Constructos sociais estabelecidos no âmbito das relações humanas, as identidades se constituem como elementos que proporcionam diversas percepções a respeito das diferentes maneiras de estar no mundo, viabilizando determinadas formas de reconhecimento e luta. Para além, tomada como pauta por diversos setores no tempo presente, a identidade se manifesta como tema fundamental no debate acadêmico – protagonizando, por vezes, uma miríade de investigações que se materializam por meio dos diversos trabalhos que endossam sua atualidade.
É nesse sentido, portanto, que o livro Identidades se corporifica. Concebida como resultado imediato de um seminário internacional homônimo – sediado, em 2012, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e parte integrante de um projeto amplo titulado como Conferências USP –, a obra dispõe como organizadores os docentes Brasilio Sallum Jr. (FEUSP); Lilia Moritz Schwarcz (FFLCH-USP); Diana Vidal (FEUSP) e Afrânio Catani (FEUSP) e toma como objetivo apresentar as discussões promovidas nas mobilizações do conceito em questão – desvelando, de maneira minuciosa, uma revisão de seus múltiplos significados e usos.
Decerto, este exame refinado se materializa por meio de dez artigos que, por sua vez, se distribuem em cinco eixos temáticos, compondo cada qual uma abordagem distinta a respeito da identidade – a saber: A questão da identidade; Etnia; Gênero; Nação e Classe.
Isto posto, o primeiro artigo, intitulado Identidade como problema, do filósofo Kwame Anthony Appiah, traz à tona uma breve, intensa e significativa teorização acerca da natureza das identidades. Discorrendo, dentre outras coisas, a respeito da atualidade do tema, o autor defende um modo específico de se enxergar os discursos identitários – depositários de rótulos, normas e subjetividades que fundamentam o fato de serem classificadas como socialmente construídas e que integram a vida ética estabelecida. Além disso, justificando seu constante uso no desencadear das relações sociais – pelo menos, desde os anos de 1960 –, chama atenção à capacidade que as identidades possuem na construção de nossas vidas, visto que viabilizam – principalmente às parcelas sociais historicamente marginalizadas – a luta pela legitimação de seus direitos como cidadãos.
No mesmo sentido, o segundo texto Identidades problemáticas, de Gabriel Cohn, evidencia também a pauta identitária como forma de reconhecimento e luta. Apreendida como um conceito múltiplo, capaz de sustentar as interações humanas ao longo do tempo, as identidades se comportam, para o autor, como importantes dimensões da vida humana que se constroem sempre contra alguém. Traçando dois momentos históricos distintos – cada qual externando compreensões ímpares em relação à questão da identidade –, o sociólogo identifica nas décadas de 20 e 30 uma tendência essencialista – pautada no entendimento de uma identidade “[…] inteiriça e sem fissuras, como imperativo cultural, social e político, em nome do povo e da nação […]”2 –, ao passo que o período do pós-guerra assiste um ressurgimento do tema – ressignificado à luz da redemocratização e dos direitos ansiados pelos movimentos sociais.
Contudo, assim como Appiah o faz em suas considerações, Cohn destaca aquilo que ele considera um problema que, por vezes, se abate sobre esta situação: a banalização dos discursos identitários na luta pela política de reconhecimento. De acordo com ele, avançar demais nas pautas reivindicatórias poderia desencadear um caráter opressivo – portanto, não libertador – que certas exigências socialmente determinadas lograriam a assumir – tornando a identidade algo meramente tático nas estratégias de legitimação do poder.
Nesse bojo, o autor chama atenção à necessidade de compreender as identidades sob o ponto de vista de sua natureza “centrada” ou “descentrada” – esta, assinalada como única alternativa a instituição de novos padrões que visariam o avanço do convívio democrático, visto que estabeleceria uma relação não competitiva ou antagonista entre sujeitos identitários diferentes. Assim, se efetivaria aquilo que denominara como “demandas cruzadas”, nas quais seriam possíveis situações como “[…] brancos mobilizando-se por negros e estes por brancos, homens por mulheres e estas por homens, afrodescendentes por indígenas, e assim por diante […]”3 – o que, em certa medida, parece desconsiderar a realidade histórica e violentamente construída nas relações sociais.
Decerto, a história pauta-se como um elemento de grande significância nas tentativas de compreensão dos usos das identidades – o que se torna muito bem declarado no terceiro artigo Identidade étnica, de Manuela Carneiro da Cunha. Acentuando a natureza contrastiva da etnicidade, a antropóloga denota, com perícia, o fato de a história ser invocada de maneira primordial na constituição de uma identidade étnica que, por sua vez, teria, de acordo com o senso comum, se desenvolvido em contraposição à ideia do racial. Contudo, refutando tal premissa e pensando na aplicabilidade destas reflexões, a autora se inclina sobre o caso brasileiro, mostrando como a perspectiva a-histórica relativa à questão racial e cultural apazigua e oculta as violências vividas pelas populações negras e indígenas.
Posicionando-se com maior desenvoltura a respeito destes últimos, pondera como as tentativas de enquadrá-los a partir de um enfoque marcado por “sinais culturais tradicionais” – como caçar com arco e flecha ou falar sua língua ancestral etc – eclipsa os deslocamentos forçados; a missionização, o recrutamento laboral; as políticas oficiais de miscigenação e justifica, por exemplo, a expropriação de seus territórios. Alegando que essa descrição “culturalista” abole a história, conclui que a definição mais adequada seria aquela que “[…] reintroduz a história tanto como processo quanto como memória. Ou seja, as sociedades indígenas são aquelas que conservam a memória de um elo com sociedades pré-colombianas. E índio é quem elas dizem quem é”.4
Mas, se as questões identitárias indígenas se tornam uma preocupação no referido debate, no texto seguinte, de Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, a identidade negra é quem se torna protagonista. Intitulado como Identidades negras no Brasil: ideologias e retóricas, o artigo se propõe traçar como as questões raciais foram empregadas pelos projetos de construção da identidade e cultura nacional, sem perder de vista a apropriação e ressignificação das teorias racialistas pelos sujeitos negros como forma de reconhecimento e luta por sua cidadania.
Apologético da ideia de que os negros brasileiros são mais bem caracterizados como uma raça ou como um movimento social do que como um grupo étnico, o sociólogo argumenta que a racialização, historicamente consolidada em nosso país, alimentou fundamentalmente a constituição das autoidentidades – que, segundo ele, construíram ideais políticos como “[…] redistribuição econômica, pertença nacional e igualdade social”.5
Discorrendo sobre o fato de o Estado brasileiro empreender, ao longo da história, determinados projetos políticos voltados à igualdade entre brancos e negros a partir das lógicas da mestiçagem ou da fraternidade entre as raças, o autor identifica a presença de três ideologias raciais desenvolvidas, cada qual, numa conjuntura específica da história brasileira – sendo elas: o branqueamento, que teve seu auge em finais do século XIX e início do XX; o mulatismo, marcado profundamente a partir dos anos 30 e que se caracterizaria como uma radicalização da vertente positiva do branqueamento, ao enaltecer a figura do mestiço/mulato; e, por fim, a negritude, que se desencadeia a partir dos anos 70 com vistas a desconstruir os princípios da mestiçagem, estruturando a lógica de que o país seria, de um modo geral, formado por negros – ou não brancos – e rompendo com certas noções enraizadas no imaginário social como “moreno” ou “mulato”. Concluindo com propriedade, o autor nota que a partir desta última vertente teórica, a afirmação do coletivo racial acaba servindo para aprofundar a igualdade entre os cidadãos.
Mas, se a ideia de coletividade torna-se indispensável às suas reflexões, o mesmo se percebe no quinto trabalho Gênero e identidade: mapeando questões, da antropóloga Veena Das. Compreendendo que a identidade apresenta obrigatoriamente um duplo aspecto – coletivo e individual –, a autora atenta ao fato de como o indivíduo é absorvido em uma coletividade maior e, ao mesmo tempo, de que maneira isso impacta na formação do seu próprio ‘eu’. Tomando como lugar de fala o campo das identidades de gênero, ela tece, detalhadamente, as relações entre contrato social, contrato sexual e ordem social – percebendo como as histórias fundacionais de um Estado criam discursos normativos e normalizantes na formação de um imaginário alusivo a homens e mulheres, impactando nas formas de pertença e prática e regulando suas sexualidades.
Seguindo na mesma direção, o sexto artigo Gênero, violência e os limites da sexualidade, escrito por Maria Filomena Gregori, também se propõe a tratar deste imaginário normativo a respeito do masculino e do feminino, mas estabelecendo uma significativa relação entre as identidades de gênero, a sexualidade e a violência. Percebendo de que forma as mudanças de paradigma, assistidas a partir da década de 1960, afetaram os debates com relação à violência e gênero, a antropóloga se dispõe a articular tais questões com as discussões acerca do exercício do erotismo – aproximando-se às práticas sadomasoquistas. Nesse sentido, estruturando um estudo pormenorizado que evidencia o sadomasoquismo como uma prática que coloca em xeque as configurações normativas socialmente legitimadas entre os gêneros, ela problematiza noções e conceitos de grande importância como poder; transgressões; consentimento; abuso; usos do corpo; dentre outros.
E se o corpo é tomado como elemento indispensável às compreensões das identidades de gênero, o trabalho seguinte, de Federico Besserer, evidencia que a questão identitária nacional também pretende suas apropriações. Assim, Identidade nacional, identificação e corpo nos mostra como o corpo carrega consigo – de modo superficial ou profundo – elementos de sua nacionalidade. Destacando a reciprocidade entre as questões raciais e culturais – inscritas na “corporalidade” –, o antropólogo desvela de maneira hábil a existência, no tempo presente, de um perverso paralelismo entre a “xenofobia étnica” e o “racismo biologicista”, que constitui modelos de representação do nacional. Inclinando-se às práticas migratórias, ele discorre, dentre outras coisas, sobre as tecnologias de identificação (simbólicas; materiais e sociais) que viabilizam e institucionalizam a leitura dos corpos, classificando os sujeitos e legitimando técnicas culturais de discriminação.
Em vista disso, deve-se ressaltar também que diante tais reflexões, se tornam claros os esforços empreendidos na suposta defesa dos interesses nacionais – que preservam a ilusória integridade da Nação. Isso, por sua vez, pauta-se como uma das dimensões apontadas no oitavo artigo contemplado: A atualidade da Nação, de Ruben George Oliven. Esboçando importantes considerações acerca do nacionalismo, o autor enfatiza que, mais do que nunca, esta dimensão se constitui como fator preponderante às relações humanas. Expondo, claramente, os elementos que constituem os projetos ufanistas do patriotismo, ele discute a relevância dos símbolos nacionais; a criação dos mitos fundacionais; o papel das tradições inventadas na legitimação das “comunidades imaginadas”; a função da memória; bem como as disputas que orquestram tais propostas – situando, aqui, os ressentimentos que se consolidam diante estas circunstâncias.
Contudo, para além da questão nacional, o ressentimento se constitui também como componente de outras dimensões identitárias – configurando, por vezes, uma situação de desidentificação. Nessa lógica, o nono texto Classe: desidentificação, selves singulares e valor da pessoa, de Beverly Skeggs, tem como objetivo mostrar como a identidade se constitui como um termo “escorregadio”, associado à visibilidade e ao valor dos indivíduos. Para tal, a autora investiga a recusa, pelas mulheres britânicas, em se reconhecerem como parte da classe trabalhadora. Chamando a atenção aos discursos cultural e socialmente construídos acerca do feminino no operariado, ela evidencia uma perspectiva negativa a respeito das trabalhadoras femininas – o que justificaria essa desidentificação. A partir disso, esquematizando um estudo preciso, uma miríade de problematizações se constrói: as historicidades que envolvem o conceito de classe; o desenvolvimento do individualismo e da interioridade nos sujeitos; e a contínua busca por reconhecimento – e, portanto, valor (manifesto por capitais econômicos, culturais, simbólicos e sociais).
No bojo das discussões referentes a relação entre classe e identidade, o décimo artigo, escrito por Claude Dubar e intitulado como Classe e identidade: substituição ou mistura?, traz à tona o esforço do autor em esclarecer os usos que faz de ambas as conceituações, defendendo com propriedade três hipóteses que justificam suas colocações: primeira, a “classe”, em sua acepção marxista, assistira um profundo declínio; segunda, o conceito de identidade jamais seria responsável por tal colapso e muito menos se oporia à noção de classe-; e terceira, existem profícuas possibilidades de conexões mútuas – posto que as identidades não deixam de ter vínculo, parcialmente estreito, com as diferentes posições de classe.
Transcorrida a leitura, pode-se dizer que o livro cumpre com a promessa pretendida por seus organizadores, visto que desvela possibilidades de problematização que enriquece o debate a respeito das questões identitárias. Longe de esgotar o assunto, a obra oferece ao leitor a oportunidade de (re)pensar o tema em suas múltiplas facetas e, ao mesmo tempo, facultar alternativas diretivas úteis ao seu convívio social. Portanto, pode-se concluir que a publicação promove uma significativa contribuição às compreensões da atualidade e das dimensões de um conceito polissêmico
Notas
2 COHN, Gabriel. Identidades problemáticas. In: SALLUM Jr., Brasilio et al. (Org.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018, p. 34.
3 COHN, Gabriel. Identidades problemáticas. In: SALLUM Jr., Brasilio et al. (Org.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018, p. 38.
4 CUNHA, Manuela Carneiro da. Identidade étnica. In: SALLUM Jr., Brasilio et al. (Org.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018, p. 48.
5 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Identidades negras no Brasil: ideologias e retóricas. In: SALLUM Jr., Brasilio et al. (Org.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018, p. 50.
Referências
COHN, Gabriel. Identidades problemáticas. In: SALLUM Jr., Brasilio et al. (Org.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018. p. 33-42.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Identidade étnica. In: SALLUM Jr., Brasilio et al. (Org.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018. p. 43-48.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Identidades negras no Brasil: ideologias e retóricas. In: SALLUM Jr., Brasilio et al. (Org.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018. p. 46-66.
Resenhista
Felipe Augusto dos Santos Vaz – Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). http://lattes.cnpq.br/7353883786250931
Referências desta Resenha
SALLUM JUNIOR, Brasilio; SCHWARCZ, Lilia Moritz; VIDAL, Diana; CATANI, Afrânio. (Orgs.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018. Resenha de: VAZ, Felipe Augusto dos Santos. Identidades: dimensões e atualidade de um conceito polissêmico. Revista Hydra. São Paulo, v.4, n.7, p. 393- 400, dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
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