Historiografia na América Espanhola / História da Historiografia / 2011

O dossiê Historiografia na América Espanhola pretende diminuir a distância entre os pesquisadores de história da América brasileiros e as áreas dedicadas aos estudos historiográficos no país. Esta distância já vem sendo superada em alguns países americanos de fala espanhola, com destaque para a Argentina e o México, onde os estudos de historiografia e cultura histórica hispano- -americanas ganharam grande desenvolvimento nas últimas décadas graças aos trabalhos de Elias José Palti, Enrique Florescano, Fabio Wasserman, Natalio Botana, entre muitos outros. No Brasil ainda precisamos investir bastante na consolidação dessa área de pesquisa. Estudos comparativos entre a historiografia brasileira e a hispano-americana ainda são raros. Ainda mais incomuns são as aproximações destas com a produção norte-americana. No entanto, acreditamos que tal diálogo traria novas e interessantes perspectivas sobre a própria historiografia brasileira, vista agora no quadro de um contexto continental que enfrenta muitas questões e dilemas em comum. Os trabalhos aqui reunidos são um passo para essa aproximação, trazendo para um periódico não especializado em história da América um conjunto de problemáticas que vem sendo discutido nos países hispano-americanos.

Em entrevista concedida durante uma passagem pelo Brasil, o historiador equatoriano Jorge Cañizares-Esguerra, que vem se destacando nos últimos anos com um erudito e original conjunto de trabalhos sobre a história cultural da América Colonial, fala sobre uma série de possibilidades de redefinição de nossa compreensão da experiência colonial hispano-americana e propõe alternativas para estudos comparativos com a da América do Norte, como o realizado por ele no livro Puritan conquistadors. Cañizares-Esguerra defende, entre outras sugestões, a necessidade de repensar certas visões da história latino-americana que oscilam entre o quase exclusivamente trágico e o folclórico, visões que marcaram muito a visão dos públicos norte-americano e europeu sobre o continente. No mesmo sentido, questiona a oposição centro-periferia, defendendo a originalidade da produção intelectual hispano-americana do período colonial, como no caso dos debates sobre a escrita da história no século XVIII, estudadas no seu livro How to write the history of the New World.

Os textos de Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, Claudio Luis Quaresma Daflon, José Alves de Freitas Neto e Claudia Wasserman discutem as primeiras tentativas de elaboração de narrativas históricas na América Espanhola do século XIX, com destaque para a Argentina. O primeiro texto propõe uma análise do pensamento de Domingo Sarmiento e suas tentativas de identificar os males fundamentais que gerariam as crises políticas da Argentina oitocentista, destacando a presença de conceitos historiográficos e do pensamento racial europeus e as múltiplas estratégias narrativas e explicativas usadas por Sarmiento, com ligações tanto com o historicismo romântico quanto com diversas linhas de pensamento “científico” do período. Daflon também analisa as formas sarmientinas de tratar a história, argumentando que o uso do passado e as concepções de história presentes na obra de Domingo Sarmiento mudam quando a reflexão sobre os males mais amplos gerados pela história e a geografia do pampa, presente no Facundo, cede lugar ao desejo de reconhecer o papel da ação humana na construção de nações em Argirópolis. O determinismo anterior passa a dar lugar ao projeto possível, ainda que bastante utópico, de construção nacional. No terceiro texto, o trabalho historiográfico de Bartolomé Mitre é apresentado como um dos primeiros projetos bem sucedidos de oferecer uma narrativa contínua da história argentina, conectando os diversos momentos da genealogia nacional em uma narrativa integradora, ao mesmo tempo em que se acentua a exigência do desenvolvimento de métodos mais rigorosos de pesquisa histórica em seu debate com Vicente Fidel Lopez. O texto de Wasserman procura identificar em autores de diversos contextos nacionais a presença de narrativas historiográficas que tomam as “nações” como entidades originárias, existentes desde o período colonial. Pautados por modelos europeus de nação, os historiadores locais acabavam pensando a história do continente a partir de desvios e deformações de uma trajetória tida como padrão.

Em finais do século XIX, o desejo de superação das crises e conflitos que marcaram a América Espanhola por todo o século assume papel decisivo na configuração das narrativas históricas nacionais. No artigo de minha autoria, proponho que o desejo de produção de uma narrativa totalizadora da história argentina continua presente no século XX, agora com uma tonalidade nacionalista mais intensa, em um momento em que a história é pensada como um meio de combate pela preservação da singularidade nacional contra a ameaça da imigração europeia e a adoção de ideias políticas tidas como contrárias ao espírito nacional. É o que destacamos na biografia de Sarmiento escrita por Ricardo Rojas em meados do século, na qual buscamos identificar as operações biográficas que conectam os diversos aspectos da vida e do pensamento sarmientino com uma narrativa conciliadora do passado argentino que vê no pampa a origem da essência nacional, perspectiva contrária a do próprio Sarmiento. A biografia aparece como gênero capaz de reunir as diversas facetas do homem Sarmiento que haviam sido separadas por ideias importadas, alheias à sua história pessoal. No texto de Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Fernanda Bastos, o uso de narrativas históricas como forma de conciliar o passado nacional é analisado no caso do México de finais do século XIX e início do XX, onde a centralidade do desejo de estabilidade política e social é tomada como princípio comum entre as diversas, e divergentes, análises do papel do regime de Porfírio Dias na história mexicana. Embora agudamente divergentes em suas posições políticas quanto ao porfiriato, Bernardo Reyes Ogazón, Justo Sierra e Francisco Madero convergiriam na prioridade da pacificação como projeto mais urgente para a nação.

Nos trabalhos de Stella Maris Scatena Franco e Beatriz Helena Domingues são discutidos desenvolvimentos do debate historiográfico sobre a América Espanhola das últimas décadas. O primeiro texto enfoca alguns dos primeiros estudos sobre as narrativas de viajantes pela América Espanhola, produzidos pelo chileno Guillermo Feliú Cruz e o peruano Estuardo Núñez. A autora propõe que o trabalho destes autores foi marcado por um esforço erudito e monumentalista de compilação de fontes, na crença de que o valor das narrativas de viajantes era sua utilidade documental, já que forneceriam testemunhos de primeira mão sobre as sociedades visitadas. Passagens de diferentes narrativas eram confrontadas em busca da precisão documental, mas pouco esforço analítico era feito. Além disso, sobreviviam dicotomias oitocentistas não trabalhadas, como a oposição romântica entre natureza e civilização, agora com certa inclinação pela valorização das coisas essencialmente americanas, no caso a natureza. O segundo texto examina o último e ambicioso trabalho de Richard Morse sobre a história cultural da América Latina no século XX, “The multiverse of Latin American identity, c.1920 – c.1970”, incluído na The Cambridge history of Latin America. Muito conhecido no Brasil após o debate gerado pela edição brasileira de seu livro O espelho de Próspero, Morse é revisitado neste trabalho posterior, no qual realiza um amplo quadro comparativo sobre o problema da identidade nacional nos modernismos brasileiro, argentino e mexicano. A autora examina as análises de Morse de cada caso, procurando identificar, especialmente no caso brasileiro, a importância dos conceitos bakhtinianos de grotesco e carnavalização para a análise de Morse, buscando apontar algumas das formas especificas pelas quais esses conceitos podem iluminar a forma modernista de tratar o problema da identidade nacional.

Com esse conjunto de textos, tentamos oferecer uma discussão abrangente sobre a historiografia e a cultura histórica na América Espanhola, visitando países e períodos diferentes. Esperamos que essas reflexões ofereçam um ponto de partida para que potenciais interessados venham a investir em um campo de pesquisa com vastas possibilidades de investigação ainda em aberto.

Fabio Muruci dos Santos – Professor adjunto Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: fmuruci@yahoo.com.br


SANTOS, Fabio Muruci dos. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.4, n.7, nov. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Itamar Freitas

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