Classificar faz parte dos naturais anseios humanos. Em seu afã de entender a organização dos distintos mundos que compõem o mundo, o homem classifica animais, plantas, rochas. Classifica geoformas, solos e ambientes.
Com as paisagens não é diferente. Em seu esforço de definir – ou descobrir – como as paisagens podem ser distinguidas por algum perfil ou algum conjunto de características, em geral artificialmente estabelecido, ele busca critérios que possam trazer alguma coerência sistêmica. Na dinâmica que rege as correntes científicas, há propostas em evolução permanente para se poder definir o que é uma paisagem e o que é a outra! E, lógico, com o desenvolvimento científico-tecnológico, tais sistemas vão se tornando cada vez mais sofisticados. Existem formas antes impensáveis de se definir a taxonomia de uma determinada paisagem. Até mesmo a partir dos sons, bióticos e abióticos, que delas emanam. Sim, as paisagens têm uma assinatura sonora que as individualiza! Para nosso deleite, os novos métodos científicos não têm sido excludentes. Hoje, para um levantamento paisagístico se usa um drone altamente sofisticado, mas que pode ser considerado como uma câmera fotográfica convencional, só que voadora.
Entre as técnicas de registro científico mais tradicionais, destacam-se a fotografia e o desenho. Este último é ainda largamente usado em ciências porque enseja técnicas de destaque em que as características de interesse podem ser realçadas de forma inequivocamente artísticas, porque pressupõem a inclusão das subjetividades do autor. Como toda forma de expressão artística, o desenho científico tem especificidades, a começar pela demanda de uma apurada capacidade técnica que coloca, na mesma tela, necessidades de registro preciso e, ao mesmo tempo, a índole do criador.
Muitos artistas limitam deliberadamente os meios de se expressar, não por uma atitude reducionista, mas porque se deixam atrair pela ideia de que a essência é suficiente para uma resposta significante. Essa ideia estrutural é explicitada na asserção de Matisse, ao manifestar sua célebre ambição de “dizer o máximo com o mínimo”.
Dois outros artistas também puseram em prática esta limitação intencional: Piet Mondrian, quando elege a ortogonalidade como estrutura única de composição, refletindo para a tela a artificialidade das paisagens dos Países Baixos. E Victor Vassarely, com suas progressões poligonais em que efeitos volumétricos e de perspectiva são construídos a partir apenas de círculos e quadrados.
A ilustração científica é arte das mais difíceis porque se enquadra num tipo de produção em que, ao escolher esta forma, o artista já se impõe uma enorme limitação em suas possibilidades de expressão, principalmente aquela ditada pela necessidade de sua obra ser claramente dotada do mencionado caráter documental. É claro que é possível esta convivência entre ciência e arte, o que já está sobejamente demonstrado pelos diversos artistas-documentadores que, ao longo de nossa breve história, registraram ambientes, seres e coisas das tantas e tão distintas fisionomias brasileiras.
Nesta iconografia, Orlando Graeff deixa patente e de forma definitiva, tal intento. Na mais pura tradição das Tabulæ Phisyognomicæ da Flora Brasiliensis de Von Martius ou dos preciosos registros de Percy Lau e de Margareth Mee, ele pertence a uma espécie sob ameaça de extinção e reúne em seus trabalhos as qualidades necessárias aos objetivos da ilustração científica, que são, em última análise, a conexão entre a busca da expressividade e a necessidade do rigor, entre a composição em sua acepção mais artística e a precisão do registro, entre a aventura da criação livre de regras e fórmulas e a indubitabilidade da verdade científica.
Não se trata apenas da contemplação de belas cenas da natureza brasileira. O leitor fará um passeio pelas mais distintas fitofisionomias do Brasil. Terá uma noção mais próxima do que são nossos biomas, quais as sutilezas que levam os habitantes locais a identificar diferenças que batiza com nomes sugestivos, tais como campos de cerrado ou veredas de buritis, por exemplo. E que a ciência reconhece como distinções válidas, embora imperceptíveis pelos menos iniciados. Ao mesmo tempo, pela ampla cultura florística do autor-artista, saberá da ocorrência de espécies vicariantes, aquelas separadas na filogenia apenas por diferenciações dos respectivos habitats. Poderá entender também as variações na composição de plantas de campos rupestres em afloramentos nos cerrados ou nas caatingas. Ou na flora das matas ciliares destes dois biomas.
Cada ilustração é acompanhada por uma nota explicativa, do próprio autor, que inclui desde a gênese da paisagem até as peculiaridades de flora e fauna, de rochas e águas, dos solos e da geomorfologia, o que enriquece as possibilidades de percepção destes complexos fatos naturais, porque associados à via agradável do desenho de ilustração.
Orlando Graeff garante para o século 21, o que predecessores de uma longa e tradicional estirpe registraram nos anteriores: Alexandre Rodrigues Ferreira, no século 18, Karl F. P. von Martius no 19, Percy Lau e Margareth Mee, no 20.
E esse artista-cientista logra tal propósito porque soube reunir, em seu cadinho, amplo conhecimento das paisagens brasileiras com a relevância inquestionável de sua veia artística.
Nota
NE – o presente texto é uma adaptação do texto de apresentação do livro Iconografia da paisagem brasileira, de Orlando Graeff (Nau, 2020).
Resenhista
José Tabacow – Arquiteto (UFRJ, 1968), especialista em Ecologia e Recursos Naturais (UFES, 1991) e doutor em Geografia (UFRJ, 2002). Foi professor de paisagismo de graduação e pós-graduação em diversos cursos de arquitetura e urbanismo, atualmente é sócio-diretor de José Tabacow Arquitetura da Paisagem e Consultoria Ambiental. Foi consultor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.
Referências desta Resenha
GRAEFF, Orlando. Iconografia da paisagem brasileira. Rio de Janeiro: Nau, 2020. Resenha de: TABACOW, José. Uma nova iconografia da paisagem brasileira. Ilustrações preciosas revelam quadros de nossa natureza. Resenha Online. São Paulo, n. 226, nov. 2020. Acessar publicação original [DR]
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