Homero, da classicista e professora em Princeton, Barbara Graziosi, é um livro com capítulos curtos que trazem uma discussão introdutória e interessante sobre temas selecionados. A autora optou por deixar as referências dos capítulos (passagens utilizadas e autores mencionados) em um título à parte no final do livro, o que proporciona fluidez na leitura. A obra cumpre, assim, o papel a que se propõe: introduzir um público leigo, em sua maioria de não leitores de Homero, nas principais discussões a respeito desse autor e de seus poemas. Dentro dessa mesma abordagem, o livro possui uma seção com sugestões de leituras complementares para aqueles que quiserem se aprofundar no assunto, também dividida de acordo com os capítulos. Há ainda um índice remissivo e um prefácio de Teodoro Rennó Assunção (FALE-UFMG), “O Homero de Graziosi: uma introdução exemplar”, em que o autor situa este livro dentro de uma produção bibliográfica mais específica da autora sobre o tema e também apresenta uma síntese dos tópicos discutidos, acrescentando referências de obras em português.

Começando por um relato de como Petrarca ficou satisfeito em receber uma cópia em grego da Ilíada, ainda que não pudesse lê-la, Graziosi parte do pressuposto, exposto na “Introdução”, de que Homero é muito conhecido mas pouco lido. A autora articula uma obra com exposições que têm por objetivo apresentar o poeta e seus poemas para esse público e dar exemplos retirados da Ilíada e da Odisseia de temas que tornam os épicos homéricos imortais, na esperança de ser um convite e um guia para a sua leitura. Um dos méritos da obra é que os capítulos podem ser lidos em qualquer ordem, pois constituem unidades temáticas independentes e são capítulos curtos e objetivos entre seis e treze páginas (curiosamente, o prefácio é maior que os capítulos, contando com quinze páginas).

A primeira parte, constituída de quatro capítulos, dedica-se a pensar sobre Homero e sua obra. A segunda aborda temas sobre a Ilíada e conta com três capítulos, assim como a terceira parte que trata da Odisseia.

No primeiro capítulo “Procurando Homero”, Graziosi apresenta uma síntese do debate acerca de Homero e das obras a ele atribuídas, a chamada Questão Homérica, sem aprofundar nenhum dos problemas que assombram os especialistas há séculos, mas permitindo que o leitor se inteire dos principais debates. Essa narrativa começa já na Antiguidade a partir do próprio significado do nome Homero, mas também dos questionamentos sobre o autor e sua obra elencados por Heródoto, Ésquilo, Platão e Aristóteles. A autora deixa bem claro a importância dos estudiosos bizantinos nessa tradição que será resgatada pelos europeus no final da Idade Média, exatamente com Petrarca, e as contribuições de autores como Vico, August Wolf, Goethe e Nietzsche para a problematização do tema. Neste capítulo há dois retratos de Homero, um busto do período Helenístico e uma pintura realista de 2013 de um artista coreano, fundamentando o ponto de partida para o presente livro: Homero é um autor que desde sempre, e ainda hoje, despertou o interesse e a curiosidade de leitores e não leitores.

No segundo capítulo, intitulado “Pistas Textuais”, a autora explora as informações que podem ser apreendidas a partir de elementos dos próprios textos da Ilíada e da Odisseia. Mostra como o trabalho de Milman Parry e do seu sucessor, Albert Lord, foi capaz de comprovar que a repetição dos versos nos poemas homéricos pertence a uma longa tradição de transmissão oral em que fórmulas pré-fabricadas e cenas típicas eram elementos estruturantes que permitiam aos poetas compor e recompor as histórias. A autora demonstra de maneira bastante fundamentada que tais elementos, presentes na Ilíada e característicos de uma história de batalhas, foram habilmente adaptados na Odisseia para servir em outros tipos de cenas, como é o caso do encontro de Odisseu e a princesa Nausícaa. Neste capítulo, Graziosi também trata da linguagem escrita ao trazer a análise de especialista para demonstrar que o grego homérico é uma mistura de vários dialetos diferentes não apenas geograficamente, mas também temporalmente, e que teriam como função fornecer termos de tamanhos diferentes e que servissem à métrica dos poemas. A análise da língua dos poemas também oferece pistas de onde os poemas teriam sido compostos, uma vez que a influência dos elementos jônicos e eólicos são preponderantes e também estabelecem uma cronologia relativa com outros poemas, apontando para a antiguidade dos dois épicos.

O plano do capítulo seguinte, “Pistas Materiais”, não é tão claro quanto o dos dois primeiros. O título pode induzir que se espere uma análise dos vestígios arqueológicos dos épicos homéricos. O objetivo do capítulo, no entanto, parece ser estabelecer um recorte temporal mais específico dentro do qual os textos foram compostos. Assim Graziosi estabelece um limite inicial em 700 a.C., baseando-se na descrição de condições materiais que não poderiam ser encontradas antes desta data e na difusão do culto heroico, e um limite final antes de 501 a.C., período em que os poemas já eram conhecidos em todo o mundo grego. A Arqueologia é invocada em alguns momentos específicos no texto. Logo de início para relatar a descoberta de Troia por Schliemann baseando apenas no conhecimento dos textos homéricos. Depois para tratar das ruínas da civilização micênica, visíveis nos períodos posteriores. Como exemplo da difusão da escrita no século VIII a.C., ela traz a famosa taça de Nestor e no final do capítulo, apenas para comprovar o conhecimento dos poemas no final do período Arcaico, menciona rapidamente a iconografia dos vasos nos quais passam a predominar cenas da Ilíada e da Odisseia. No restante do capítulo a autora retorna ao texto. Há uma discussão interessante de contraposição entre as descrições dos heróis nos poemas e os símiles homéricos que trazem traços mais cotidianos. Aqui, a autora peca em trazer uma terminologia demasiada específica dos estudos homéricos sem explicar para um público mais leigo o que exatamente seriam os tais símiles. O que ela quer demonstrar é que há no texto a compreensão de um passado heroico já distante, ainda que tragam referência de lugares (e ruínas) reconhecíveis, exceção feita à parte mais fantasiosa da viagem de Odisseu e da exata localização de Ítaca. Graziosi volta a reafirmar a primazia da oralidade dos poemas, a despeito de, provavelmente, já terem sido passados para a forma escrita, trazendo exemplos de fontes escritas que enfatizam a recitação deles em grandes festas públicas, em contraposição à figura dos aedos que aparecem na Odisseia cuja função parece ser a de recitações ocasionais.

O quarto capítulo, “O Poeta nos Poemas”, e último sobre o Homero, analisa as vozes narrativas e pontos de vista presentes dos épicos. É uma leitura deveras interessante e inovadora, quiçá até para quem já leu as obras. Ainda deixando claro que não sabemos quem compôs os poemas, a autora aponta que a voz do narrador é bastante clara a partir de uma demarcação importante entre as divindades, que estão sempre presentes, tudo veem e tudo sabem, e os mortais, que estão distante e apenas ouvem e por isso não sabem. Neste capítulo a autora explora o tema do aedo que é cego, como é o caso de Demódoco na Odisseia, o que muitos na Antiguidade também pensavam sobre Homero, e a capacidade de recitar por inspiração divina, para depois distinguir as vozes narrativas e os pontos de vista entre a Odisseia e a Ilíada. Esta última seria uma narrativa objetiva e distante apresentando um ponto de vista amplo, muitas vezes vista do alto – uma perspectiva dos deuses a partir do Olimpo – mas com a possibilidade de aproximações e relatos de detalhes, como na descrição da decoração microscópica do escudo de Aquiles. Já a Odisseia teria uma narração mais subjetiva, em que o próprio Odisseu ou aedos estão a relatar os acontecimentos, e uma perspectiva a partir da terra (e do mar), ao nível dos olhos de Odisseu. Em ambos os casos ter-se-ia uma perspectiva cinematográfica, talvez mais óbvia nos grandes planos da Ilíada, mas igualmente notável em cenas como a em que Odisseu retesa o seu arco, clímax da segunda parte da estória, quando o narrador descreve a ação em câmera lenta, para prolongar o efeito de tensão.

O capítulo 5, “A Ira de Aquiles”, o primeiro da segunda parte, traz uma discussão de um tema muito debatido acerca da Ilíada, afinal o poema começa exatamente com essa expressão. Graziosi demonstra que, se por um lado o comportamento do herói é extremado, quiçá irracional, os seus sentimentos não são incomuns. Aquiles lida, primeiramente, com a consciência da mortalidade e em seguida com o luto de alguém muito próximo e caro, sentimento também envolto em culpa. A autora faz um paralelo com a Epopeia de Gilgamesh, tendo em vista que o protagonista também perde o amigo querido e tenta vencer a mortalidade, não para buscar no épico mesopotâmico uma origem da epopeia grega, mas exatamente para apontar que os temas apresentados na Ilíada são universais. Ela inclusive faz uso da psicologia moderna e compara o comportamento de Aquiles, guardadas as devidas proporções, com um transtorno de estresse pós-traumático. O objetivo aqui é trazer a compreensão da familiaridade dos temas tratados na poesia de Homero, ainda que narrada através de feitos heroicos e personagens atípicos, com os quais certamente não teríamos nenhuma identificação imediata.

No capítulo seguinte, “Um poema sobre Troia”, a autora se pergunta como a Ilíada, que trata de apenas alguns episódios do último ano da guerra, se tornou o poema sobre Troia no meio de uma tradição de outros poemas e relatos. Em primeiro lugar, a Ilíada é ao mesmo tempo um poema geral da guerra, pois ao longo do poema vários episódios anteriores e posteriores ao recorte da Ilíada são evocados, o que faz com que, de certa forma, a Ilíada trate de toda a guerra, bem como o fato de que as cenas de batalha são numerosas, extensas e realísticas. Por outro lado, e em segundo lugar, é uma narrativa específica em que cada herói que tomba não é um guerreiro anônimo, o que faz com que as mortes, apesar de numerosas e violentas, nos coloquem diante da questão da mortalidade e do porquê lutar.

“A Tragédia de Heitor” é o último capítulo da parte sobre a Ilíada. Tendo tratado de Aquiles no capítulo 6 e da multidão de heróis no capítulo 7, nada mais significativo que encerrar essa sessão com Heitor, que é, de muitas formas, o contraponto de Aquiles, pois é diferente deste que se move por motivos egoístas. O troiano tem uma responsabilidade para com seu povo. Ao mesmo tempo que a morte de Heitor, em um sentido geral, significa a queda de Troia, em uma perspectiva específica, nos aproximamos do vazio de sentido em ter esperança quando se sabe qual será o nosso destino. Diferentemente de Aquiles, a escolha de Heitor não é entre viver ou morrer, mas a de ter uma morte heroica e honrosa, ainda que tenha esperança de que as coisas poderiam se passar de outra forma.

A terceira parte começa da mesma maneira que se fez com o primeiro capítulo específico sobre a Ilíada (capítulo 5). O capítulo 8, intitulado “O homem de muitas guinadas”, analisa o sentido da primeira palavra com que se inicia o poema. Na Ilíada a palavra é ira, na Odisseia é homem. No prêmio da Odisseia, a este homem é dado muitos adjetivos, mas não se menciona o seu nome. Assim, é um poema que trata da busca pela humanidade, mas o faz a partir de um homem muito particular. Ao longo da narrativa, Odisseu aparece e desaparece várias vezes, se disfarça, se torna ninguém e se oculta para se revelar apenas em momentos específicos, característicos do personagem que é multifacetado. A autora aproveita também para apresentar o poema em suas duas partes: as viagens e tentativa de retorno para casa, e a sua chegada e reconquista do seu lugar de direito através do massacre daqueles que o queriam usurpar, bem como discutir um pouco um certo desconforto sentido pelo público, desde a Antiguidade, pela violência e um final como que inacabado do poema.

O penúltimo capítulo, “Mulheres e monstros”, é talvez o menos bem costurado. A autora quis apresentar Odisseu como um personagem difícil de apreender não apenas no sentido de conhecê-lo, mas também de fixá-lo em algum lugar. A discussão interessante, mas um tanto circular e repetitiva, versa sobre a questão de todos os obstáculos, tentadores e monstruosos, no caminho de Odisseu, apresentando o herói como aquele que os rejeita pela perspectiva da volta para casa. Penélope também se torna um perigo, dada a insistência em narrar, no poema, o destino de Agamêmnon quando este retorna para Micenas. Assim, na Odisseia, nem percurso nem retorno são seguros.

O capítulo 10, “Uma viagem infernal”, discute a descida de Odisseu ao Hades e as repercussões desse episódio. Nesta parte do poema, Odisseu chega ao ponto mais distante de casa, não necessariamente espacial, e também esteve o mais perto de não retornar. Ao Hades ele vai em busca de uma profecia de Tirésias, mas curioso com as personagens que lá encontra ele se detém para ouvir suas estórias. É a partir dessa narrativa que Virgílio, e depois Dante, expandem o universo da Odisseia. Este último ao que tudo indica, assim como Petrarca, não havia lido a Odisseia, mas contribui muito para que o épico reverberasse, a partir de então, no ocidente em obras como Ulisses de Tennyson e Joyce, e nos questionamentos de Primo Levi acerca da questão da sobrevivência e do retorno para casa.

A obra de Barbara Graziosi é um belíssimo acréscimo ao tema sobre Homero e suas obras, uma leitura interessante não apenas para aqueles que desconhecem os poemas mas certamente também para os que já leram Homero. Sempre haverá olhares possíveis sobre a sua obra. A Ilíada e a Odisseia não possuem o estatuto que têm em vão, seus temas, histórias e questões são universais.


Resenhista

Juliana Caldeira Monzani – Professora Doutora – Universidade Cidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: jmonzani@yahoo.com


Referências desta Resenha

GRAZIOSI, Barbara. Homero. Trad. Marcelo Musa Cavallari e Maria Fernanda Lapa Cavallari. Araçoiaba da Serra: Mnema, 2021. Resenha de: MONZANI, Juliana Caldeira. Heródoto. Guarulhos, v.7, n.1, p. 118-123, 2022.  Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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