Pensar as múltiplas identidades possíveis ao homem implica refletir sobre a interação conceitual entre identidade, discurso e poder no estudo da formação e da organização social. Nesse quadro de interdependência, verificam-se, ao longo da história, práticas políticas direcionadas à construção de discursos normativos e mantenedores do poder pela edificação de identidades, cujas definições interagem com a distribuição dos espaços sociais e geográficos. Tal diversidade espacial retrata a heterogeneidade da ocupação do solo, demonstrando que essa variável deve ser considerada no labor de arqueólogos e historiadores. Sob essa perspectiva, o livro Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea, organizado por Pedro Paulo Abreu Funari, Charles E. Orsen Jr. e Solange Nunes de Oliveira Schiavetto, fomenta o debate a respeito dos usos das fontes materiais e literárias para o entendimento das ações humanas situadas no passado, revelando descompassos entre escritos e espaços, e estimula o repensar dos modelos teóricos acatados por arqueólogos e historiadores.
A primeira parte do livro, intitulada “Identidades e conflitos”, principia com o capítulo “A mulher aborígine nas Antilhas no início do século XVI”, de Lourdes S. Domingues. A autora tece reflexões sobre os anos de 1492 a 1542, período com escassa documentação primária e, por esse motivo, fonte de polêmica entre os estudiosos. O recorte da autora contempla a época em que a Coroa Espanhola promulgou as Leyes Nuevas, as quais, segundo Domingues, influenciaram sobremaneira o processo de construção das identidades das mulheres aborígines do Caribe.
Em seguida, Sîan Jones, no capítulo “Categorias históricas e a práxis da identidade: a interpretação da etnicidade na arqueologia histórica”, examina o emprego das fontes materiais e literárias nos estudos históricos, enfatizando as distorções existentes entre as interpretações etnográficas dos achados arqueológicos, as quais se mostram, freqüentemente, conformadas ao conteúdo de textos escritos.
O debate continua com o capítulo de Gabino La Rosa Corzo, “Os espaços de resistência escrava em Cuba”, no qual o autor discorre sobre os limites dos documentos literários no que se refere à descrição da vida cotidiana dos escravos, em especial das manifestações contrárias ao sistema colonial escravista – fugas individuais ou coletivas, abortos, suicídios, danificação dos meios de produção etc. – realizadas pelos escravos.
Em “O desafio da raça para a arqueologia histórica americana”, Charles E. Orser Jr. se propõe a analisar as questões de raça e de racismo no período pós-colombiano, com o intuito de expor como os estudos realizados pela Arqueologia da América, em sua maioria, centram-se em aspectos etnográficos e legam a segundo plano, ou mesmo ao esquecimento, o debate sobre a idéia de raça, importante para as análises históricas, pois, conforme o autor, ela nos encaminha para a concepção de uma identidade de grupo.
No capítulo “A questão étnica no discurso arqueológico: afirmação de uma identidade indígena minoritária ou inserção na identidade nacional?”, de Solange Nunes de Oliveira Schiavetto, a autora delineia a identidade étnica dos indígenas brasileiros com base na análise das cerâmicas indígenas encontradas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Amparando-se no conceito de pertencimento cultural, Schiavetto se dedica a identificar os elementos constitutivos do conflito étnico x nacional.
Encerrando a primeira parte do livro, o artigo de Glaydson José da Silva, “A Antigüidade romana e a desconstrução das identidades nacionais”, demonstra a correlação entre a edificação das identidades nacionais européias e a legitimação das diretrizes políticas dos regimes autocráticos, lembrando ainda a influência de tal postura na construção de identidades no Brasil e nos Estados Unidos. Como aponta Glaydson Silva, esse processo culmina na dicotômica definição primitivo x civilizado, disseminada pela historiografia especializada na história greco-romana.
A segunda parte do livro, “Arqueologia Pública”, traz o texto de Pedro Paulo Abreu Funari, Nanci Vieira Oliveira e Elisabete Tamanini, intitulado “Arqueologia para o público leigo no Brasil: três experiências”. Os autores descrevem três estudos sobre a participação do público leigo em escavações brasileiras: o primeiro, sobre o sítio da Serra da Barriga em União dos Palmares, revela como os vestígios indicadores da resistência dos escravos no início do século XVII são trabalhados pelo Movimento Negro local; o segundo apresenta os resultados obtidos pelas escavações realizadas nos sambaquis de Joinville, indicando a importância da participação da comunidade no processo de conservação dos vestígios arqueológicos; por fim, um terceiro estudo relata o caso da interferência e participação, no trabalho arqueológico, de parentes de desaparecidos políticos durante o regime militar, no Rio de Janeiro.
O capítulo escrito por Jorge Eremites de Oliveira, “Por uma arqueologia socialmente engajada: arqueologia pública, universidade pública e cidadania”, trata da função social inerente ao ofício do arqueólogo e critica os profissionais de gabinete, distantes do espaço público.
A última parte do livro, “Arqueologia, discurso e poder”, traz o texto de Lúcio Menezes Ferreira, intitulado “Solo civilizado, chão antropofágico: a arqueologia imperial e os sambaquis”. O autor discorre sobre as estratégias imperiais do Segundo Reinado para a construção de uma identidade nacional e para o tratamento dispensado aos assuntos relativos aos indígenas, classificando e delimitando espaços de atuação segundo critérios estranhos à cultura local.
O capítulo de Fábio Adriano Hering, “Arqueologia e nacionalismo na Europa no século XIX: a Grécia antiga e sua reativação moderna”, trata da reapropriação histórica do passado grego com o intuito de legitimar políticas nacionais, enfocando, particularmente, o caso de Heinrich Schliemann e a política nacionalista alemã.
Tamima Orra Mourad, em “A trajetória do Museu do Índio como fonte para a investigação da inserção social do desenvolvimento e construção do conhecimento nas disciplinas de arqueologia e antropologia”, por meio da análise do acervo do Museu do Índio, escreve sobre a pertinência dos estudos sobre as comunidades indígenas para que se possa conhecer nossa identidade cultural.
Os usos indevidos dos achados arqueológicos para a disseminação de ideologias nacionalistas, evidenciados tanto na sedimentação do modelo nazista como na implementação de políticas públicas na França de Vichy, alicerçados na mútua colaboração entre arqueólogos alemães e franceses, são discutidos por Laurent Olivier em seu capítulo “A arqueologia do 3° Reich e a França: notas para servir ao estudo da ‘banalidade do mal’ em arqueologia”.
Os escritos de Adam Smith – Uma investigação sobre a Natureza e Causas das Riquezas das Nações – recebem a atenção de Thomas C. Paterson em seu capítulo “A especialização do trabalho, a formação do Estado e a reorganização das relações de produção”. A perspectiva do autor é a de compreender o impacto das teorias do ensaísta inglês sobre a relação entre a especialização do trabalho e a formação do Estado no pensamento ocidental, em especial sobre nossas interpretações das sociedades antigas.
Fechando o livro, o capítulo de José Alberione dos Reis, “Das condições de possibilidade da teoria em arqueologia: do implícito e do explícito na arqueologia brasileira”, versa sobre o difícil processo de estabelecimento de teorias que sustentem epistemologicamente as escavações brasileiras e respeitem as especificidades de nossa cultura.
O presente livro nos mostra como os usos e os costumes humanos perpassam os textos literários e o mundo material de forma obtusa, o que suscita a busca constante da interdisciplinaridade para a compreensão de nossa história. A valiosa contribuição dos autores arrolados aparece no debate crítico sobre as abordagens de arqueólogos e historiadores, apontando limitações e desvios em suas interpretações. A contribuição desta obra estende-se ainda à discussão sobre a participação das populações locais na preservação e na interpretação dos achados arqueológicos. As férteis reflexões contidas em Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea reavivam o pensamento platônico segundo o qual “as idéias são a potência do debate” (Parmênides, 135c).
Resenhista
Maria Aparecida de Oliveira Silva – Mestre e doutoranda em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). E-mail: madsilva@usp.br
Referências desta Resenha
FUNARI, Pedro Paulo Abreu; ORSER JUNIOR, Charles E.; SCHIAVETTO, Solange Nunes de Oliveira. Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. Resenha de: SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 257-260, 2005. Acessar publicação original [DR]
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