Enquanto veículo de um pensamento histórico academicamente reconhecido – como discurso da disciplina da história – a historiografia é obrigada a lidar, sempre que se quer digna de crédito, com a postulação do seu próprio campo, justificando-se quanto a fundamentos, interesses e procedimentos, e fazendo-o conforme o seu ofício: fazendo história.
Em outras palavras: pari passo à incursão propriamente filosófica, e à análise oriunda de outros campos do saber – as contribuições da sociologia, da psicologia, da antropologia, da ciência política e da linguística, para nos atermos tão somente às humanidades – o empreendimento teórico, para os historiadores, inclui a perspectiva temporal: o levantamento de dados, a construção de um acervo, ou memória historiográfica, a genealogia e – talvez o exercício mais evidente – a história intelectual, dos saberes e das ideias.
Quando o historiador se dedica a refletir sobre o seu lugar de fala, e sobre os compromissos que se vê compelido a firmar, junto a uma comunidade intelectual, para que seja reconhecido como um membro legítimo, ele já não se inclui no número daqueles que, por força dos mesmos procedimentos de legitimidade, realizam a “crítica historiográfica” – ou, como querem alguns, o “estado da arte”, no que toca à atividade monográfica em questão, artigos, dissertações e teses.
Não: além de tal procedimento, sem o qual não é reconhecido como um profissional, o historiador que se distancia e passa a criticar a própria comunidade, a adentrar o coração dos seus interesses, a dissecar os seus procedimentos, a compreender a sua própria atuação como um problema, e a cravar uma lança de dúvida no centro sensível do ofício, torna-se aquilo que – quer se compreenda como especialização, quer como questão de sobrevivência – poderíamos chamar de um “teórico da história”.
Um teórico é, ao mesmo tempo, e acima de tudo, um historiador. Pois o que se entende comumente por essa estranha e quase exótica figura é o historiador especializado na história da disciplina, nas formas de pensamento histórico, nas várias faces da produção historiográfica, nas contribuições oriundas de outras práticas e saberes – ou, em outras palavras, nas filosofias da história e no acervo filosófico e científico do Ocidente nos últimos duzentos anos (muito embora, recentemente, esteja-se voltando olhar para as diversas tradições epistemológicas ao redor do mundo – com as ressalvas que o emprego de tal termo reivindica – e com a chamada História Global).
Não obstante, a Revista interessa-se em ampliar a concepção do que se entende por essa exótica figura do teórico da história. Isso se faz discutindo a história da historiografia, mas não deixando de lado as implicações político-ideológicas, nem tampouco as funções sociais que essa mesma historiografia pode vir a ter. De modo que o debate se amplia para além de uma história da disciplina e toca mesmo a própria recepção desta produção historiográfica. Assim, com os artigos reunidos no dossiê, percebe-se que a historiografia transcende o espaço acadêmico e passa a desempenhar um papel na sociedade que a originou, como todo produto cultural. Refletir sobre o espaço de atuação da historiografia é da mais alta importância para o historiador: trata-se do momento em que as formas do pensamento histórico científico desempenham suas funções: individuais e / ou coletivas.
A história da historiografia transforma-se assim em um projeto, com interesses epistemológicos, políticos, éticos, dos quais apenas a reflexão teórica embasada cientificamente pode auxiliar no controle metódico destes elementos com vistas à feitura de uma história academicamente reconhecida e legítima. O velamento, intencional ou não, destes elementos levaria à uma historiografia acrítica, resultando em uma injustiça para com todo o trabalho que historiadores e demais pensadores tiveram na construção, e legitimação, histórica da disciplina da História.
O sétimo número da Revista de Teoria da História vem lançar luz sobre esta faceta do empreendimento teórico realizado pelos historiadores. Como vem fazendo desde o seu quarto número (dezembro de 2010), nossa publicação organiza um Dossiê com contribuições originais que se esmeram em trabalhar com a perspectiva da história dos saberes e das ideias e, sobretudo, com a importante questão da historiografia.
O número atual, Historiografia em perspectiva: histórias, projetos e saberes, começa com o artigo do professor convidado José d’Assunção Barros, intitulado Voltaire: considerações sobre sua Historiografia e Filosofia da História, que trata das principais características do pensamento histórico e da produção historiográfica do pensador francês, reivindicado, não raro, como um dos percursores da Disciplina da filosofia da história, por prenunciar ou vislumbrar uma série de questões pertinentes à historiografia nos séculos XIX e XX, ainda que não as tenha dado a solução que hoje se intenta.
Tratando do projeto político da monarquia dos Habsburgo no século XVI, o artigo de Rachel Saint-Williams, A Espanha imaginada: o discurso histórico seiscentista e o projeto de uma identidade coletiva espanhola, explora o expediente utilizado para produzir, a um nível ideológico, tal identidade coletiva: o discurso historiográfico presente, entre outras obras, na Historia General de España, do jesuíta Juan de Mariana.
Focalizando o cenário brasileiro, o artigo de Jussara Rodrigues da Silva, As regras de edição de documentos no Brasil do oitocentos: o trabalho de Francisco Adolfo de Varnhagen como editor, contribui com o conhecimento desta importante figura da história da historiografia brasileira, destacando seu papel como crítico das fontes e fixador de procedimentos de análise documental no século XIX.
Rafael Guilherme de Carvalho, por sua vez, trata, em seu artigo intitulado Hermenêutica e narrativa genética de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, da presença de algumas orientações específicas do pensamento histórico na obra do grande historiador brasileiro, com base nas contribuições teóricas de Jörn Rüsen.
No artigo Identidade e Regionalismo na obra de Evaldo Cabral de Mello, Manoel Carlos Fonseca de Alencar coloca em questão a pecha de obra regionalista, por vezes atribuída às contribuições do intelectual pernambucano, recorrendo ao trabalho de Michel Foucault.
Fechando o Dossiê, a contribuição de Wagner Geminiano dos Santos, A invenção da crítica historiográfica brasileira pós década de 1980: um campo de batalhas para modernos e pós-modernos, enfoca as mais recentes problemáticas levantadas no campo da história da historiografia brasileira, oferecendo um panorama sobre as noções recorrentes e as orientações distintas que conduzem, até os dias atuais, a reflexão sobre a historiografia em nosso país.
Esta edição da Revista de Teoria da História reforça ainda uma tendência que a caracteriza desde seus primeiros números: a promoção de um espaço para o debate sobre epistemologia e filosofia, contando com mais dois artigos que se colocam neste âmbito.
O primeiro deles, Tempo, método e crítica – Alegoria em Walter Benjamin e Representação em Henri Lefebvre, de Sidney Oliveira Pires Júnior, lida com conceitoschave nas obras de dois grandes pensadores que contribuíram grandemente para o pensamento histórico acadêmico no século XX, não obstante seus interesses mais amplos.
O segundo, de Saulo Gosta Val de Godoi, intitulado Freud, Wittgenstein e Ricoeur: fé, ceticismo e redenção do culto à linguagem, busca elucidar os diversos posicionamentos de três figuras centrais do século XX, investigando em cada um deles – e atentando-se a seus interesses intelectuais diversos – o tratamento dispensado ao problema da linguagem, que, nos últimos 50 anos, passou a ser central para o debate historiográfico.
A Revista espera que, diante de seus esforços em viabilizar um foro científico de contribuições para a disciplina da História, especialmente voltado para questões de caráter teórico, o leitor se veja em posição de se informar, criticar, questionar e contribuir para a discussão, que a cada dia ganha mais espaço em nosso país.
Os diretores.
ALVES, Frederick Gomes; ASSUNÇÃO, Marcello Felisberto M. de; BORGES, Clayton F. e F.; SARTIN, Philippe Delfino; OLIVEIRA, Flávio Silva de. Apresentação. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.7, n.1, jun, 2012. Acessar publicação original [DR]
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