Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América Portuguesa. Século XVIII | Isnara Pereira Ivo
Homens de Caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América Portuguesa. Século XVIII: este livro da autora Isnara Pereira Ivo é decorrente de sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2009.
O livro tem como objetivo focalizar as conexões e as ações comerciais entre o sertão da Bahia e o norte de Minas Gerais no século XVIII, destacando as trocas culturais e comerciais no Império português. Para isso, a obra se divide em quatro capítulos, com início na análise da trajetória de indivíduos e da maneira pela qual eles contribuíram para a conquista dos sertões, tomando como exemplo o estudo das perspectivas das histórias conectadas. Estas conexões, que abrangeram os quatro cantos do mundo, não somente ocasionaram trânsitos culturais como também levaram a trocas de experiências, práticas, costumes, valores, sentimentos, identidades, crenças entre diferentes elementos e distantes localizações.
No primeiro capítulo são abordadas as conexões dos sertões ao Império Ultramarino Português, levantando as mestiçagens biológicas e culturais. Vários fatores favoreceram para as mestiçagens, tais como o trânsito de homens pela Bahia e Minas Gerais, em que muitos foram estimulados pela descoberta do ouro e outros visavam o comércio, em busca de atividades que trouxessem lucro.
Os homens do século XVIII tiveram um papel de agentes integralizadores, fomentando conexões dos sertões com o mundo ultramarino, evidenciando uma realidade em movimento, devido ao ir e vir, e relacionando misturas de conhecimentos. São eles boiadeiros, camboeiros, tropeiros e homens de negócio.
Com a colonização, houve um movimento de indivíduos de diferentes lugares que se ancoraram na Colônia, o que fez expandir os habitantes devido à mobilidade e dispersão. O povo africano e sua descendência fazia parte desse universo colonizador, quando deixava marcas, reafirmava suas origens e estruturava novas identidades, usando a sua cultura natal mesclada com as novas possibilidades que lhes eram ofertadas pela sociedade escravista.
Nos dois capítulos subsequentes, a autora aborda a administração local, a localização dos caminhos, os registros de arrematação de passagens e o trânsito de pessoas. Elucida a circulação de indivíduos e mercadorias entre a Bahia e Minas, ressalta o comércio, demonstrando a maneira com que o governo português administrava a economia nos sertões.
Para esse trânsito, o Rio São Francisco e seus afluentes eram o principal caminho usado para o comércio de escravos, alimentos e produtos. Havia também outros rios menores e rotas terrestres que auxiliavam nas atividades, além da abertura de novos caminhos e picadas clandestinas que ajudavam a dinamizar os negócios.
O livro também narra como eram feitas as cobranças de impostos e de que forma os homens de caminho abriam rotas e picadas clandestinas para fugirem da vigilância da coroa. Todo pedágio pago era organizado em tabelas de arrematação de passagens, indicando o local da arrecadação. Os fiscais estavam sempre atentos para o desvio de mercadorias, mas, mesmo assim, esse extravio acontecia com frequência. Eles controlavam o caminho e determinavam por onde os homens deveriam passar, o que consequentemente facilitava a arrecadação do fisco, supervisionando o comércio e as rotas entre os sertões da Bahia e Minas Gerais.
Cabe destacar as estratégias utilizadas pelos homens de caminho para fugir do fisco, bem como a capacidade de negociação que possuíam, porém, mesmo que portassem tal habilidade, os fiscais faziam de tudo para que isso não acontecesse. Estes cobravam pedágio de acordo com as mercadorias que os homens levavam, arrecadavam para os cofres reais por pessoa, animal, escravo, ouro ou outro objeto de valor que circulava no local, lembrando que os tributos eram recolhidos tanto nos setores fluviais como nos terrestres.
Ivo relata também a respeito das casas de fundição, nas quais o objetivo era conseguir que o poder real controlasse os meios de redução e fundição do ouro e assim validar o seu movimento no comércio, com o propósito de elevar a arrecadação e fazer com que circulasse o metal precioso nas negociações, a fim de controlar o seu descaminho e impossibilitar o desvio dos quintos reais.
No intuito de esclarecer sobre a mobilidade do homem no século XVIII, convém aqui citar a história de um preto forro, João Gonçalves da Costa, que era considerado um homem honesto e de muitas habilidades. Ele ajudou a criar espaços, expandir culturas no mundo português, alcançando conquistas para a Coroa. Não somente ele, mas muitos outros homens, citados na referida obra, conseguiram suas cartas de alforria e circularam livremente, levando e trazendo culturas, atribuições e outras funções que antes eram destinadas apenas para os membros da elite e brancos. Importante frisar que conceder cargos a homens negros ou mestiços não era uma decisão acatada pela elite da época, que julgava que só os que faziam parte de seu grupo deveriam manter essa posição social.
O último capítulo trata dos “homens de caminho” e as mulheres que influenciaram nesses caminhos, as atividades econômicas exercidas por eles, identificando os fenótipos, bem como a “qualidade” e “condição” dos indivíduos que por ali circulavam.
O termo “qualidade” se referia a branco, preto, crioulo, negro, mameluco, entre outras denominações dadas às mesclas. Já o termo “condição” designava se o homem era livre, forro ou escravo, referente ao status jurídico do indivíduo. A autora aponta a importância das idas e vindas dos homens, do comércio e identifica os caminhos por onde circulavam pessoas e mercadorias. As mestiçagens ocorriam em ambientes alternados, com escravidão, com diferenças de cores e culturas, o que levou a novas maneiras de vida.
Para se ter uma ideia da trajetória do negro e mestiço nesse contexto, a autora mostra os registros fiscais por localidades em tabelas, quantificando os homens de caminho que por ali passaram, a quantidade de passagens desses homens, bem como sua “qualidade” e “condição”, apontando se eram escravos, forros ou livres e relatando os diversos tons de pele e os variados fenótipos dessa população. As anotações feitas pelos escrivães incluem a estatura, os tipos de rostos, a cor dos olhos, cor e tipo de cabelos.
A documentação, a respeito dos registros, refere-se aos localizados na comarca do Serro do Frio, aos de Minas Novas (Rio Pardo, Araçuaí, Itacambira, Jequitinhonha), Galheiro e Inhacica, ao norte da Capitania de Minas Gerais, a qual manteve vínculo comercial com o Sertão da Ressaca, com algumas localidades do Alto Sertão e determinadas vilas do Recôncavo baiano, e também com os postos fiscais de Pitangui e Rio Grande.
Foram registrados homens que circulavam por mais de um registro fiscal e que levavam e traziam mercadorias, enriquecendo o comércio e a cultura desses sertões. Vale ressaltar que a referida descrição vem do olhar de quem fez o registro, podendo variar ou “mudar” de um registro fiscal para outro.
Para exemplificar o que acontecia, é oportuno falar sobre o negro João dos Santos, registrado pelo escrivão de Pitangui como preto-forro, mas quando cruzou pelo registro fiscal de Araçuaí e Inhacica “perdeu” tanto a sua “qualidade” quanto a sua “condição”, passando a ser “homem livre”, sem menção de que um dia foi um escravo. Logo, a “qualidade” era modificada conforme a mobilidade social e conforme o status. Assim como João dos Santos há diversos relatos semelhantes de homens negros e mestiços que passaram a ser homens “brancos” pela omissão da cor no registro.
Não é correto relacionar a cor da pele à condição social, pois houve negros que conquistaram altos cargos na elite nesse período, do mesmo modo que existiram escravos brancos que tinham sua ascendência escrava ou mestiça, mas a cor da pele era branca. Apesar de toda conquista e ascensão que os negros e descendentes proporcionaram, muitas vezes e em diversas situações, ainda eram marginalizados e considerados seres inferiores.
Não somente os homens se destacaram nesses caminhos, mas também as mulheres contribuíram para o comércio e troca cultural. As negras e mestiças se sobressaíram e ajudaram na mobilidade cultural, comercial e se tornaram verdadeiras “mulheres de caminho”, conquistando dinheiro e respeito perante os homens. Essas já mostravam independência e autonomia que não se observavam nas mulheres brancas da época, submissas aos seus maridos ou pais.
Na obra, é evidenciada de que maneira essas conexões contribuíram para a formação do Brasil, relatando situações que ajudaram na formação do país na atualidade e demonstrando o que se pode constatar, hoje: um povo diversificado culturalmente e biologicamente. O fenótipo dos brasileiros é marcado por diferentes formas e cores devido à grande miscigenação processada desde a colonização.
As conquistas dos negros e mestiços e como influenciaram na formação do Brasil contemporâneo colaboraram para a diversidade de culturas, costumes, formas e cores. De maneira paralela, contribuíram para a inspiração dada ao trânsito comercial e aos diversos movimentos que induziram a dinâmica atual.
Diante do que foi exposto, compreende-se que todos os brasileiros são/fazem parte dessa nação envolvida em cores e culturas diversificadas que os abraça e os possibilita agir como sujeitos construtores e participantes, conhecer a história na qual estão inseridos.
Resenhista
Priscila d’Almeida Ferreira – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), campus de Jequié. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e doutoranda em Memória: Linguagem e Sociedade pela Uesb. E-mail: priuesb@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América Portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2012. Resenha de: FERREIRA, Priscila d’Almeida. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 16, n. 1, p. 175-178, 2016. Acessar publicação original [DR]