O Dossiê Historiografia, História e Teoria das Artes e Interartes está organizado em dois conjuntos de textos – dois volumes da Revista Teoria da História (UFG), sob minha organização e apresentação.
I
No Primeiro Volume temos uma tradução de um texto de 1832 do livro Letters on Dancing de Théleur, e, um conjunto de artigos atravessados pela reconcepção do campo teórico conceitual da e na pesquisa histórica, atravessados por pensamentos que se referem à produção poética e performática.
O livro de Edward Théleur é traduzido aqui a partir do texto de 1832 (2ª. Edição, a primeira é indicada como sendo de 1831) e inclui o conjunto de textos raros no campo da pesquisa documental na História da Dança (Danças do Mundo). A obra completa, além das Letras ou Cartas sobre a Dança inclui diagramas e notações de diferentes tipos de danças. Se trata de um texto de Manual Técnico com Instruções para a Dança, aproximando os sistemas de notação dos estudos dos sistemas musicais, conforme era comum nos séculos XVIII e XIX.
Manuais de Instrução de Dança e Música são formas textuais recorrentes nos séculos XVIII e XIX. É comum encontrar termos como orchesography, para designar um sistema de compreensão da dança como investigação e notação baseado em figuras demonstrativas e mesmo personagens nas danças. Estes tipos revelam também determinados tipos de passos e regras para a movimentação dos membros superiores e dos membros inferiores. Eles visavam esclarecer e promover formas de divulgação do aprendizado dos diferentes tipos de dança, num vasto repertório das danças de salão. É bastante precário o registro documental destas formas culturais, estéticas e artísticas de dança a partir do século XX, que passou a se interessar, em grande parte, pelo documento da dança cênica moderna e, posteriormente, a dança contemporânea, privando e promovendo uma lacuna no que diz respeito a esta documentação da cultura dos salões de dança.
Estes manuais também envolviam, no espírito dos “estudos civilizacionais”, uma relação entre os modos de dançar e uma conduta ou etiqueta social e moral, revelando relações entre elegância e moralidade.
Todos estes livros estão acompanhados de seu par musical, apresentando peças musicais e diversos modos de representação gráfica e visual das danças e dos dançarinos.
Sua expectativa é de dar à Dança, este “exercício poético dos músculos do corpo”, um caráter de algo além da precariedade do seu registro documental, transformando-a em material passível de observação científica. Mesmo sendo uma arte cheia de método e técnica seus sistemas de registro – documentação e notação – sempre foram bastante carentes, dificultando o trabalho do teórico, do filósofo, do crítico analítico e do historiador desta arte.
Théleur demonstra as dificuldades existentes na construção de um texto técnico que possa passar para a ordem do texto histórico. Mesmo revelando-se observador da estética da dança cênica de sua época, o texto é uma forma de testemunho daquele integra o ofício profissional e da afirmação de um testemunho sobre as formas de registro da formalização da educação em dança – no ato de dançar.
O texto revela ainda e antecipa um desejo de transformar a prática cênica da dança numa ciência do movimento, algo que irá acontecer no calor das primeiras décadas do século XX.
O Primeiro Volume ainda apresenta uma Segunda Tradução, acompanhada de um texto de comentário. Consiste de um pequeno texto de Heinrich Wölfflin (1864-1945), Prolegômenos para uma Psicologia da Arquitetura: “Princípios do Julgamento Histórico” (1886), com texto de abertura e comentário de Murilo Gonçalves2, também tradutor do texto. A Psicologia (da Arte) como fundamento para uma Estética e uma História. Integrando o conjunto dos pesquisadores que formaram a escola vienense formalista, sua perspectiva de uma visibilidade pura como chave conceitual, permite a abertura de um trajeto cientificista – objetivista – no tratamento da arte e seus fenômenos assemelhados. Seu trabalho caracteriza-se por uma prevalência da reflexão e construção de um sistema teórico e de um procedimento metodológico rigoroso, numa compreensão comum à época, da constituição do tema da percepção como central para o entendimento e resultante analítica da arte.
É um passo de suma importância no avanço da produção do conhecimento histórico neste domínio, pois salta para fora do campo das biografias de artistas e propõe um recurso formal que permite estabelecer a classificação através de conjuntos estilísticos, uma perspectiva que pré-anuncia conceitos, teoria e método do estruturalismo do século XX.
Seus fundamentos estão em experimentos científicos como os de Konrad Fiedler (1841-1895), da psicologia das formas e teórico da visibilidade pura.
No campo da teoria e método instalados por Wölfflin, pouco são relevantes os aspectos biográficos, como já afirmamos, e, portanto, tampouco, interessam ao investigador dos objetos artísticos, os elementos que ressaltam a participação do contexto social e cultural nas obras. Seus estilos são amálgamas inteligentes da “vida das formas”, como teria dito Focillon. As formas são conjuntos densos causados por princípios repetitivos com variações de escala. Assim, os estilos podem corresponder a uma época, a uma nacionalidade ou exclusivamente a um indivíduo – a singularização radical de um estilo. Sua proposição nos permite, em continuidade a este raciocínio, reunir as obras artísticas numa linha evolutiva estilística, que nos permite compreender o que um estilo geral – uma tipologia como a de Renascimento e Barroco, por ele utilizada -, um estilo por divisões territoriais (políticas, culturais) entre as nações, ousando separar os Renascimentos por italiano, francês, inglês, por exemplo, e, ainda, reconhecer uma tessitura estilística na obra de um determinado artista, acompanhando sua formação e evolução.
Wölfflin, como todo o grupo vienense do período, representa o momento de separação entre a História e a História da Arte, afirmando a disciplina como campo autônomo de conhecimento, com teoria e metodologia próprias e, portanto, com formação específica e especializada.
O texto de eleição do tradutor / apresentador para este volume procura responder a um conjunto de questionamentos diretamente relacionados a este momento de constituição autonomizada. O que é objeto do historiador propriamente dito quando no campo do objeto artístico?
Procurando explorar um outro aspecto da obra, marginalmente acentuado, Gonçalves ressalta que o texto de Wölfflin identifica na forma visual um bloco que conjuga o sensível no inteligível, revelando este direcionamento no campo do objeto arquitetônico, da edificação. Escultura e arquitetura são alvo de experiência de ordem cinestésica (de percepção corporalizada do mundo, envolvendo características como o peso, a resistência, as posições do corpo, os planos, a movimentação) e sinestésica (de ordem sensorial e linguageira, o que costumamos denominar de tradução interpercepções), o que me fez a alguns anos cunhar o termo “scinestésico”, como exigência para o tratamento dos objetos sensoriais e sensíveis como as obras e os processos artísticos.
Assim, além da imagem visual o corpo passa a integrar um vetor para a análise do objeto. Tudo isto leva da filosofia categorial da percepção a uma psicologia “científica” da percepção, na construção de modelos subjetivos de abordagem dos fenômenos sensíveis. O autor do comentário ressalta a extrema importância dada ao olho – sua fisiologia e psicologia – como centrais para abordar o mundo das experiências como um todo. A metáfora visual – e do olho e do olhar – é a muito explorada e se transformou num celeiro para a interpretação do mundo como imagem.
Partindo deste zoneamento e problematização, o tradutor revisa as relações e contaminações existentes entre diferentes formações das teorias da percepção e da sensação / percepção, suas fisiologias e a formação de uma sensibilidade e de uma estética do tipo física. O problema que se enuncia desde este momento e que segue sendo um enigma ao pesquisador do campo artístico é como determinar o lugar / presença / concepção da posição dos afetos no domínio da cognição dos objetos.
Ou seja, somos afetados – aficionados – passivamente ou entramos em fusão afetiva com o mundo e com os objetos – posição empática? Ou toda a afecção é um processo exclusivamente interiorizado, resultante de uma sequência de atos orgânicos que repousam e se consolidam em formas e experiência? E, como disto tudo, resultam as representações das coisas? São elas produtos radicalmente subjetivos ou radicalmente objetivos?
Como o tradutor demonstra a solução, entre os séculos XIX e XX, se encontra no desenvolvimento de teorias do campo simbólico – teorias do símbolo, algumas mais voltadas à conjunção corporal e outras em separação corpo-mente.
As teses do período representam de modo exemplar as passagens entre todo o arcabouço do Romantismo alemão – embasado numa teoria holística e mística do sujeito, da subjetividade, da experiência, da estética e da arte, com grandes afinidades com o pensamento religioso – e as passagens para um pensamento cientificista, que culminará no projeto de uma “psicologia científica” (parafraseando um termo de uso freudiano) da arte, com diferentes versões do modelo de Psicologia da Percepção. Todos estes desenvolvimentos que transitam entre sensação, percepção, corpo, experiência, tempo, espaço, etc., irão configurar as bases das teorias modernas da arte, seja no campo das visualidades, seja nas teorias das artes do corpo, tendo como exemplo as heranças deste pensamento holístico e científico na obra de Rudolf Laban.
Mesmo tendo aberto uma nova dimensão para o saber científico referente às artes – temporais e espaciais, e, em suas formas-experiências – há algo que não deve ser esquecido, as relações formalizáveis são aquelas capazes de serem percebidas nos termos de simetria, proporcionalidade, harmonização e ritmo. Nestes termos, há uma redução da experiência e das potencialidades do fazer artístico, configurando uma estilística quase sempre tendendo a um tipo de equilibração do jogo de forças. E quando não há um equilíbrio interno, deve-se entender o equilíbrio como a resultante pendular entre os movimentos retilíneos e os movimentos curvilíneos, entre o clássico e o barroco, entre a linha e a dobradura. Ao fim, durante uma existência, a percepção estética que convém ao corpo é aquela que produz um melhor resultado no campo do senso (e nunca do dissenso). As formas e seus padrões são internalizados. Esta é a lei que vigora na produção teórica do período.
Em muito a vivência da arquitetura de um Peter Einsenmann ultrapassou a perspectiva enunciada por Wölfflin. Pois as relações entre corpo e espaço ultrapassam em muito às leis de geometrização. Tal como nas danças de corte – depois transformadas em danças de salão e nos rigorosos sistemas do ballet barroco – tudo implicava em arte em alcançar uma experiência geometricamente consistente. Uma matematização se encontrava no fundo de todas as coisas.
Os grandes sistemas modernos são devedores dos passos dados pelo formalismo. Na perspectiva sintomal da atualidade, não apenas reler Wölfflin, é de suma importância para a reconstituição de um debate histórico – posição comum a certos perfis historicistas e revisionistas da História e da História da Arte, mas também, permite estabelecer diagramas de comparação com o debate contemporâneo.
De um lado, a radicalização filosófica de uma teoria do campo dos afetos é presente no cenário da Teoria e da História da Arte.
E deste mesmo lado, deve-se considerar a leitura transversal destes autores que são pouco lidos ou escutados na tradição recente. É importante observar como o sistema proposto por Wölfflin, mesmo distante, possui interlocuções com a invenção de um campo teórico paralelo, nas teorias simbólicas da imagem, nas formas do anacronismo. Disso resulta que um estudo do apagamento e do esquecimento e dos modismos entre autores – atualmente a voga histórica exige sempre a citação e a presença de um importante autor relegado a um longo silêncio, Aby Warburg – determinará que, em algum momento, aspectos poucos iluminados na leitura do sistema wolffliniano deverão retornar e vir à tona.
De outro, uma posição radicalmente nova começa a ser encenada no campo da História e das Artes, a presença marcante de um campo disciplinar denominado de Neurociências. Este, afirma uma nova concepção da experiência cerebral-corporal e irá permitir revisar os usos “dezenovistas” de teorias do sensível que ainda dão frutos nas Ciências Humanas e Sociais. Eis aí um grande desafio que foi enfrentado em seu tempo por historiadores – das artes, neste caso – profundamente interessados e desafiados em alçar voos e parcerias com a epistemologia e com as produções das ciências naturais – as biomedicinas – de seu tempo. Dificilmente, no campo das atualidades, em nossas academias, encontramos esta ousadia, de provocar e produzir trabalhos teóricos que sejam resultantes da conversação direta com a produção teórica e das resultantes científicas contemporâneas. Ao contrário, a especialização e separação radical de saberes no domínio acadêmico, mesmo quando se fala de inter e transdisciplinaridade, mantém este exercício na sua superficialidade pedagógica.
II
Na continuação, no campo de investigação da História como Poética e Performance, reunimos um conjunto de textos de investigadoras brasileiras, todas elas com formação ou interlocução direta com o campo da pesquisa histórica, revelando como suas produções são atravessadas por uma forte preocupação em dar notoriedade e igual relevância aos sistemas e processos artísticos e estéticos diante do conjunto do pensamento histórico.
Estas reflexões se encontram presentes nos textos de Valquiria Guimarães Duarte (UFG), Celma Paese (UNIRITTER) e Roberta Edelweiss (UNIRITTER), Ana Rita Vidica (UFG) e Clarisse Ismério (URCAMP).
A performance é um eixo que dialoga com a produção do objeto material e seu tratamento e com um modo de produzir travessias interobjetais, elegendo o caminhar e a intervenção urbana como aproximações dinâmicas de objetos tradicionalmente apresentados como fixos, estáveis e prioritariamente materiais. A dimensão da experiência é altamente valorizada e uma pragmática das enunciações é uma condição preponderante na aproximação destes textos.
Narrativa e Performance: Por uma Hermenêutica do Edificado, As Vanguardas do Século XX e o Caminhar como Prática Estética no Camponês de Paris e Um Modo Anacrônico de Olhar as Imagens das Obras de Intervenção Urbana olham para a Arquitetura, para o Urbanismo, para a Cidade, para a Edificação, para a Paisagem, de forma a valorizar e acentuar suas dimensões narratológicas e de trajetos e experiências.
Além disso ressaltam algo de vocação recente na Historiografia brasileira e, mais especialmente, no tratamento dos objetos artísticos, sua vocação para a pesquisa aplicada e de proposição projetual e de intervenção, acompanhando assim, numa conversa, com o texto Um Outro Olhar sobre os Cemitérios: Refletindo a Arte Cemiterial sob a perspectiva das Pesquisas, Ações, Passeios e Eventos Culturais, de Clarisse Ismério. As preocupações prementes envolvem um olhar crítico, mas também um sentido comum ao pensamento de autores pragmatista norte-americanos no seu modo de abordar o campo da História, como lugar de ação e de negociação de conceitos.
O mesmo campo e problema de Ismério reaparece no texto Olhares para a Dança – História e afetos da Dança Cênica Goianiense 1970-2000, de Luciana Gomes Ribeiro (IFG) e Valeria Maria Chaves Figueiredo (UFG). Partindo da investigação de doutoramento em História e das preocupações de ambas as pesquisadoras da dança com a investigação no campo da Memória Social e Cultural Artística, o texto aponta para um modo do fazer histórico vinculado à instalação de um problema de pesquisa que passa da investigação à ação e à intervenção social, sob a forma de um projeto expositivo e sua museografia. Assim, Ismério, Ribeiro e Figueiredo, em seus textos nos contam das formas como uma pesquisa histórica se transforma, ela própria, num agente promotor de cultura.
O último texto deste primeiro volume A Máscara do Boi e os Mascarados de Pirinópolis e o Carnaval em Pentecostes, de Maria Cristina Bonetti (UEG) retoma a problemática da história das danças tradicionais populares, a partir de um conjunto referente a sua pesquisa de pós-doutoramento em História (UFG). Voltando à pesquisa documental no campo das danças tradicionais e renovando os estudos do folclore, sua pesquisa integra uma premissa de erudição e de relações transcontinentais entre diferentes culturas populares tradicionais. Estas viajam do além-mar para o interior do Brasil e demonstram os processos de atualização de uma tradição numa performance de dança. O estudo de Bonetti é de suma importância no momento atual, cujo embate entre diferentes concepções de popular em suas formas de cultura urbana moderna e de cultura étnico-racial acabam por tornar frágil a investigação das migrações das tradições, as formas das recorrência e sobrevivências formais, gestuais e de movimentação corporal e cênica.
O artigo de Duarte apresenta momentos distintos na reflexão referente ao objeto arquitetônico tomado como parte integrante do conjunto dos objetos artísticos e, portanto, integrando o campo mais vasto da História da Arte e da Literatura. Iniciando seu percurso por um viés hermenêutico, a autora apresenta a proposição ricoeuriana, cara ao pensamento histórico – da filosofia, historiografia e teoria da História – revelando a marca narrativa presente no corpo do pensamento da História quando esta se reconhece nas formas da memória e do testemunho e no relacionamento entre os princípios narratológicos (de fundo aristotélico) e a abordagem temporalizada dos objetos.
Desta condição ela revela um primeiro tempo contemporâneo referente à reflexão do objeto arquitetônico-artístico de interesse do historiador, tido com objeto temporalizado pois narrativizado. Sua perspectiva enseja refletir um momento bastante atual da História da Arquitetura, na qual teoria e metodologia se encontram combinadas no ir e vir do círculo hermenêutico, fazendo deste momento e conceito de historicidade algo afins ao entendimento do objeto literário (narrativa literária).
Num segundo momento, a historiadora da arquitetura aponta para um modelo semiótico que entra em diálogo direto e extensivo com o campo da pré-figuração arquitetônica, seus trajetos históricos, filiações que se desvelam em conjuntos estilísticos, em legados, em heranças, em formação de linhagens e num conjunto vocabular reconhecido como o repertório de uma determinada formação cultural e profissional.
Caracteriza semioticamente o momento contemporâneo como pertencente a uma lógica intervalar, revelando a problemática da constituição epistêmica dos objetos contemporâneos. Seguindo uma tendência bastante atual no campo das Teorias da Contemporaneidade, a autora aponta para uma escolha que, iniciada na relação de afinidades e comparação entre Arquitetura, História e Narrativa (Literatura), se expande para uma concepção transdisciplinar da teoria, do método e do objeto entendido como híbrido. Esta perspectiva de abordagem ultrapassa a identificação narrativa para uma concepção performática do objeto da História.
Assim, a História do Objeto Arquitetônico se expande não apenas para o entendimento das relações e interferências do campo artístico na arquitetura como também um vice-versa deste procedimento. É a arquitetura que também afeta a arte. Partindo das teorias de VIDLER observa e identifica três princípios presentes na arquitetura contemporânea (paisagens, analogias biológicas e programas complexos) que desconstroem eles próprios a configuração do objeto edificado tradicional alvo da História desta disciplina.
Importante ressaltar a presença de autores contemporâneos tais como Glusberg e Lauxerois e Szendy, estudiosos do campo da Performance e o modo como estas abordagens cênicas, semióticas e rituais (antropológicas) acabam por se integrar ao campo da investigação histórica mais recente, tal como ocorre com as concepções do sensível e da história das sensibilidades, uma história atravessada por diferentes e expandidas concepções de performance integra o cenário nesta produção historiográfica recente, envolvendo um campo inaugurado pelo grupo de historiadores atraídos e / ou atravessados pela tradição filosófica benjaminiana, numa perspectiva cinemática e num paradigma do audiovisual na concepção da própria modernidade, em sua experiência e em seu conceito. Assim, a história das artes passa a ser escrita num viés que atrai uma concepção de um sensível ampliado – ótico e sonoro, performático – e numa relação direta com a história tecnológica dos dispositivos – tecnoestéticos e de poder.
A autora ainda propõe a criação de categorias, utilizadas originalmente na sua tese de doutoramento em História, ampliando a proposição da narrativização para uma perspectiva performática do objeto arquitetônico em sua historicidade (performance conceitual, performance processual, In e Out Doors, e, performance técnica e tecnológica).
O segundo artigo deste Dossiê de autoria de Paese e Edelweiss, pesquisadoras do PPG Arquitetura e Urbanismo da UNIRITTER, dão continuidade à reflexão de cunho performático no campo da pesquisa histórica. O que ocorre quando o objeto é uma ação? O que isto implica nos procedimentos metodológicos de pesquisa e na prática da escrita de uma disciplina como a História da Arte e a História da Arquitetura. O caminhar, presente nas artes da cena e do corpo (o caminhar é parte do corpus gestual da dança contemporânea) é apresentado neste texto como objeto artístico, político e estético, uma metodologia processual para a pesquisa e, no âmbito macrossocial, como forma e novidade nas relações entre a arte e a cidade (o que será também alvo do texto de Ana Rita Vidica).
Este é um trabalho que se configura em diálogo com a Novíssima História Cultural discutindo as deambulações, as ambiências e as paisagens, como formas das sensações e das percepções, numa história do sensível e dos sentimentos. Estudando e analisando documentos de artistas – e os manifestos das vanguardas do século XX – o texto revela as articulações com a constituição de um mais vasto campo epistêmico, numa redefinição de diversos objetos cognitivos.
Assim, o caminhar, o deambular, afirmam-se como ato estético-político e como ato onírico, revelando as relações das artes com as transformações da paisagem do conhecimento científico do mundo moderno.
Este é um outro modo de contar uma história da cidade na forma de uma história do sensível, do passeio e dos mapas afetivos – um exemplo aqui tratado é o do mapa surrealista – que atravessam a constituição de uma geografia cognitiva da ambiência.
O trabalho é um desdobramento de diversas investigações exploradas pela pesquisadora Celma Paese desde sua dissertação de mestrado sobre a prática socioestética por Paese em suas reflexões em torno de uma arquitetura móvel.
O artigo de Ana Rita Vidica tem como objeto um conceito operacional da Historiografia da História da Arte na contemporaneidade, o anacronismo na perspectiva de Georges Didi-Huberman. O objeto de investigação, o corpus da sua pesquisa e seu debate teórico-metodológico apresentado por Vidica apresentam um tratamento que se aproxima em muito dos recursos das escolas francesas de pensamento, partir de uma construção teórico, fundamentada em modelos, e, neste caso, os de Georges DidiHuberman e Gilles Deleuze, e, traçar uma outra perspectiva para o problema do estudo de caso. Pois é disto que se trata em grande parte, um recorte preciso caracterizando um estudo de caso em História, montado não exclusivamente a partir do objeto empírico da investigação, mas do seu modelo teórico. Este texto segue estritamente os desdobramentos sofridos pela História, enquanto disciplina científica e acadêmica, a partir do pós-estruturalismo e da desconstrução.
A generosidade da História se apresenta em grande parte neste Dossiê, já que a grande maioria das reflexões históricas e historiográficas aqui propostas, advém de autoras com formação inicial em outros campos do saber, trilhando sempre algo que se apresenta como uma característica nos historiadores das artes em particular, uma formação inter e transdisciplinar e um raciocínio transversal para seus objetos – que podem ser também, como revelam os textos de Paese e Edelweiss e de Vidica, alvo de afetos.
A noção deleuziana de Ato Criador perpassa diferentes textos aqui reunidos. A problemática epistemológica e a interface existente entre os três campos do pensamento moderno – a Arte, a Ciência e a Filosofia – revelam que uma boa História da Arte deve ser capaz de saber parar de ser História para ser Arte, evitando os efeitos nefastos da excessiva teorização das Ciências Humanas em relação aos modos de operar do conhecimento e do fazer-saber artísticos. O mesmo deve ser dito a respeito de Georges Didi-Huberman, autor que transita pela bibliografia recente da nossa História e História e Teoria das Artes, quando se revela capaz de enunciar um posicionamento crítico em face da História e da História da Arte, que desde o século XIX desenvolveram diversas tentativas em se transformar em “lentes da verdade” e esqueceram que um entendimento da obra artística – sua feitura, sua técnica, seu processo – exige o reconhecimento de uma “história interna à própria obra”.
O texto de Ismério Um Outro Olhar sobre os Cemitérios aborda a transformação dos objetos de investigação histórica em objetos atravessados pela concepção antropológica e sociológica de bem cultural e de produto cultural e modelos de pesquisa-ação, apontando para novas formas da pesquisa aplicada, nas relações acadêmicas entre os eixos da pesquisa e da extensão universitárias. É uma História da Arte carregada de espírito sociológico.
O texto revela que a escrita da História da Arte também se ampliou para objetos não tradicionalmente artísticos, como os cemitérios.
Os artigos de Luciana Ribeiro e Valéria Figueiredo e Maria Cristina Bonetti, ambos, têm como objeto de investigação as danças. O texto de Ribeiro e Figueiredo se faz valer de noções como memória, oralidade e cartografia (afetiva) para abordar a história estética das manifestações artísticas no contexto goiano, entre os anos 1970 e 2000 na cidade de Goiânia. Nestes termos, também integram as preocupações dos textos anteriores, num conjunto de pesquisas históricas que, a cada vez mais, se atraem por objetos carregados afetivamente, subjetivados. Mas também estabelecem um diálogo com o texto de Ismério no sentido de manter um horizonte de pesquisa aplicada, voltada para, ao seu término, a proposição de um projeto expositivo e um site informativo.
A concepção de memória que perpassa a grande parte dos textos aqui apresentados é bastante diversa do tratamento comumente encontrado nos Estudos Clássicos da Memória. Sensação e percepção são parte do escopo de uma pesquisa que começa na coleta de fragmentos orais e visuais, produzindo uma colcha de retalhos referente ao período histórico, mantendo ativa a força do pensamento nas lacunas (pensar nos intervalos, nas frestas).
O artigo de Bonetti encerra este primeiro volume do Dossiê e é parte do estágio pós-doutoral da autora no campo da pesquisa histórica. Ele trata exatamente de uma pesquisa no campo da História Antropológica da Dança, envolvendo o estudo da história das máscaras, seus usos e significações nos contextos de festas, de arte e danças. Sua perspectiva de análise retoma a perspectiva dos estudos comparativos de cunho transnacional e dos estudos e relações entra tradições e migrações Brasil e Portugal. Este texto nos permite pensar de forma mais abrangente sobre o pouco interesse na História das Artes em retraçar os caminhos e relações entre Brasil e Portugal (estes estudos são quase sempre restritos aos estudos referentes aos períodos colonial e imperial da história brasileira) e a forte presença da cultura portuguesa na história da cultura tradicional e da cultura popular no Brasil. O artigo também ergue a toalha e nos deixe entrever a importância de se recuperar os estudos realizados por autores do campo do Folclore brasileiro, ao mesmo tempo, que demonstra um interesse e uma necessidade em incorporar conceitos tais como, patrimônio imaterial, teatralidade, performance, e, como estes operadores conceituais atravessam e modificam o tratamento histórico destes objetos de investigação.
III
A História da Arte e das Artes, aqui estão representadas por estudos que envolvem desde a cidade, a arquitetura, a intervenção urbana, o corpo, a dança, valorizando a conversação com diferentes modelos de abordagem do objeto, desde análises históricas do tipo comparado, traçados das relações epistêmicas das artes com o pensamento mágico, religioso e simbólico, e, ultrapassagens da função representacional e revalorização estratégica da ferramenta conceitual operacional denominada de Arte para fazer pensar e movimentar o campo da História e suas investigações.
Para finalizar esta apreciação que antecipa a segunda etapa desta tarefa e a apresentação de mais um conjunto de textos que refletem sobre o campo da História e da Historiografia das Artes, uma questão central que se enuncia ao fundo e no horizonte é a relação entre as artes e as temporalidades. O tempo cronológico não é o único modo de dar tratamento ao tempo, já sabe o historiador. Na História das Artes, esta é uma questão central. As artes são labirintos para diversas ordens de temporalidades envolvendo o Cronos, o Aion e o Kairós.
Nossas relações com o vivido e com a experiência, seja na imersão, na processualidades ou na fruição dos objetos artísticos, são lugares sensíveis que revelam muitas destas relações com suas lógicas e suas desordens. Temos relações afectuais, sensorializadas e perceptíveis, dando ao tempo uma carnalidade, lugar fenomenológico, do tempo Kairós.
Temos ainda uma relação do tipo Aion, como síntese operadora entre o Cronos e o Kairós, transformando a linearidade e a passagem em sensação-percepção de duração (revelações do bergsonismo), transformando o tempo das horas, dias, anos, décadas e séculos em experiência. Este Aion é um ponto de inflexão fortemente presente no Historiador dos Objetos Sensíveis feito Inteligíveis. É neste lugar que consigo apreender e compreender a premissa da História Interna do Objeto Artístico, nesta unidade entre a percepção (instantânea) e a duração (transbordamento da percepção na forma da experiência e seu dilatar-se para frente e para trás, desordenando e realinhando a linearidade).
Minha simpatia e empatia por este conjunto de textos é que, todos eles, de modos maiores e menores, se permitem estar neste lugar sintomal da temporalidade, nesta prontidão do Kairós (tempo-experiência) articulada no Cronos (medição e passagem, instalação de um modelo de linearidade), revelando que fazer História é, articular passado / presente / futuro, como também, articular intensidade / extensão (medida) / descronização e anacronismo, fazendo do Aion o terceiro termo do tempo, necessário para uma apreensão sensível daquilo que se torna objeto de uma cognição.
Tudo é instante e extensão e no instante é possível a abertura da extensão (e da infinitude do Tempo) ao Aion, a finitude da existência no infinito do sentido. Eis a questão, sentir é infinito na vida finita. E esta não é uma questão da arte, ultrapassa a arte em tudo. O que a Arte produz e provoca é este bloco de sensação infinita numa matéria finita e por isso ela é mais próxima do Aion e fica em pé para além das sensações e das percepções individuais.
IV
Assim, esta Apresentação é um convite à leitura dos seguintes textos, apresentados na seguinte ordenação:
Uma boa leitura e apreciação, pois como afirmei em outro momento, os signos – quaisquer que sejam – produzem efeitos sobre outros signos, sejam elas os signos da subjetivação, que definem esta zona precária denominada de “eu”, provocando afetos. Que estes afetos sejam capazes de promover novas leituras e deslocamentos nos regimes de signos vigentes.
Nota dos editores
Em conjunto ao dossiê publicamos também três artigos avulsos e duas entrevistas. O texto O trágico e a modernidade em Schiller de Géssica Góes Guimarães abre a sessão dos artigos. A autora explora o trágico, não em busca de uma teoria única sobre o trágico, mas como este se encontra no pensamento de Schiller. Para tal, Gaio explora a analogia deste com a modernidade e o processo histórico, vistos como ação. Já no artigo de Raylane Marques Sousa e de Eduardo Ferreira Chagas História e genealogia: Notas sobre uma história genealógica e afirmadora da vida no pensamento de Nietzsche apresenta a concepção de História de Nietzsche, uma concepção genealógica e afirmadora da vida, que possui elementos da Historia Magistra Vitae dos antigos, bem como elementos da Filologia e da História Científica, mas, ainda sim, demarcando fronteiras com estas. Delio Cantimori e o idealismo atualista: reflexões sobre estado, política e história (1924-1940) de Felipe Araujo Xavier há uma analise do processo de formação intelectual e política do italiano Delio Cantimori a partir de seus estudos em Pisa e contato com diversos colegas e professores. Em especial é apresentada a influência dos professores Giovanni Gentili e Giuseppe Saitta, ambos fascistas, e sua auto-reflexão posterior sobre esse momento de formação. O pensamento de Cantimori sobre o Estado e os seus estudos históricos sobre os hereges do Cinquecento no debate entre Humanismo, Renascimento, Reforma, Risorgimento, Fascismo também serão apresentados.
Em Por que não sou sábio? Um comentário sobre a resposta de Hans-Georg Gadamer ao elogio de Reinhart Koselleck, Francisco Gouvea revisita o breve colóquio que tomou lugar quando da homenagem de Koselleck a Gadamer. Voltando-se especificamente à resposta do segundo, Gouvea pretende, a partir disso, comparar o projeto de ambos, confrontando o escopo de uma História dos Conceitos com o de uma Hermenêutica filosófica, e, então, apresentar seus resultados para uma Teoria da História. Abrimos a seção de entrevistas com o prof. congolês Elikia M’Bokolo em uma conversa sobre a história e historiografia africana contemporânea. A mesma foi realizada em Goiânia na ocasião de sua participação no I Seminário de História da África e suas Diásporas. Já na entrevista com o Prof. Wagner Pinheiro Pereira, realizada no último dia da XVI Semana de História História, cinema e narrativas audiovisuais vislumbramos as dificuldades e as idiossincrasias dos aspectos teóricosmetodológicos de se trabalhar com fontes fílmicas. Nessa entrevista, temos a explanação de uma intensa bibliografia sobre a relação História e Cinema, como também a função social de pesquisas que tomam o Cinema como uma fonte histórica, sobretudo o Cinema de Propaganda nazi-fascista. Desejamos a todos uma boa leitura e agradecemos a todos que contribuíram para a constituição desse volume.
Notas
1. UFRGS, ESEFID, curso de Licenciatura em Dança (COMGRAD DANÇA). Professor e pesquisador da UFG (FEFD UFG e PPGH FH UFG) em exercício na UFRGS. Líder do GP CNPq UFG INTERARTES PROCESSOS E SISTEMAS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE e membro do GP GRACE (ESEFID UFRGS) e do GP ARQUITETURA, DERRIDA, APROXIMAÇÕES (UFRGS PROPAR).
2. Título original da obra: “Prolegomena zu einer Psychologie der Architektur”; do capítulo: “Prinzipien der historischen Beurteilung”.
Marcio Pizarro Noronha1 – Doutor. Membro do Conselho Editorial da RTH. 1 UFRGS, ESEFID, curso de Licenciatura em Dança (COMGRAD DANÇA). Professor e pesquisador da UFG (FEFD UFG e PPGH FH UFG) em exercício na UFRGS. Líder do GP CNPq UFG INTERARTES PROCESSOS E SISTEMAS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE e membro do GP GRACE (ESEFID UFRGS) e do GP ARQUITETURA, DERRIDA, APROXIMAÇÕES (UFRGS PROPAR)
NORONHA, Marcio Pizarro. Apresentação. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.18, n.2, dezembro, 2017. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
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