O presente dossiê teve como propósito disseminar diferentes experiências, práticas e abordagens sobre o Ensino de História em suas relações com as Humanidades Digitais. Uma busca nas principais plataformas permite concluir que esta última expressão tem ganhado espaço nos debates do campo nos últimos anos, conquanto outras opções terminológicas (TIC’s, TDIC’s, NTE, ODA’s, História Digital etc.) por vezes ocultem produtivos diálogos ou até mesmo propostas que se dirigem para direções opostas.
Dito isso, vale alertar que, ao optar por este ou aquele em suas reflexões, os(as) autores(as) nem sempre conferem a historicidade do termo, o que formataria uma crítica de seus propósitos de criação e uso. Consequentemente, iniciativas ingênuas e bem intencionadas podem ser usadas (e não raro são) em projetos educacionais e/ou políticos que se afastam das intenções originais de seus criadores i.
Assim, expomos uma das razões da escolha por “Humanidades Digitais”, posto que ele pressupõe a adoção de recursos digitais para ampliar, criar e possibilitar abordagens teóricas e metodológicas da Humanística tradicional. Simultaneamente, este campo ainda se preocupa com o impacto dos recursos digitais em nossas vidas, seja no meio acadêmico, seja no cotidiano ii
De maneira complementar, reforçamos nossa preocupação com os potenciais abusos ao considerar as dimensões pós/decoloniais. Na contramão tanto de uma postura tecnofóbica iii, quanto daquela que alimenta exclusões e marginalizações digitais iv, este dossiê tentou humildemente estimular que diferentes pesquisadores apresentassem suas formas de lidar com o digital considerando as realidades vividas na esfera educacional – frequentemente duras. Em suma, é preciso refletir sobre as condições materiais, tecnológicas e as possibilidades de reprodução de propostas em um universo escolar tão diverso e desigual quanto o brasileiro.
Ademais, como exposto outrora, as tecnologias digitais implicam em novas formas e práticas culturais, econômicas e culturais, que variam conforme contextos específicos e possibilidades de acesso e uso. Um excelente exemplo são as redes sociais, graças ao seu absurdo alcance e sua incrível capacidade de disseminação de informações verídicas, inverídicas ou, de maneira paradoxal, que flutuam entre as duas (meias verdades/meias mentiras) v.
Nascem assim novas formas de pensar, agir e narrar, que disseminam novos espaços discursivos, diferentes alcances e fluidos(as) agentes/agências. Ato contínuo, elas entram em choque deliberado ou sub-reptício com suas congêneres “ultrapassadas”, “fora de moda” ou desligadas do mundo digital. Portanto, seu caráter efêmero e a sucessão velocíssima de informações recorrentemente impede o adequado procedimento de análise e reflexão, propiciando manutenções, substituições ou a constituição de instáveis “campos médios” vi.
Naturalmente, nessas redes de laços complexos e efêmeros, as relações de poder ainda se fazem sentir e nem sempre dão voz e visibilidade àqueles que se encontram nas margens, nas periferias, nos “vazios” ou “silêncios”. E é nesta seara que as Humanidades Digitais pós/decoloniais se inserem: trata-se de uma espécie de subversão, uma negação do uso massificado, homogeneizador e solapador dos dissonantes. Deste modo, os recursos digitais são virados do avesso, para que suas ambivalentes qualidades sejam usadas em benefício desses grupos e por eles.
Por conseguinte, a identificação dos “vazios” e “silêncios” parte muitas vezes do ambiente escolar, sobretudo das periferias, dos grupos marginalizados, dos interiores menos conhecidos e reconhecidos, que recorrem aos usos tecnopopulares das ferramentas digitaisvii . Deste modo, o postulado das Humanidades Digitais pós/decoloniais requer que a identificação crítica dos problemas e que as soluções sejam encontradas, construídas e munidas por eles conforme seus próprios horizontes de acesso, de uso e de disseminação para contemplar seus efetivos princípios.
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Ao avançar para os textos que compõem o dossiê, notamos um rico conjunto de diagnósticos e propostas que são consonantes com as ideias supramencionadas. Em “Ensino de História em tempos de pandemia: percepções e narrativas de estudantes da Educação Básica de Goiás, Brasil”, Maria da Conceição Silva e Cristiano Nicolini demonstraram quais as percepções estudantis acerca das suspensões das aulas presenciais, em especial no componente curricular de História. O mapeamento em curso tentou produzir um arcabouço teórico e metodológico para identificar impressões, angústias e dúvidas na atual conjuntura sanitária.
Doutra feita, o texto de Osvaldo Rodrigues Júnior abarcou a didática da história presente nas narrativas históricas no Youtube Edu, a saber, uma iniciativa da Google em parceria com a Fundação Lemann. Para corroborar com tais propósitos, o artigo desnudou os desenvolvimentos de consciências históricas tradicional e crítica em dois canais da referida plataforma de streaming, além de acentuar a necessidade de investigação de seus impactos na cultura escolar.
Em “Tecnologias digitais, formação e ensino: uma análise dos PPCs de Licenciatura em História no Estado de Minas Gerais”, Coelho, Silva e Silva versam sobre como as TDIC’s foram tratadas em diferentes Projetos Pedagógicos de Cursos das universidades federais mineiras, problematizando o conceito de tecnologias digitais e suas inserções na formação docente. De modo geral, eles identificaram uma tímida inserção das TDIC’s nas grades e componentes curriculares, assim como de ausências de referências que trabalham com a Filosofia da Tecnologia, o que possivelmente impacta a formação quanto ao papel da tecnologia e das mídias digitais na sociedade contemporânea.
Por sua vez, Lukas Gabriel Grzybowski acenou para o uso de jogos digitais no ato de Ensinar história na Educação Básica em “O Ensino de História na Era Digital: os games para além da gamificação”. A reflexão foi dividida em três partes, mesclando os pressupostos teóricos, com especial apreço pela historiografia alemã, além do balanço dos game studies e as experiências em sala de aula empreendidas pelo professor.
Outra contribuição digna de nota é “Borges e o arquivo infinito: tempo, memória e escrita da história na era digital”, de Marcelo Fidelis Kockel. Em um arguto, maduro e profundo mergulho, o autor ofereceu um bom horizonte teórico para o trabalho em Humanidades Digitais, articulando de modo primário, delicado e propositivo o pensamento de Borges para dar conta do “fractal intertextual” representado pela Web; e, em segundo plano, para dar conta de seu objetivo, Kockel ainda estabeleceu diálogos com autores como Barthes, Deleuze e Guattari.
Por fim, como complemento ao dossiê, William Bonete assina o artigo “O conceito de identidade em perspectiva: as contribuições de Jörn Rüsen, Claude Dubar e Stuart Hall para a pesquisa sobre a formação de professores de História”. Naturalmente, este texto partiu do conceito de identidade para propor vias que contribuam na formação de professores, mas sem abdicar a imersão em searas complementares dos processos subjetivos de construção identitária, que envolvem adjetivações, “representações” e, no caso docente, a própria identidade profissional.
À guisa de conclusão, consideramos que as reflexões aqui coligidas tem grande potencial de contribuir com o avanço do campo, em especial nas ricas interseções possíveis com as pesquisas em História e em Ensino de História. Assim, estudantes, jovens pesquisadores e professores podem recorrer aos textos supramencionados como uma espécie de “guia” ou “ponto de partida”, considerando as rica variação de propostas teóricas, metodológicas e práticas.
Notas
i BIRRO, R.M.; GRZYBOWSKI, L.G. História Medieval, Internet e Tecnologias na formação de professores. In: VIANNA, L.J. (Org.). A História Medieval entre a formação de professores e o Ensino na Educação Básica no século XXI: experiências nacionais e internacionais. Rio de Janeiro: Autografia, 2021, p.68-90.
ii RISAM, R. New digital worlds: Postcolonial digital humanities in theory, praxis, and pedagogy. Evanston: Northwestern University Press, 2018.
iii MENEGUELLO, C. Quem tem medo das aulas online? Três ideias sobre o ensino à distância. Café História. Disponível em www.cafehistoria.com.br Acesso em 15 fev. 22.
iv SELWYN, N. O uso das TIC na educação e a promoção da inclusão social: uma perspectiva crítica do Reino Unido. Educ. Soc. 29 (104), p.815-850, out. 2008.
v CANSINO, C.; SANTILLANA, J.C.; ECHEVERRÍA, M. (Eds.). Del homo videns ao homo twitter: democracia y redes sociales. Puebla: Instituto de Ciencias de Gobierno y Desarollo Estratégico/Centro de Estudios en Comunicación Política, 2016.
vi KIM, D.; STOMMEL, J. Disrupting the Digital Humanities: an Introduction. In: ________ (Eds.). Disrupting the Digital Humanities. Earth: Punctum Books, 2018 (ebook).
vii BUCKINGHAM, D. Cultura digital, educação midiática e o lugar da escolarização. Educação e Realidade 35(3), p.37-58, 2010.
Referências
BIRRO, R.M.; GRZYBOWSKI, L.G. História Medieval, Internet e Tecnologias na formação de professores. In: VIANNA, L.J. (Org.). A História Medieval entre a formação de professores e o Ensino na Educação Básica no século XXI: experiências nacionais e internacionais. Rio de Janeiro: Autografia, 2021, p.68-90.
BUCKINGHAM, D. Cultura digital, educação midiática e o lugar da escolarização. Educação e Realidade 35(3), p.37-58, 2010.
CANSINO, C.; SANTILLANA, J.C.; ECHEVERRÍA, M. (Eds.). Del homo videns ao homo twitter: democracia y redes sociales. Puebla: Instituto de Ciencias de Gobierno y Desarollo Estratégico/Centro de Estudios en Comunicación Política, 2016.
KIM, D.; STOMMEL, J. Disrupting the Digital Humanities: an Introduction. In: ________ (Eds.). Disrupting the Digital Humanities. Earth: Punctum Books, 2018 (ebook).
MENEGUELLO, C. Quem tem medo das aulas online? Três ideias sobre o ensino à distância. Café História. Disponível em www.cafehistoria.com.b r Acesso em 15 fev. 22.
RISAM, R. New digital worlds: Postcolonial digital humanities in theory, praxis, and pedagogy. Evanston: Northwestern University Press, 2018.
SELWYN, N. O uso das TIC na educação e a promoção da inclusão social: uma perspectiva crítica do Reino Unido. Educ. Soc. 29 (104), p.815-850, out. 2008.
Organizadores
Aline Benvegnú dos Santos – Doutora e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades Digitais pela Université Rennes 2 (França). Atualmente é pesquisadora do Laboratório de Teoria e História da Imagem e da Música Medievais (Universidade de São Paulo). E-mail: aline.benvegnu.santos@gmail.com ORCID: 0000-0001-8373-6897
Carlos Eduardo da Costa Campos – Doutor em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Atualmente, é Professor Adjunto na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: carlos.campos@ufms.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9845-5980
Renan Marques Birro – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é Professor Adjunto na Universidade de Pernambuco. E-mail: renan.birro@upe.br ORCID: 0000-0002-1456-8196
Referências desta apresentação
SANTOS, Aline Benvegnú dos; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa; BIRRO, Renan Marques. Apresentação. CLIO – Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v.40, n.1, p.1-5, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
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