando do conceito tomasino de Tolerância, relacionada com o pragmatismo, a “tolerância” ao culto de uma religião divergente – ligada a questões fiscais de proteção dos que seguem outra religião – é reconhecida, com os reis cristãos, como herança do governo muçulmano na Península Ibérica. No reinado de Afonso X, mouros e judeus são tutorados e pagam impostos ao rei, sendo considerados como integrantes do reino, porém, em termos sociais, existiram espaços que visavam a distinção de convivência entre as religiões. Por pragmatismo e funcionalidade a tolerância entrelaçava-se com questões políticas que remetiam ao contexto de compromisso pessoal existente no medievo.
Na sequencia encontramos “A Crónica de 1419: Transformação e Identidade”, quinto capítulo do livro, no qual a autora Marcella Lopes Guimarães nos convida a pensar sobre a Crónica de Portugal de 1419, realizando conjecturas entre história e literatura, analisando aspectos relacionados à diferenciação na narrativa desse documento, destacando características ligadas ao português arcaico, assim como a justificação de sua escrita, dentro da própria crônica. Por meio do estudo dos temas contidos na crônica, a autora segue uma metodologia que permite identificar os assuntos mais relevantes da obra. Reconhecendo mudanças na forma narrativa na Crônica de 1419 em comparação com a Crônica de 1344, a autora realiza nas páginas finais do ensaio, uma análise de componentes sintáticos e semânticos, que podem ser equiparadas às encontradas no texto Mimeses de Eric Auerbach, destacando elementos que afirmam o desenvolvimento efetivo da língua romance. Se por objetivo, o gênero cronístico tenciona a legitimação, consagração de autoridade e poder político, assim como a preservação da memória, a narração de uma “nova” história de Portugal, contada pelas vias da Crônica de 1344 requeria uma nova forma de escrita.
No penúltimo capítulo da obra, “A Expansão das Fronteiras da Cristandade no Século XV: Sacralidade e Legitimidade do Projeto Político da Casa de Avis”, Renata Cristina de Sousa Nascimento aborda o imaginário Ibérico de defesa da cristandade frente ao inimigo islâmico, analisando os elementos materiais, simbólicos e narrativos que, relacionados com a sacralidade, auxiliam na construção e consolidação da dinastia de Avis dentro das fronteiras ibéricas. Um dos elementos destacados diz respeito às viagens marítimas e o ideal cruzadístico, que conjectura a ideia de expansão à Reconquista e, consequentemente às Cruzadas, estabelecendo a representabilidade da Guerra Santa frente ao estabelecimento português em África. O episódio da derrota portuguesa na expedição a Tânger, assim como a morte do cativo D. Fernando, o Infante Santo, influencia na construção de uma ideia sacralizada às expedições portuguesas. Assim, a construção póstuma de uma narrativa de cunho propagandístico visando remeter características sacras à monarquia portuguesa tendo como principal personagem o infante mártir – realizada por meio do discurso hagiográfico, assim como a transladação dos restos mortais do infante para o mosteiro da Batalha –, refere-se a outro elemento destacado pela autora na consolidação dessa monarquia. Por fim, a representabilidade do mosteiro da Batalha, visto como uma forma de materialização e afirmação de autoridade e poder da dinastia de Avis frente às fronteiras ibéricas.
O livro termina com o capítulo intitulado “La Literatura Catalana em el Mediterráneo Medieval, Espacios de Influencias e Intercambios Culturales” de Isabel Grifoll. Analisando elementos que demonstram a especificidade da literatura catalã, a autora refere-se a tomada das ilhas Baleares, no século XIII, por Jaime I de Aragão, iniciando uma serie de influencias que refletem na língua e cultura catalã. Com a ocupação do reino de Valencia, Catalunha-Aragão passam a ter de conviver com um excedente populacional muçulmano. Nesse impasse social, cultural e religioso, Jaime I, junto a Ramón de Peñafort, buscaram a realização de missões que intentavam a conversão dos muçulmanos. Ramón Llull, pensador maiorquino, desenvolve um método, assim como uma extensa literatura que tem por objetivo o serviço apostólico, realizando conjecturas teológicas e filosóficas entre as três grandes religiões monoteístas. De caráter pragmático, Llull, com seu pragmatismo, preza pela multiculturalidade, formulando uma característica distinta para a literatura de caráter missionário. No contexto de fronteiras, assim como de convivência de diferentes religiões, a ideia de missão não pode ser desconectada da de Cruzada: ambas almejam imposição cultural através da força, seja ela teórica ou militar.
Diante de tal composição, a obra Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico demonstra as possibilidades de trabalhos que existem entre medievalistas brasileiros e espanhóis em torno de temas que perpassam seus interesses, os quais são suscitados por perspectivas próprias a contemporaneidade. Diante disso, a obra provoca a reflexão acerca da construção do sentimento de nacionalidade – marcado pela união de Estado e nação a partir do século XIX, mas que se mantem presente ainda hoje – e sua relação com a elaboração de identidades regionais no âmbito da medievalidade ibérica. Não menos importante são as abordagens acerca das relações entre cristãos e muçulmanos, assunto que suscita um amplo debate, marcadamente após o evento de 11 de Setembro e as recentes manifestações de 2010 a 2012 no Oriente Médio e Norte da África. Assim, a obra demonstra como as preocupações próprias a esse início do século XXI suscitam a atenção daqueles que se propõem a estudar a História Medieval da Península Ibérica.
Diretamente ligado às questões contemporâneas, os resultados das pesquisas dos autores apresentam novas abordagens sobre as relações entre organizações de âmbito regional e o poder régio em Portugal, Castela e Aragão, apontando novas formas de interpretação acerca de realidades próprias ao espaço ibérico, marcado pela relação entre cristãos e muçulmanos, fator de contribuiu para a criação de fronteiras identitárias, muitas vezes fluidas e dificilmente demarcadas de forma precisa.
Resenhistas
Carlos Eduardo Zlatic – Aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História/UFPR e membros do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos, ambos com atuação na pesquisa relacionada a cultura e poder na Idade Média. E-mail: carloszlatic@hotmail.com
Eliane Veríssimo de Santana – Aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História/UFPR e membros do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos, ambos com atuação na pesquisa relacionada a cultura e poder na Idade Média. E-mail: eliane.verissimo@gmail.com
Referências desta Resenha
FERNANDES, Fátima Regina (Coord.). Identidades e fronteiras no medievo ibérico. Curitiba: Juruá, 2013. Resenha de: ZLATIC, Carlos Eduardo; SANTANA, Eliane Veríssimo de. identidades e fronteiras na Idade Média Ibérica. Revista Mosaico. Goiânia, v. 6, n. 2, p. 231-233, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]