Historiografia e História das Artes 2: da história institucional à revisão e leitura crítica dos procedimentos na escrita da História da Arte / Revista de Teoria da História / 2018
O Dossiê Historiografia, História e Teoria das Artes e Interartes está organizado em dois conjuntos de textos – dois volumes da Revista de Teoria da História (UFG), sob minha organização e apresentação.
I
O Dossiê apresenta as traduções de dois textos documentais no campo da História da Dança e das Danças de Salão. O primeiro deles é de 1922 (1921), THE ONE STEP – LEARN THE FOX TROT BEFORE LEARNING THE ONE STEP, dos Manuais dos estúdios de Arthur Murray. Trata-se de um Manual de um estúdio de dança de NYC (Arthur Murray) no início da década de 1920, cujo objeto é o ensino-aprendizagem do THE ONE STEP. Como no primeiro volume, buscamos apresentar documentos inéditos, voltados para a recuperação de documentos que articulam concepção de dança (a dança como um sistema de passos), um livro de lições e um sistema de aprendizagem e um conjunto de elementos valorativos distribuídos no corpo do texto, ressaltando aspectos metafóricos, questões de gênero e relações de poder imiscuídas.
Estamos no coração da era do Ragtime.
O ONE-STEP é um sistema de dança de salão baseado em diversas danças de trote. As danças de trote são intimamente vinculadas à urbanização e à formação de uma cultura juvenil urbana, tendo diferentes origens regionais e seguindo seu caminho rumo a uma publicização espetacularizada no mundo da Broadway na década de 1910. O sistema desta dança é bastante simples e se encontra muito distante das formas do dançar nos salões das cortes dos séculos XVII e XVIII.
O FOX TROT (FOX-TROTE) é um sistema paralelo que acabou ganhando notoriedade na cultura musical de Hollywood, por ser um híbrido entre o TROT (TROTE) e a VALSA.
Estas danças representam um momento inaugural nas danças modernas, populares e urbanas, promovendo uma das primeiras confluências entre os sistemas artísticos eruditos (da dança moderna) com as danças populares e urbanas.
Consistia exatamente num sistema que simplificava o ato de dançar e dando o passo rumo a uma dança de salão individualizada e com um passo único. Nomes populares foram comumente utilizados para apresentar as variações do ONE STEP, envolvendo metáforas e alegorias de animais, de objetos técnicos, etc.
Nos anos 1920, o termo ONE STEP já se encontra em desuso, mas sua prática está presente na cultura do FOX TROT.
O mais importante nesta forma de dançar é a redução do papel roteirizado da dança, ou seja, o aprendizado da dança não mais diz respeito às tradições da repetição e da definição de um campo estilístico (nacional e regionalizado). Ela diz respeito a modos de traduzir em passos da dança os passos de diferentes estilos de caminhada. A dança moderna de salão é uma dança voltada para corpos reais e não dançantes, o que a caracteriza efetivamente como integrando o campo epistemológico da dança moderna e da dança contemporânea.
Outros estilos de dança de salão são comuns e populares na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, oscilando entre a valsa e sua combinação com o trote na geração do fox-trot, formas do tango, do maxixe e, logo em seguida, do samba.
Mesmo assim, em grande parte, as danças de salão se encontram separadas da dança moderna autoral e erudita – dos grandes criadores – e seu lugar histórico e artístico será algumas vezes retomado em diferentes grupos e formas da dança contemporânea.
Arthur Murray, o autor, foi um importante dançarino, professor e divulgador das danças de salão na sua compreensão ampliada como formas sociais da dança. Ele escrevia manuais, administrava a escola de dança, promovia seus salões de dança e criou diferentes programas de dança, incluindo aí a primeira transmissão de músicas de dança no rádio. Murray transformou sua escola num sistema e este acompanhou outras formas da cultura das mercadorias, transformando-se numa forma franqueada (ARTHUR MURRAY INTERNACIONAL, INC.) – com marca registrada e gestão da própria marca – expandindo seu sistema simplificado de aulas e entretenimento para diversas partes do mundo (pós-1938).
Seu sistema incluía os manuais didáticos com aulas através dos correios, programas de rádio e outros veículos de comunicação. A dança social inaugurada por Murray se encontra nas origens de uma cadeia de livros-manuais, DVD’S e aulas em canais do YouTube.
Na década de 1950 inaugurou um estilo de programa que se encontra presente até os dias atuais, os Programas de Dança na TV. Iniciando com spots de 15 minutos na cadeia de TV CBS, deu-se aí uma forma de ensino televisionado – um tipo de telecurso – de dança ao mesmo tempo que um show, um espetáculo, um modo de entretenimento – o ARTHUR MURRAY DANCE PARTY.
A era dourada dos anos 1950 foi toda ela acompanhada pelos passos do casal Murray.
Também foi um grande estimulador da presença das danças denominadas de “latinas” nos EUA, considerando-as uma outra ramificação dos TROTS.
Estes caíram em desuso em boa parte dos anos 1960 e 1970 e reapareceram no contexto da ERA DISCO.
Este pequeno texto que aqui apresentamos revela um momento inicial na produção do complexo e de uma era Murray das danças sociais.
O segundo texto é de 1938, THE BIG APPLE – THE LATEST MODERN DANCE, de Norma Goldman.
O segundo texto integra também o conjunto das danças sociais e é um documento da sua história. Mesmo sendo também um manual da dança BIG APPLE, suas origens são bastante diversas em relação as danças da escola Murray (que oscilava entre os diferentes grupos de TROTS e as danças latinas), mesmo que este tenha sido um estilo que tenha se tornado um dos carros-chefes do casal Murray. Murray, em realidade, assisti uma versão da Broadway e após, incorpora a dança ao seu repertório, criando um curso de dez aulas com passos simplificados.
A história da BIG APPLE está associada à cultura afro americana e às tensões entre segregação racial e incorporação da cultura artística, estética e do movimento de homens e mulheres negros na sociedade abrangente norte-americana. A bibliografia faz constar diferentes origens em personagens, lugares e cronologias. Ela pode estar associada a um clube na Carolina do Sul, o BIG APPLE NIGHT CLUB, a uma dança ritual dos escravos negros no sul dos EUA, no século XVIII,
O texto é um manual para o aprendizado da Big Apple. Desde seu início ele também aponta para a importância de um líder ou um condutor (vocal, inclusive) da dança, pois ela é toda contada – os passos e a sequência dos movimentos são cantados pelo líder, que estabelece o ritmo do grupo. O líder chama à exibição no centro da roda (é um tipo de dança de roda popular e uma dança circular de origem sagrada), estabelecendo uma tradição de dança de grupo combinada com uma dança solo de casal, valorizando a diferenciação das performances artísticas.
Integra o momento da passagem do ragtime para uma cultura jazzística afro americana e revela os modos e mecanismos de popularização e branqueamento (com saída dos guetos e do contexto local) de estilos de dançar.
A Broadway posteriormente tomará o estilo BIG APPLE e integrará a diversas de suas coreografias, mas com a presença de bailarinas brancas. O cinema também irá adotar a BIG APPLE. As culturas do espetáculo trarão uma nova conotação a estas danças sociais.
Para todas estas danças existem registros audiovisuais, sejam os das escolas oficiais, de trechos de espetáculos e filmes, como também alguns registros realizados no interior dos clubes de jazz.
A onda do jazz em suas formas populares dançadas tem sua culminância entre a segunda metade da década de 1930 e os anos 1940, transitando posteriormente para novas subdivisões, e, abrindo espaço para a cultura do rockabilly e do rock’n’roll, entre os anos 1950 e 1960.
Deste modo, a contribuição destes textos eleitos para sua apresentação em tradução para a língua portuguesa, dizem respeito a um período das danças sociais que oscila entre os anos 1900 aos anos 1940. Período de formação das culturas do espetáculo e da indústria do entretenimento nos EUA e do alcance restrito das formas de negociação da presença artística de negros no cenário cultural branco norte-americano, ao mesmo tempo que, da incorporação acelerada das proposições artísticas e culturais e performances negras por parte da indústria cultural. O sapateado, o jazz, o trot, a tap, a big apple, são alguns dentre tantos estilos que transbordaram na sociedade moderna e urbana. Inicialmente tudo se reúne em torno do step e do vaudeville e do ragtime, passando posteriormente para uma definição ampliada de cultura e arte do jazz, entre os anos 1920 e 1940.
Muitos livros estudam o jazz do ponto de vista do fenômeno musical, mas possuímos poucas publicações e traduções de textos referentes ao jazz em sua história da dança. Assim, estas traduções têm como modesto intuito contribuir para a leitura e o debate em torno destas culturas.
Um estudo dos sistemas de gestão das escolas de dança Murray e sua história numa perspectiva comparativa também é de suma importância para o entendimento dos modelos promovidos no Brasil.
A cultura das escolas de dança em suas ramificações no teatro, no cinema, no rádio, na televisão, nos cursos por correspondência, nas formas das franquias, no estudo do mundo da dança competitiva profissional e amadora, tudo isto ainda está por ser estudado no Brasil. Temos alguns casos relevantes no eixo RJ-SP de escolas que criaram marcas e padrões de ensino para as danças de salão, transformando-se também em franquias e ou em parceiras de instrutores em diferentes regiões e localidades do país.
O estudo da cultura cinematográfica e, mais amplamente audiovisual (televisual e eletrônica, na atualidade), no que diz respeito a suas relações com os domínios da dança ainda está por ser escrita no caso brasileiro. Do maxixe ao samba e ao teatro de revista, tudo ainda precisa ser fartamente investigado. Mesmo com as biografias e bio-filmografias de uma artista como Carmen Miranda, ainda carecemos de um ponto de vista novo, referente à produção internacional e nacional desta cantora-atriz-dançarina.
II
O conjunto dos artigos aqui apresentados envolvem temáticas que atravessam as questões de ordem das possibilidades e limitações na escrita de uma História da Arte, avançando rumo a problemas de cunho teórico, questões de ordem metodológica, investigações em torno da instalação de um campo empírico na formulação do corpus da pesquisa, questões de formação do campo e das instituições de artes que afetam o fazer-saber do historiador, e, ainda, seus atravessamentos nas eleições objetais, nas classificações estilísticas e artísticas, nas relações no interior das linguagens e entre as linguagens.
No primeiro texto, Post Hoc (Acerca de las dispersiones y fragmentaciones em la construcción de bases empíricas para la investigación socio-histórica em Artes Visuales Contemporáneas), a autora Ilze Petroni (Universidad de Córdova, Argentina) descreve e analisa diferentes momentos da trajetória de formação e de pesquisa no campo da arte contemporânea, envolvendo aspectos como o grau de cientificidade destas pesquisas – nas suas relações com o campo amplo das Ciências Humanas e Sociais (tendo como uma das suas principais referências a obra do sociólogo Pierre Bourdieu) – e o processo de formação do pesquisador em artes e em História da Arte. Ela ressalta ainda as dificuldades da construção de uma história regional e local, apontando diferentes momentos da eleição do seu campo de investigação ser a produção local na cidade de Córdova (Argentina).
A autora faz uso do seu objeto – a fotografia de artista – como problema a ser seguido em diferentes níveis de investigação, sempre buscando ressaltar a dimensão epistemológica acionada. Questões como a incorporação de objetos técnicos – a máquina fotográfica e a fotografia – de uso comumente social – o valor social da fotografia – ao campo da estética e da produção artística no cenário argentino e no cenário cordobês a partir dos anos 1990, e, os modos como se constrói a legitimação deste bem social e técnico em bem cultural estético e artístico, chegando a compreender a formação de um campo profissional expandido, envolvendo uma rede extensa de profissionais, de agências de fomento, de instituições e de processos de recepção.
Diversamente dos autores de matriz psicológica e formalista, Petroni ressalta o aspecto sociológico da configuração da ordem simbólica que se impõe à percepção individual.
A autora remonta a diferentes momentos da sua investigação do objeto artístico e os “obstáculos epistemológicos” que acabam por se configurar em zonas problemáticas da teoria e da metodologia da pesquisa. Estas afetam a construção do objeto – do artefato propriamente dito – e a construção social, ou, do objeto expandido para uma ordem contextual.
O texto revela as escolhas do pesquisador e as limitações que cada escolha produz.
Aponta ainda para a importância de não restringir o artístico a métodos qualitativos ou quantitativos, fazendo uso de um lugar entre diferentes métodos e pontuando as leituras críticas passíveis de serem produzidas em relação aos dados estatísticos de uma pesquisa, entendendo que os levantamentos quantitativos são constructos que podem cair na obscuridade ou na opacidade interpretativa.
A configuração de uma empiria e a eleição das fontes documentais é outra questão que atinge o pesquisador da História e da História da Arte, especialmente a contemporânea, considerando a proximidade e a rarefação dos instrumentos de difusão cultural – podemos pensar nos usos que a autora faz da imprensa e, na atualidade, a perda de uma parcela da força dos impressos, em sua crescente substituição por documentos de cunho virtual, operando em redes sociais e em “nuvens”, documentos fadados à desaparição acelerada. Que tipo de redes simbólicas e de poder estão aí enunciadas?
Como rastrear – e confirmar – as fontes da pesquisa para a arte contemporânea? Assim, conversam entre si, documentos institucionais, fontes materiais, documentos pessoais e testemunhos orais. Elemento este que já vimos enunciado no primeiro volume deste Dossiê, especialmente na experiência da instalação do campo de investigação do trabalho proposto por Luciana Ribeiro e Valéria Figueiredo (ver texto das autoras no volume I, do Dossiê, desta Revista, volume 18).
Em última instância, a autora recomenda a superação das antinomias entre os aspectos quantitativo e qualitativo na pesquisa em artes, num contexto “pós-empirista da ciência”.
O segundo artigo deste volume é o texto Entrecruzamentos: História Institucional da ABEC e dos saberes da Arte Funerária no Brasil, da pesquisadora brasileira Maria Elizia Borges (UFG).
Assim como objetos técnicos – o exemplo dado por Petroni referente à fotografia – a cultura Cemiterial foi rejeitada como tema artístico e da crítica de arte até meados do século XX, tendo entrado para o repertório do campo das artes com as ações dos “modernistas” do século XX. Deste modo, a cultura Cemiterial – escultórica, arquitetônica, organização espacial (“cidade dos mortos”) – passou a ser tratada como arte funerária ganhando lugar no patrimônio material da arte nos termos semelhantes a pinturas, esculturas, edificações representativas da arte da arquitetura, etc.
O artigo apresenta uma revisão da história de uma instituição de pesquisa no Brasil, a ABEC – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS CEMITERIAIS, seu papel na reunião das representações iconográficas, na avaliação patrimonial e na recuperação da memória contida no mundo Cemiterial.
Na primeira parte do texto, a autora lembra momentos significativos da produção artística moderna brasileira em relação à presença de signos e representações visuais da arte Cemiterial, revelando um interesse estético pelo tema, pelo objeto, pela cultura e seus simbolismos.
Na segunda parte, acompanhamos a institucionalização dos saberes funerários nos ambientes acadêmicos internacionais e nacionais, pontuando algumas das obras intelectuais, pós-década de 1960, que foram significativas, para a afirmação e a legitimação dos conhecimentos em face dos objetos empíricos – os cemitérios, sua espacialidade e objetalidade.
Tal como também lemos no texto de Petroni, há um papel preponderante das Ciências Sociais em confluência com o conhecimento histórico, na incorporação destes novos objetos no seu campo cognitivo. A ideia de valor social e cultural foi preponderante até o final da década de 1970, quando monumentos funerários passava a ser alvo da reflexão dos historiadores profissionais da arte.
Dos anos 1970 aos anos 2000-2010, assistimos à formação de uma cultura de redes, envolvendo parcerias em projetos, trocas de pesquisas, comunicações científicas, promoção, divulgação e lutas políticas em torno do tema da patrimonialização. A ABEC possui uma história mais recente, que começa nos idos de 2003 / 2004. O perfil dos investigadores ainda se encontra concentrado nas Ciências Humanas, mas é perfeitamente possível imaginar que cemitérios são como “sambaquis” (culturas suntuárias e funerárias de grupos indígenas alvo de estudo da Etnologia, da Antropologia Histórica e da Antropologia Biológica), e, portanto, fonte de interesse para o estudo da vida, da cultura alimentar, das doenças, da história genética de grupos e povos.
Na última parte do texto, a autora revela a presença e a importância estratégica da presença do estudo do cemitério como “obra de arte” num trânsito entre os aspectos materiais e imateriais – estéticos, simbólicos – desta cultura em sua história.
O artigo ainda ressalta um levantamento e a expansão – e suas dificuldades – em relação à história regional e local, algo que é também muito forte nas investigações da pesquisadora da arte Cemiterial, Maria Elizia Borges. Sua perspectiva de investigação sempre foi, desde suas pesquisas no interior de São Paulo referente ao estudo da escultura e dos marmoristas, a de ressaltar a importância de pesquisadores da produção da arte em âmbito regional e local.
III
No centro deste número, três artigos revelam-se investigações referentes à História e à Historiografia no campo das Artes Visuais e da História da Arte Ocidental e Europeia, revelando-se discussões e reflexões que ampliam criticamente o tema do cânone artístico. São eles Conhecimento histórico como formação de valores para uma vida artística: uma leitura de Rembrandt Als Erzieher, de Julius Langbehn; Artemisia Gentileschi e o seu tempo: novas fontes, novas interpretações; e, A ideia do belo na tradição germânica: debates em torno do Laooconte.
O trabalho de Walkiria Oliveira Silva (PPGH-UnB) trata de um recorte ampliado da sua pesquisa de doutoramento, envolvendo aqui a publicação de uma obra em alemão no ano de 1890, o Rembrandt Als Erzhieher, de Julius Langbehn, vivendo entre o dinamarquês e o alemão, e, entre a cultura científica e a cultura humanística, o que acaba por configurar uma formação e especialização em Arqueologia. Sua ruptura com a formação intelectual encontra-se no “calor” de uma unificação política que pouco atentava para as complexas tramas da identidade cultural alemã – um amálgama de regionalismos e dialetos. E daí que se põe o nascedouro da obra Rembrandt Educador, livro publicado anonimamente, que se torna um sucesso editorial (39 edições em 2 anos). O artigo faz uma análise da tessitura deste livro em sua dimensão de provocação e de paradoxo, reunindo identidade alemã ideal em figuras não-alemãs e buscando uma afirmação do tipo neorromântica – um romantismo recalcado em pleno final do século XIX – valorizando aspectos holísticos, artísticos, estéticos e místicos na formação de uma totalidade alemã.
Atravessado por diferentes questões, a autora busca ressaltar, num alinhavar de leitura, o aspecto de crítica da modernidade e opção pelo conservadorismo presente na obra, cristalizadas na forma moderna do pensamento científico. A ciência positiva trata o indivíduo como número, espécie, grupo. O pensamento pedagógico do individualismo radical propugna a eleição de um individualismo, de um subjetivismo e de uma individualidade espiritualizada, papel exercido na cultura do tempo em questão, pela arte e pelas obras de arte – a função da arte e do artista nas sociedades modernas é acentuar o individual.
A ciência histórica ganha conotações arquetipológicas e há um papel a ser considerado nas tipologias do herói e suas jornadas, dentro do contexto da formação da nação. A própria escrita e o conhecimento da História, nesta perspectiva de humanismo individualista radical, elege o indivíduo como figura ideal da ciência e o papel formativo pragmático se acentua. O desempenho / a performance individual e o processo de formação são combinados tanto na prática da vida quanto na construção do conhecimento.
É deste lugar que surge a dimensão artística ou o entendimento que o autor nos proporciona da arte. Para ele, a Arte e a História como Arte eram o caminho adequado para a superação do cientificismo, do positivismo e do historicismo vigentes.
Uma das questões de relevância para a presença desta leitura no escopo deste conjunto de textos diz respeito à complexidade conceitual que a arte acaba por assumir em determinados contextos históricos, sendo ela considerada uma ferramenta operacional conceitual, além das relações passíveis de serem traçadas entre artes, ciências e religiões no vasto campo da constituição das matrizes e dos saberes na cultura ocidental.
O texto de Cristine Tedesco (UFRGS), Artemisia Gentileschi e o seu tempo: novas fontes, novas interpretações, é um estudo que parte de um fato expositivo, revelando relações entre as transformações teórico-metodológicas (teorias do gênero e sua presença nos estudos da História da Arte) e transformações de ordem técnica, na pesquisa e ampliação das fontes documentais e das técnicas e instrumentos de abordagem dos conjuntos artísticos. O alvo da pesquisadora é uma exposição de revisão e reapresentação contemporânea (2016 / 2017) da obra de Artemisia Gentileschi (1593-1654), seu catálogo e a forma da apresentação cronológica dos artigos e das obras no espaço expositivo. Os textos são fruto da investigação histórica, ressaltando aspectos da cultura do gênero e de uma revisão crítica da história biográfica da artista, ressaltando os apagamentos ao mesmo tempo que crítica a perspectiva de que todas as obras da pintora são de cunho autobiográfico. As novas técnicas de análise de imagens – envolvendo aspectos químico-físicos – permitem dar sentido autônomo e potencializam a força da linguagem artística.
O artigo A ideia do belo na tradição germânica: debates em torno do Laooconte, de Géssica Goés Guimarães (UERJ), está contextualizado no debate da herança grega e do ideal clássico (grego) na cultura e na tradição intelectual alemã. Como são transferidos os valores do pensamento clássico para o conjunto do debate filosófico estético alemão e qual as significações que este pensamento, esta obra e esta formação paradigmática ocupa no contexto histórico da formação alemã? Há um greco-germanismo vigente? O texto parte de um “ato inaugural” de Winckelmann na segunda metade do século XVIII de articular na Estética e na História das Artes relações entre a Beleza, a Natureza (e os processos miméticos), a Verdade e a Liberdade, visando um horizonte comparativo e, ao mesmo tempo, mimético, da Grécia e seu ideal (natural) na “futura” Alemanha. Associando em equilíbrio, elementos do Iluminismo e do Préromantismo (e Romantismo), o autor remonta e inaugura o “mote” que será continuamente repetido entre clássicos e românticos do século XIX, mirar no horizonte do passado grego para enxergar a futura Alemanha, que opera mimeticamente, por imitação da verdadeira natureza grega, na sua Ideia e ideal e não apenas como cópia “neoclássica” das formas gregas (elemento criticável pelos autores de língua alemã no modelo “afrancesado” de cultura clássica).
O tema das artes visuais e da arquitetura se repete e se revela também nas reflexões referentes à poesia, à poesia dramática (e à dramaturgia), nas obras de Lessing, Goethe e Schiller. Gregos, Shakespeare e o teatro nacional alemão integram uma mesma linha temporal evolutivo-comparativa e relacional.
O artigo explora as diferentes versões da reflexão sobre o Belo na obra, o Laooconte (conjunto de esculturas de um sacerdote troiano do templo de Netuno e seus dois filhos, numa luta com duas serpentes marinhas, cantado na Eneida, de Virgílio, e, produto de três escultores no século I a.C., Hagesandro, Atenodoros e Polidoros).
O que é o Belo Ideal (beleza ideal)? E um Ideal de Belo (ideal de beleza)?
Nas diferentes versões do debate, a autora demonstra a formulação comum a todos os autores, numa versão diferente das relações entre Iluminismo e Romantismo, resultando num equilíbrio entre corpo e alma, entre tensão visível do corpo (da musculatura) e serenidade da expressão facial, entre o sofrimento do físico e a nobreza e a serenidade do espírito (da alma, da mente). Esta conjugação dual, mas inseparável, produz o amálgama de um sistema estético amplo que, na acepção de leitura apresentada, culmina na concepção de sublime patético, o lugar que diversamente do sistema kantiano, opera todo o sublime como experiência radical do sofrimento e da angústia em sua forma estetizada, recusando a relação com um sublime natural ou com uma mimese como cópia da natureza. O afeto não é a finalidade da arte, mas esta não existe sem a passagem pelo labirinto pático.
A autora revela a vocação para a ação que transita na obra deste conjunto de autores, configurando o Belo num horizonte ético e político da Liberdade.
Uma outra perspectiva de abordar seria a que se encontra nas obras de Philippe LacoueLabarthe e de Jean-Luc Nancy, fazendo uma referência direta do mimético ao campo do político e optando por um trajeto crítico em relação às tradições moderadoras e classicizantes, que visão uma equilibração do elemento pático na fruição racionalizada, e, optam por seguir o trajeto pela via de Friedrich Hölderlin (1770-1843), um contemporâneo que vive as passagens entre os séculos XVIII-XIX e também enuncia relações entre pensamento grego e um novo cristianismo natural. Este autor propugna uma questão não aventada plenamente no programa clássico-romântico alemão, que se dirigia rumo às transições para o nacionalismo, trazendo para o centro do debate a relação com a Linguagem e a Língua, transformando as relações miméticas em relações de tradutibilidade. O problema para ele era encontrar o ponto exato da tradução que permite entrever o sentido originário, criticando o exagerado idealismo dos filósofos do seu tempo em relação ao tema do equilíbrio e equilibração presentes na arte e na civilização gregas. Para ele, a linha mais potente de acesso ao pensamento dos gregos era o seu anticlassicismo (a sua leitura dionisíaca dos gregos, que antecipa o pensamento de Nietzsche), ou melhor dizendo, a distância existente entre a idealização de um sistema clássico construída a partir da cultura romana, que repercute até os seus contemporâneos. Assim, ele não se contenta em criticar o “afrancesamento” da cultura grega, mas também exige uma autocrítica do sistema de pensamento estético alemão, revelando que esta idealização – a beleza ideal e o ideal de beleza – eram outro modo de enunciar o germanismo classicizante.
Se parafrasearmos Freud, autor de língua alemã, de período posterior, podemos encontrar uma resolução para esta cisão entre Belo Ideal e Ideal de Belo. Para Freud, se seguirmos as distinções entre Eu Ideal (ego) e Ideal do Eu (ego), temos duas questões que tangenciam a problemática do Belo.
O Belo Ideal seria a idealização colocada no horizonte, como um além do Belo, promovendo uma indistinção entre o real e o ideal, a afirmação crescente de uma solução “nostálgica” (uma busca inalcançável do tempo e do objeto perdidos). E um desejo de permanecer nesta condição melancólica, perdido entre a onipotência de uma crença (infantilizada) – por exemplo, o inatismo do lugar civilizacional dos alemães em relação ao passado grego – e um lugar crítico e elaborado estética e racionalmente dos desejos frustrados – como vamos encontrar na obra de Walter Benjamin.
O Ideal do Belo é uma noção dinâmica, relacional, dependente das formações e dos acontecimentos do presente, numa formulação que depende de uma luta entre o Belo Ideal (da perfeição narcísica da beleza) e suas formas historicizáveis, implicando numa relação com a História do Presente e em Desejo de Futuros. Aqui, o que resulta é uma beleza parcelar do Belo, dependente de preceitos e de lutas históricas.
IV
Na seção de artigos livres, contamos com as contribuições lusitanas de Helder Adegar Fonseca (Agostinho Neto e a historiografia biográfica) e Nuno Bessa Moreira (A historiografia como temática no Dealbar da Revista Ler História durante os anos 80: subsídios para uma análise de conteúdos), além dos artigos de Paulo Fernando de Souza Campos (Microanálise: Interdisciplinaridade e Teoria da História) e Michelly Pereira de Sousa Cordão (Escrita e Oralidade, Uerus e Uerus Similis: A Memoria Rerum Gestarum de Tito Lívio).
V
O nosso Volume se encerra com a resenha de Alexandra Ferreira Martins Ribeiro a respeito da obra A bolsa e a vida: a usura na Idade Média, de Jacques Le Goff e, finalmente, com a entrevista com o Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva, realizada por Sabrina Costa Braga.
NORONHA, Marcio Pizarro. Apresentação. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.19, n.1, junho, 2018. Acessar publicação original