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Historiografia e Ensino de História | Revista Territórios & Fronteiras | 2021

A produção de um conjunto de trabalhos que tome as relações entre historiografia e ensino de História como objeto de análise insere-se na tradição da produção bibliográfica acerca do ensino de História que tem envolvido, principalmente, os debates e reflexões que vêm sendo produzidos por historiadores e professores no âmbito de instituições de pesquisa e ensino, ou como partícipes de debates em torno de programas ou políticas educacionais. Ademais, envolve também um conhecimento historicamente produzido, resultante de projetos e propostas de investigações, experiências e práticas concretas. Do ponto de vista do arcabouço teórico os trabalhos sugerem a opção e adesão aos fundamentos teóricos e filosóficos da ciência da História como referenciais para reflexões, investigações e debates. Esta opção e adesão tem caracterizado, de maneira específica, a qualidade e a especificidade para um recorte diferenciado da produção no âmbito do Ensino de História. Uma das principais contribuições a este debate tem sido o princípio indicado pelo historiador Jörn Rüsen acerca da Didática da História como ciência da aprendizagem histórica, porqueela produz de modo científico (especializado) o conhecimento necessário e próprio à história, quando se necessita compreender os processos de aprendizagem e lidar com eles de modo competente. Ou, todo conhecimento acerca do que seja a aprendizagem histórica requer o conhecimento do que seja história, daquilo em que consiste a especificidade do pensamento histórico e da forma científica moderna em que se expressa. No cerne da questão está a capacidade de pensar historicamente, a ser desenvolvida nos processos de educação e formação.

A adesão a este princípio é corroborada em estudos que dizem respeito a aprendizagem histórica, como o estudo pioneiro Understanding and research, de Dickinson & Lee, em que os autores analisaram como se dá a apropriação do conhecimento histórico em alunos dos 12 aos 18 anos. Os investigadores interrogaram-se sobre o enquadramento teórico que deveria presidir a pesquisa sobre o pensamento histórico, questionando a lógica não histórica que serviu de base às pesquisas anteriores, bem como a noção piagetiana de invariância de estágios de desenvolvimento do pensamento, pelo menos quando aplicada ao processo de compreensão histórica.

Assim, pode se acompanhar uma certa renovação no âmbito de pesquisas que vêm sendo realizadas sobre pensamento histórico, consciência histórica e aprendizagem, observando-se uma revolução copernicana em direção aos referenciais da ciência da História, em detrimento, mas não ao abandono, dos referenciais da psicologia e da pedagogia. Se antes, propunha-se um diálogo a partir da psicologia e da pedagogia, com os referenciais da ciência da História, agora inverteu-se o processo. O diálogo é orientado a partir de categorias, conceitos e abordagens teóricas historiográficas. Trata-se de um novo paradigma no que se refere ao campo da aprendizagem e do ensino de História, que envolve novas referências para a pesquisa e o ensino neste campo de conhecimento.

A adoção de um novo paradigma para o ensino e aprendizagem da História inclui, assim, novas problemáticas e novas abordagens de pesquisas no que se refere, principalmente, à análise dos processos em diferentes espaços em que se realiza o ensino e a aprendizagem, como a escola, museus, arquivos. Inclui também olhares diferenciados para os produtos e para a natureza do ensino e aprendizagem histórica em diferentes sujeitos, que levem em consideração, principalmente, como as relações com o conhecimento histórico atribuem significados e sentidos a estes processos, por exemplo, as investigações acerca da formação do pensamento e da consciência histórica. Ademais, a perspectiva indica, fundamentalmente, a importância de se levar em conta uma séria reflexão sobre a natureza do conhecimento histórico e seu papel como ferramenta para análise da sociedade e sua relevância para a orientação temporal dos sujeitos.

Na esteira das investigações realizadas pelo historiador inglês Peter Lee, pode-se afirmar que aprender História é apropriar-se de uma forma qualitativamente diferente de ver o mundo e isto envolve, entre outros elementos, a compreensão das “ideias-chave que tornam o conhecimento do passado possível, e dos diferentes tipos de reivindicações feitas pela História, incluindo o conhecimento de como podemos inferir e testar afirmações, explicar eventos e processos e fazer relatos do passado”. A preocupação com o desenvolvimento das ideias-chaves ou categorias do pensamento histórico, tais como: evidência, orientação temporal, empatia, relevância histórica, pluricausalidade, interpretação e narrativa, como orientadoras da aprendizagem e do ensino de História está presente em investigações de autores de diferentes países.

Uma intrínseca relação entre historiografia e ensino de História pressupõe também que uma das finalidades precípuas do ensino de História é democratizar uma educação histórica em que os conteúdos, temas, métodos, procedimentos e técnicas que o historiador utiliza para produzir o conhecimento histórico sejam apropriados por todos, ressalvando que não se trata de transformar todas as pessoas em historiadores, mas de ensiná-las a pensar historicamente.

Um certo sentimento de urgência tem acompanhado a importância da renovação das relações entre historiografia e ensino de História, face às tensões vividas na contemporaneidade, tais como os desafios de um mundo pós pandêmico e dos conflitos religiosos, bem como os novos lugares de aprendizagem, oriundos não somente do avanço das tecnologias da informação e comunicação, mas também das narrativas mestras presentes nos monumentos e lugares canônicos da história. São múltiplos desafios que sugerem renovações conceituais no âmbito da própria historiografia e do ensino de História. A obra do historiador alemão Jörn Rüsen sinalizou, por exemplo, a importância da categoria cultura histórica como referência para investigações e reflexões neste sentido. Segundo Rüsen, a cultura histórica é uma categoria de análise que permite compreender a produção e usos da história no espaço público na sociedade atual. Trata-se de um fenômeno do qual fazem parte o grande boom da História, o sucesso que os debates acadêmicos têm tido fora do círculo de especialistas e a grande sensibilidade do público em face do uso de argumentos históricos para fins políticos e desse processo fazem parte também os embates, enfrentamentos e aproximações entre a investigação acadêmica e o conhecimento histórico escolar. Assim, para o autor, a cultura histórica pode articular os diferentes elementos e estratégias da investigação acadêmica e da educação escolar e não escolar.

Tradicionalmente, o processo de construção do campo do ensino de História tem empurrado as questões do ensino e aprendizagem para o âmbito da cultura escolar, especialmente para as relações com determinadas teorias pedagógicas, como a pedagogia das competências. Foi a partir desse reajustamento que a dimensão cognitiva do ensino da História passou a se articular, por exemplo, com a dimensão política da cultura histórica, não levando em conta alguns pressupostos básicos da dimensão cognitiva da própria cultura histórica, relacionados com os processos de produção do conhecimento histórico. Nesse processo, as questões relacionadas à aprendizagem histórica e, portanto, ao seu ensino, saíram da pauta dos historiadores e entraram, prioritariamente, na pauta de pedagogos e psicólogos, bem como das políticas educacionais, ocorrendo um deslocamento entre a cultura histórica e a cultura escolar, em que a perspectiva instrumental, particularmente centralizada na preocupação com a transposição didática e com os métodos de ensino por competências e habilidades, tem sido privilegiada. Tal deslocamento apresenta evidências, de um lado, de um certo conflito entre a cultura histórica e a cultura escolar, que pode ser exemplificado a partir de pesquisas realizadas com manuais didáticos de História. De outro lado, evidencia uma certa tensão, como na dissonância entre as renovações da produção do conhecimento histórico e seu ordenamento sob a forma de propostas curriculares.

As contribuições dos vários trabalhos apresentados sobre as relações entre historiografia e ensino de história indicam diferentes questões a serem levadas em consideração no que se refere, por exemplo, à aprendizagem das crianças e jovens. Entre elas a de que, definitivamente, os professores de história precisam saber que devem abandonar o pressuposto de que aprender história significa acumular conhecimentos, mesmo que adotando metodologias ativas e lúdicas e que aprender história não é manter-se no nível do senso comum ou adquirir bom senso a respeito das questões do passado. Ademais, apontam elementos para sistematizações acerca de um novo paradigma da aprendizagem histórica e seu significado para a Didática da História, seu escopo teórico, natureza e dimensões.

Em acordo com Rüsen, importa que a aprendizagem histórica desenvolva a capacidade de se adquirir a constituição narrativa de sentido, como uma aprendizagem de ressignificar, continuamente, as experiências temporais da vida prática, desenvolvendo, de forma complexa e científica, a cognição propriamente histórica. Concorda-se, também, com este autor, que se trata de um processo da consciência histórica e como ele é apreendido e efetivado, não é uma questão da didática da teoria da História, mas da Didática da História – uma disciplina da ciência da História, mas relativamente independente da teoria da História.

No intuito de apresentar sistematizações de pesquisas e desafios à reflexão, os diferentes trabalhos incluíram debates teóricos e metodológicos sobre temas como formação do pensamento histórico e as novas tendências de investigação na área da Didática da História no Brasil e em outros países. Ademais, remetem a um diálogo com o pensamento do historiador Jörn Rüsen, no que se refere a um dos problemas cruciais da relação entre historiografia e ensino de história, pois coloca em questão a História Universal no pensamento contemporâneo, como atestam suas reflexões contemporâneas acerca da história universal e o etnocentrismo. Neste sentido, buscam situar o problema da Didática da História na natureza da relação com a teoria e filosofia da História, abrindo possibilidades para se levar em conta alguns princípios que seriam constitutivos da epistemologia deste campo de conhecimento, com implicações para a metodologia do ensino de história.

Em seu trabalho, Arthur Chapman critica pesquisas sobre “o que” as crianças sabem de História, defendendo a proposta de se averiguar “como” elas pensam acerca da História. Para o autor, já se pode sustentar o fato de que as crianças desenvolvem compreensões sofisticadas no campo da História, desde que sejam providas das ferramentas necessárias para fazê-lo, como atestam vários trabalhos que ele tem analisado e sistematizado.

Para Isabel Barca, as recentes e inovadoras pesquisas em ensino de História, referenciadas na cognição histórica situada, têm se preocupado, sobretudo, em saber como os alunos raciocinam, quais são e como utilizam suas ideias históricas, dentro e fora de contextos escolares. Tais pesquisas são complexas e sinalizam para o fato de que artefatos da cultura escolar, tais como currículos e manuais didáticos, constitutivos do chamado ensino convencional da história, não abordam de forma consistente, a natureza genuína do conhecimento histórico. Elementos de pesquisas já realizadas, indicam que promover mudanças é possível, mas também um grande desafio. Para mudar, é importante, segundo as reflexões sugeridas por Estevão de Rezende Martins, rever o estoque ou arcabouço teórico que fundamenta a Didática da História, no qual se inclui o estabelecimento de uma estrutura científica, um discurso global sobre a compreensão teórica e sobre as dimensões práticas do pensamento, da consciência e da cultura histórica na relação ensino-aprendizagem de História, no espaço formal dos sistemas escolares e no espaço público.

Um profícuo diálogo entre Didática da História e historiografia é possível a partir da referência à especificidade destes diferentes campos do conhecimento, mas sempre pautado no respeito às interfaces entre teoria e filosofia da História e as Ciências da Educação. Estes pressupostos remetem a um olhar sobre a produção realizada por pesquisadores da Alemanha, Inglaterra e Portugal. De partida, há indícios de tradições epistemológicas distintas e diálogos interdisciplinares que dão especificidade às produções dos diferentes países, como se observa no trabalho de Thiago Augusto Divardim de Oliveira. Na mesma direção dos estudos realizados por este autor, para Marlene Cainelli, atualmente é possível observar tendências diversas no ensino de história no Brasil, que divergem na forma de entendimento da teoria do seu ensino, da didática da História e da cognição situada. Pelo menos, segundo a autora, isto pode ser constatado quando se analisa a historiografia produzida sobre o ensino de história nas últimas décadas do Século 20 e nas duas primeiras décadas do século 21, onde se pode perceber rupturas e controvérsias na estrutura metódica de constituição dos fundamentos epistemológicos da ciência da histórica e do seu ensino.

Um desvelamento das relações entre historiografia e ensino de História implica entender quais as consequências decorrentes para a construção dos fundamentos da Didática da História. Em seu trabalho, Rafael Saddi indica o lugar do conceito de emancipação na mudança paradigmática da Didática da História Alemã, tendo como referência diferentes autores do campo da Didática da História neste país. Já o autor Geyso Dongley Germinari toma a categoria “consciência histórica”, referenciada na teoria rüseniana, para analisar sua recepção em teses e dissertações brasileiras, bem como sua contribuição para a constituição do campo da Didática da História no Brasil. Ainda na constituição do campo da Didática da História no Brasil, o trabalho de Maria Auxiliadora Schmidt revisita a categoria consciência histórica para encetar o diálogo com a perspectiva do dialogismo ruseniano e bakthiniano.

O diálogo entre as atividades que o historiador faz ao fazer História e o que ele faz quando ensina História, a partir de interfaces entre o ensino de História com a historiografia, não propõe modelos definitivos para uma relação entre aprendizagem da história e seu ensino. É necessário construí-los, tomando como referência o debate que se instaurou desde que se tornou dicotômica a separação entre a história escolar e a história acadêmica. Neste sentido e em acordo com Rüsen (2007), importa que a aprendizagem e o ensino de histórica desenvolvam a capacidade de se adquirir a constituição narrativa de sentido, como uma aprendizagem de ressignificar, continuamente, as experiências temporais da vida prática, desenvolvendo, de forma complexa e científica, a cognição propriamente histórica. Concorda-se, também, com este autor, que se trata de um processo da consciência histórica e como ele é apreendido e efetivado. E isto não é uma questão da didática da teoria da História, mas da Didática da História – uma disciplina da ciência da História, mas relativamente independente da teoria da História. Neste e para este processo, tem se direcionado as reflexões e investigações acerca das relações entre historiografia e ensino de história.

Curitiba, verão, 2022


Organizadores

Isabel Barca – Professora pesquisadora do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória da Universidade do Porto, Portugal. Doutoramento em Ensino de História (History in Education) pela Universidade de Londres, mestrado em Ensino de Ciências Sociais pela Universidade de Boston e licenciatura em História pela Universidade do Porto, foi Coordenadora da área científica de Metodologia do Ensino da História e Ciências Sociais, na Universidade do Minho, onde também coordena o Mestrado em Supervisão Pedagógica em Ensino da História. Desenvolve atividades de docência e de investigação no campo da cognição histórica, com diversos projectos e estudos nesse âmbito, designadamente em torno das concepções de professores e alunos em História e do desenvolvimento de competências na educação histórica. Foi Presidente da Associação de Professores de História. Tendo como pano de fundo a publicação do livro “Perspectivas em Educação Histórica”, esta entrevista foi uma oportunidade para falar do ensino da História em Portugal, do papel da História na construção da cidadania e de uma nova abordagem no ensino desta disciplina: a educação histórica E-mail: isabelbarca110@gmail.com

Maria Auxiliadora Schmidt – Professora titular da Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFPR. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica. (PPGE/UFPR-lapeduhwordpress.com). Pesquisadora Cnpq. E-mail: dolinha08@uol.com.br

Estevão de Rezende Martins – Professor at the University of Brasília. Senior Collaborator Researcher at UnB (History). He holds a BA in Philosophy from the Faculty of Philosophy, Sciences and Letters N S Medianeira and a Ph.D. in Philosophy and History from the Universitaet Muenchen (Ludwig-Maximilian). He has done postdoctoral studies in Theory and Philosophy of History and in the History of Ideas in Germany, Austria and France. He works with the following themes: theory and methodology of history, political and institutional history of Brazil, historical culture, contemporary history (Europe, European Union and international relations) and political history (Brazil, Western Europe and international relations E-mail: echarema@gmail.com


Referências desta apresentação

BARCA, Isabel; SCHMIDT, Maria Auxiliadora; MARTINS, Estevão de Rezende. Apresentação. Desvelando relações entre historiografia e ensino de história. Revista Territórios & Fronteiras. Cuiabá, v. 14, n. 2, p.1-7, ago./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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Itamar Freitas

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