Donald Bloxham, historiador e professor da Universidade de Edinburgh, produziu diversas obras referentes aos estudos sobre genocídios, tais como Genocide on Trial: War Crimes Trials and the Formation of Holocaust History and Memory (2001), The Final Solution: A Genocide (2009) e a organização, com Dirk Moses, de The Oxford Handbook of Genocide Studies (2010). Após se consolidar como uma referência em língua inglesa acerca dos crimes de guerra e genocídios históricos, em 2020 Bloxham dedicou-se a reflexões teóricas próprias do fazer historiográfico. Why History? A History (2020) e History and Morality (2020) são dois livros, publicados ao mesmo tempo pela Oxford University Press, que levam em consideração a história de sua própria disciplina e um problema de filosofia da história, o do julgamento histórico. Esta resenha é dedicada ao segundo volume citado.
Em History and Morality, Bloxham discute o tratamento histórico dado a eventos e, particularmente, catástrofes que resultam de decisões humanas, afinal falar de “causas” ou “origens” como é tão comum em trabalhos historiográficos, não seria também falar em “responsabilidades” e inevitavelmente de “culpa”? Podemos, então, julgar o passado? É válido usar critérios e valores presentes para lidar com o passado? Assim, History and Morality se liga intimamente aos trabalhos anteriores do autor, o que só o torna mais interessante, afinal, quando se fala em julgamentos morais e historiadores, pensa-se logo em como seria possível que o genocídio não despertasse uma resposta moral? A adjetivação dos crimes cometidos pelos nazistas como “terríveis”, por exemplo, é bastante comum e não gera muitas reações contrárias, mas por mais óbvia que pareça, estabelece um juízo claro que também aparecerá de formas mais sutis em diversas interpretações dedicadas a outros temas. O livro parte do argumento de que é legítimo e inevitável que o historiador faça julgamentos sobre o passado. Segundo o autor, o consenso da profissão, hoje, é contrário a tal argumento. Para ilustrar a suposta contrariedade, cita autores como Marc Bloch, H.S. Commager e uma “recente” fala de Richard Evans sobre a estranheza do elemento moral à metodologia de pesquisa (3). No prefácio ao livro, Bloxham conta sobre como tem trabalhado na obra há cerca de dez anos, o que pode explicar, em partes, o fato de ele partir da noção de que os historiadores são, em sua maioria, resistências à admissão do peso das questões morais em suas produções ou de que as vozes contrárias a esse consenso não tiveram grande alcance.
A afirmação de que hoje é hegemônico entre os historiadores que se deve evitar tratar a questão moral na historiografia é discutível, mas certamente não é por desconhecimento da bibliografia sobre o tema que Bloxham parte desse pressuposto: na obra temos contato com inúmeras referências sobre as discussões que envolvem a moralidade, bem como uma variada bibliografia que contribui na construção da tese do autor e exemplos que tornam a leitura fluída. A maioria das obras citadas é formada por publicações originais em inglês ou traduzidas para o inglês, o que não estreita necessariamente o alcance da discussão, mas, naturalmente, não abarca tudo o que vem sendo produzido nos últimos anos, em especial no sul global. No Brasil, por exemplo, os debates sobre a história do tempo presente e outras indagações relacionadas ao tempo histórico são frutíferos e constantes 1. Esses debates não poderiam excluir o tema da moralidade e do julgamento, uma vez que na história do tempo presente há a inevitabilidade do juízo: tanto ao se romper com a necessidade de um distanciamento determinado entre historiador e objeto, quanto quando a análise do passado parte de problemáticas presentes e considera os usos públicos e políticos da história.
A questão do contexto histórico – substancial para as discussões e produções que pretendem dar conta de uma inovação teórico-metodológica no campo da história do tempo presente, entre outros – é central em History and Morality. O conceito é significativo, pois seria uma objeção frequentemente mobilizada pelos historiadores resistentes a uma análise que considera a impossibilidade de uma total imparcialidade, afinal, a contextualização seria o que diferenciaria o trabalho do historiador daqueles que buscam retirar lições do passado. O autor rebate a objeção que recorre à contextualização como marca absoluta da historiografia invertendo o ponto e colocando o problema não nos julgamentos feitos, mas no “senso comum” na profissão histórica que condenaria os julgamentos (4). Por fim, conclui-se que não é possível que o historiador se desligue das faculdades morais no estudo da história, tampouco deve almejar tal feito (289). Para Bloxham, parece não bastar um meio termo entre o anacronismo e a imparcialidade. Sua posição sobre a neutralidade do historiador é, portanto, clara: a neutralidade não só é impossível como não desejável.
O livro se divide em quatro partes com uma média de seis ou sete capítulos cada. Em todas essas partes é mostrado como o julgamento feito pelos historiadores a respeito do passado que exploram é inevitável e se manifesta de maneiras variadas, às vezes assumidas, mas mais frequentemente na escolha de determinados termos e modo de escrita. São utilizadas uma bibliografia sobre o tema e, destacadamente, uma base documental que exemplifica e dá corpo ao argumento.
Na primeira parte, “Contemplating Historical Actors in Context”, é discutida a centralidade do contexto na teoria da história e como a própria contextualização feita pelos historiadores pode revelar ou ser a manifestação de um julgamento moral sobre o passado. A categoria mesma de contexto não teria sido suficientemente teorizada e conceitualizada. O autor busca mostrar o que a prática de contextualização implica levando em consideração diferentes tipos de contextualização (17) e destacando o inerente caráter avaliativo que acompanha as escolhas feitas pelos historiadores durante esse processo de contextualização. Para Bloxham, o contexto deveria ser compreendido como casualidade, afinal, estar em um determinado contexto histórico é uma das causas para as ações, de modo que, em vez de colocar tudo na conta da cultura, as responsabilidades podem ser, pelo historiador, dadas a seus respectivos atores.
A segunda parte, “Writing History: Problems of Neutrality”, trata do papel do historiador na caracterização de atores históricos, forças e enredos passados dentro de um relato histórico integrado (87). Aqui, é distinguida a pretensão de veracidade de uma aspiração à neutralidade (11) que tropeça nas escolhas feitas pelos historiadores desde a linguagem. Assim, mostra que a própria escrita da história introduz avaliações “externas” aos eventos sob explicação.
Na terceira parte, “Justifying Judgement on Things Past”, o autor afirma que os padrões predominantes na historiografia não se limitam às fronteiras da disciplina acadêmica e aponta para a ligação entre o pensamento moral ocidental e a ortodoxia da historiografia (127). Bloxham se propõe a explorar as diversas teorias morais elaboradas no Ocidente com o objetivo de mostrar que a busca por uma neutralidade na historiografia é relativamente recente e entra em contradição com a própria prática historiográfica. Para isso, distingue entre relatos que explicam eventos passados em termos de suas naturezas internas e unificadas e relatos que explicam eventos passados em suas relações com o mundo. Uma ampla crítica a um relativismo moral que forjaria um distanciamento entre os atores históricos e os historiadores emerge dessas reflexões.
A quarta e última parte, “History, Identity, and the Present”, dedica-se ao papel da consciência histórica na formação das identidades sociais e políticas. Assim, os historiadores são convocados a não fugirem da sua função nos argumentos históricos que dizem respeito à questão da identidade, mas para isso seria preciso abordar as inconsistências nas maneiras usadas por alguns historiadores para pautar as conexões e desconexões com o passado (251). Ao criticar uma história das identidades (Identity History), Bloxham indica que os juízos de valor, além de pesarem na compreensão do passado, também fazem parte do debate presente. Dessa forma, ele se coloca contra dois tipos de historiadores: tanto aqueles que selecionam acontecimentos passados para os quais evocarão a acusação de anacronismo diante de qualquer juízo moral que resulte de critérios presentes; e também aqueles que praticam o que ele chama de “anacronismo invertido”, que colocam como coincidentes seus próprios pontos de vista e os dos objetos históricos de tal modo que um serve para legitimar o outro e o passado acaba por validar atitudes presentes (272).
No último tópico do livro, Bloxham adentra questões bastante atuais e urgentes, como os monumentos de memória constantemente questionados como parte do espaço urbano que são também componentes materiais da identidade. Aqui, o livro se relaciona com as inúmeras discussões sobre o historiador e o juiz e, em particular, pode ser contrastado com duas obras recentes: History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice de Berber Bevernage (2011) e On the Judgment of History (2020) de Joan Scott, este lançado no mesmo ano de History and Morality. Bevernage (2011, 3) discorre sobre a incompatibilidade entre o tempo da jurisdição e o tempo da história, colocando o primeiro como aquele no qual se busca compensação e o segundo como o tempo no qual se lida com o que é irreversível. Pelo tempo histórico, assim, não se visa o alcance de uma justiça completa e quem quer que almeje um mandato moral amplificado para a história, terá de lidar com esse conceito de tempo histórico. Scott (2020) parte dos julgamentos de Nuremberg, um momento em que o julgamento da história foi exigido, e analisa as formas usadas pelo Estado para se tornar uma verdadeira corporificação e encenação do julgamento da história. Assim, são colocados em comparação momentos em que o apelo foi por um julgamento jurídico e outros em que o apelo foi por uma revisão na historiografia, quando o Estado não poderia oferecer compensação significativa. Dessas ponderações finais, um assunto insurge e chama a atenção: a questão da reparação solicitada pelas vítimas a Estados que podem ser responsabilizados no presente por crimes passados. De maneira rápida, portanto, são abordadas as consequências práticas e políticas das questões teóricas tratadas ao longo da obra. Está claro que se aprofundar em tais consequências – exemplificadas com a destruição recente de estátuas de colonizadores e o evitar da palavra genocídio em um monumento dedicado às vítimas do domínio alemão na Namíbia – não estava entre os objetivos principais da obra, mas esse breve comentário faz com que queiramos ler mais das considerações do autor sobre temas tão presentes. A tese do livro, entretanto, é clara desde o início e é a da legitimidade do julgamento na história. Para defendê-la é feito um caminho longo de reflexão teórica e epistemológica da própria história que faz da leitura bastante proveitosa.
Nota
1 O Programa de Pós-Graduação da UDESC possui como área de concentração a História do Tempo Presente e um periódico próprio, a revista Tempo e Argumento, criada em 2009, também dedicada à publicação de textos relacionados à História do Tempo Presente. Outro exemplo de publicações brasileiras que incluem o tema do julgamento na História é o dossiê Juridicização e tribunalização da história publicado em 2020 na Revista de Teoria da História (v. 23 n. 1 (2020)).
Referências
BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice. London: Routlegde, 2011.
BLOXHAM, Donald. History and Morality. Oxford: Oxford University Press, 2020.
SCOTT, Joan Wallach. On the Judgment of History. New York: Columbia University Press, 2020.
Resenhista
Sabrina Costa Braga – Universidade Federal de Goiás Goiânia. E-mail: sabrinacostabraga94@gmail.com orcid.org/0000-0001-9164-7560
Referências desta Resenha
BLOXHAM, Donald. History and Morality. Oxford: Oxford University Press, 2020. Resenha de: BRAGA, Sabrina Costa. Sobre a legitimidade e inevitabilidade do julgamento do historiador. Revista de Teoria da História. Goiânia, v. 25, n.2, p.321-325, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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