GOMES, Rogério Miranda. Humanização e Desumanização no Trabalho em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 332p. Resenha de: FRANCO, Túlio Batista. A humanização do trabalho em saúde sob análise. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.3, set./dez. 2018.
Humanização, desumanização e o trabalho em saúde, temas do livro de Rogério Miranda Gomes, publicado pela Editora Fiocruz, em 2017, traz um instigante debate sobre o rico e espetacular universo do trabalho e cuidado em saúde. O tema é complexo e pode ser discutido a partir de inúmeras perspectivas. O autor toma para si o desafio de imergir no tema da humanização do trabalho, permeando a questão da alienação e embrenhando-se no que se chama desumanização.
Na revisão bibliográfica que perpassa os temas dos três capítulos iniciais, são chamados autores de diversas abordagens nos campos das ciências da saúde, sociais e humanas. Há nesse contexto uma competente e rica discussão, onde desfilam marxistas, psicanalistas, autores do campo da saúde coletiva de diversos matizes, compondo um amálgama que se fixa no tempo e espaço do estudo. É com esta diversidade que o autor monta sua caixa de ferramentas conceitual, e com ela se lança à conquista do seu objeto, o trabalho em saúde, na perspectiva analítica da humanização e desumanização.
Os muitos autores são tratados na obra como uma rica diversidade, que compõe o cenário e o torna rico, potente, capaz de olhar para a pesquisa e jogar luz sobre os enigmas que guardam o processo de trabalho e sua íntima relação com a humanização na saúde. Logo no início do livro, o autor compartilha questões instigantes: Enfim, o que seria humanizar o trabalho e as práticas em saúde? E o desumanizar, viria de onde? A aparente oposição entre estes dois conceitos é instigante pelo fato de que eles têm a mesma origem, o humano.
Convivemos com a ideia de que ‘humanização’ tem origem no humano, o que a qualifica; mas, ao mesmo tempo, seu contrário, a ‘desumanização’, é também uma produção humana. Ambos são produto e resultado de práticas desenvolvidas pelos trabalhadores da saúde, onde o principal dispositivo é o trabalho para a produção do cuidado. O trabalho é o propulsor desta produção, a energia que proporciona o manejo de instrumentos, conhecimento e as relações, para que, ao final, se tenha como produto o cuidado realizado.
Os conceitos que alimentam a perspectiva teórica do autor nos primeiros capítulos vão sendo esquadrinhados e tecidos ao mesmo tempo em que atravessam o plano concreto do trabalho em saúde, fornecido pelo estudo de campo. O livro é extremamente rico em material empírico, pacientemente produzido e processado por Rogério Miranda, e este conteúdo narrativo está detalhadamente descrito e discutido nos capítulos 4, 5 e 6. Sob diferentes e potentes categorias analíticas, cada fragmento de histórias de vida, ricas em figuras, afetos, cenários, vai merecer um tratamento singular e destacado na discussão proporcionada pelo autor. Usa os referenciais teóricos já suficientemente delineados, e com eles vai cotejando de diálogos, comentários e análises, as ricas narrativas do cotidiano dos trabalhadores, na sua atividade produtiva, nos cenários de práticas em saúde. Aqui a pesquisa ganha textura, cor, forma, a vitalidade necessária, para apresentar de forma direta, o ‘olho no olho’, as alegrias e tristezas do ato de cuidar, trabalhar, conviver, de quem busca, acima de qualquer questão, exercer com presteza o cuidado em saúde.
Por mais que a literatura enriqueça e instrumentalize o autor, o material empírico tem a magia e vitalidade do real, social e afetivo mundo do trabalho e cuidado em saúde. Aqui a realidade é tão forte, complexa, desafiante, e as situações vividas tão singulares, que não há espaço para o instituto da verdade absoluta. Impõe-se a necessidade de aprender com a própria experiência, e assim ser capaz de fazer o “resgate do momento clínico como espaço de criação, de produção de saberes” ( Gomes, 2017 , p. 142). Apenas para ilustrar, vale a pena ler as narrativas dos médicos que emprestam suas experiências para a pesquisa. Textos leves e fortes, como é a realidade na saúde; beleza singular no gesto, e ao mesmo tempo muito vivos. Por exemplo, Marina, infectologista, demonstra toda sua tolerância diante da negativa do usuário em não se tratar. O gesto delicado e gentil de esperar o tempo do paciente: “Eu acho que a pessoa tem que estar pronta para tratar, então eu sou tolerante, eu procuro deixar a pessoa chegar no seu tempo e alguns eu até faço profilaxia para infecção oportunista enquanto resolve se tratava ou não (…)” ( Gomes, 2017 , p. 142).
É com depoimentos fortes assim que o autor segue decifrando o dia a dia do trabalho em saúde, e revela que o cotidiano não é feito apenas do precário, sofrido, carente. Há muita vida pulsando, muita realização e descoberta, que revela o quanto a formação médica continua nos cenários de práticas. Marina tem na sua narrativa a demonstração da potência do cotidiano em produzir uma autoanálise e, ao mesmo tempo, um autoaprendizado. Isso é rico, forte e bonito. Este é o trabalho em saúde.
No capítulo 5, o autor enfrenta o tema das tecnologias de trabalho em saúde, tomando como base analítica as tecnologias de trabalho mediadas pelo trabalhador, o agente, que opera os vários instrumentos no seu processo de trabalho. A questão importante que vem à tona neste debate diz respeito à predominância ou centralidade do trabalho morto, aquele que está inscrito nos instrumentos, que subsume o trabalho vivo, o trabalho no exato momento da sua atividade produtiva ( Merhy, 2002 ; Franco e Merhy, 2013 ). O trabalhador, embora opere um trabalho vivo em ato no seu processo de trabalho, é fortemente capturado pelos instrumentos, a tecnologia dura, representada não apenas pelas máquinas, mas insumos e medicamentos. Este processo acontece por um forte agenciamento do mercado que opera no campo da saúde, e um processo de subjetivação presente entre trabalhadores e usuários, que associam o cuidado ao consumo de exames e fármacos. Neste cotidiano, médicos prescrevem sem necessidade técnica verificada, apenas para suprir a vontade do usuário: “Doutor, eu quero fazer todos os exames que eu tenho direito, tudo!”, conforme narrativa do médico Antônio. ( Gomes, 2017 , p. 194).
Essa dura realidade, difícil de ser enfrentada porque alimentada cotidianamente por dispositivos midiáticos, se repete para os medicamentos. Diversos meios são utilizados na sua apresentação, formulação de versões similares, propaganda, para aumentar consumo e margens de lucro dos fornecedores. Todas estas questões que habitam o mundo do trabalho, e muitas vezes não são visíveis, vêm à luz neste livro, e ganham força com as narrativas que lhes dão mais vida. Rogério Miranda dá visibilidade a estas questões, mostrando o quanto o campo do trabalho e cuidado em saúde é atravessado de muitos interesses, que se materializam em ações práticas, de alta repercussão no cotidiano.
Seguindo na análise empírica da pesquisa, o autor trata do encontro, um conceito importante para a compreensão do trabalho em saúde do ponto de vista da sua micropolítica. Este tema ganha centralidade por óbvio porque todo trabalho em saúde se dá com base no encontro, entre o trabalhador e o usuário, e o cuidado se produz na interseção entre eles. O encontro revela muito sobre a qualidade do cuidado, ele põe em análise a relação entre os envolvidos com o cuidado, o modo de acolher, o sentido que o trabalhador dá ao usuário, o valor à vida, o importar-se com o sofrimento alheio, a abordagem à fragilidade do outro. Situações onde o trabalho é o grande dispositivo do cuidado.
O livro nos revela, sem o citar explicitamente, muitos aspectos da micropolítica do trabalho, especialmente pelas narrativas, a discussão que estas proporcionam, os espaços de escuta, fala, acolhimento, na relação entre os trabalhadores e destes com os usuários.
A pesquisa, ao focar no cotidiano, releva ao mesmo tempo o espaço criativo, já citado aqui, o precário pela queixa dos trabalhadores: a falta de tempo, o trabalho apressado, a fila. “O vínculo pessoal, aquele vínculo amistoso, quase que de família, esse já desapareceu. Ainda peguei boa parte, um tempo dessa prática, que hoje praticamente desapareceu”, nos diz Luiz, clínico geral ( Gomes, 2017 , p. 230). A narrativa soa até saudosista, impressiona pela vontade de que fosse diferente, mas há uma resignação à realidade que se impõe, como a formação acadêmica, e o processo de trabalho excessivamente prescritivo, produtivista.
À boa análise e extrema riqueza de narrativas que ilustram as discussões que são mantidas no livro, o autor nas suas considerações finais se autoriza a reflexões das quais é possível extrair consequências diretas do estudo realizado. Em seis itens que propõem diretrizes para a organização dos serviços de saúde e processos de trabalho, são ofertadas possibilidades aos gestores, estudiosos, trabalhadores, para suas reflexões e ações.
Humanização e Desumanização no Trabalho em Saúde , de Rogério Miranda Gomes, é uma obra completa, com princípio, meio e fim, sustentada por volumoso e substancial referencial teórico, enriquecida por narrativas, tem a vocação de vida longa, e é uma boa referência aos estudiosos, e aos que trabalham efetivamente em serviços de saúde.
Referências
FRANCO , Túlio B. ; Merhy , Emerson E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde . São Paulo : Hucitec , 2013 . [ Links ]
GOMES , Rogério M. Humanização e desumanização no trabalho em saúde . Rio de Janeiro : Editora Fiocruz , 2017 . [ Links ]
MERHY , Emerson E. Saúde: cartografia do trabalho vivo . São Paulo : Hucitec , 2002 . [ Links ]
Túlio Batista Franco – Universidade Federal Fluminense , Instituto de Saúde da Comunidade , Centro de Ciências Médicas , Niterói , Rio de Janeiro , RJ. E-mail: tuliofranco@gmail.com Brasil
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