Este dossiê tem como objetivo pensar a historicidade a partir de sua complexa e por vezes conflitiva relação com a literatura. Com “literatura”, algumas vezes, os acadêmicos se referem a escritos literários geralmente ficcionais, como os romances, e centram suas análises na questão da demarcação entre a disciplina historiográfica e o trabalho criativo de escritores não constrangidos pelas fontes documentais nem pelo que realmente ocorreu. No contexto dessa discussão, surgem os sempre vigentes debates filosóficos em torno da possibilidade de conhecer o passado, da questão do ceticismo, do realismo, do relativismo histórico e, é claro, da relação entre história e ciência. Todas essas questões conformam um corpus de problemas subsumidos sob a denominação filosofia crítica da história, criada para distingui- -la da filosofia substantiva da história. Esta última, também denominada filosofia especulativa da história, busca desvelar o sentido ou finalidade do devir humano, lendo no teatro de horrores que a humanidade atravessou e atravessa a presença de etapas no caminho progressivo até a realização de uma sociedade moralmente melhor. Os historiadores acadêmicos e os filósofos críticos da história têm se afastado da especulação sobre o sentido da marcha da história, mas por diferentes razões pelas quais se distinguiram da literatura. A diferença entre as referidas áreas de conhecimento e a literatura residia no propósito de contar ou não o que realmente havia acontecido e na necessidade ou não de constrangimento em vista das evidências. Por sua vez, o rechaço da filosofia substantiva da história adveio de sua pretensão de referir-se ao passado em si para emitir juízos avaliadores acerca do futuro sem ater-se às fontes documentais. A filosofia especulativa, a bem da verdade, aproximava-se mais da literatura que a investigação científica, ainda que de maneira não intencional.
No entanto, o que todas essas discussões têm contornado é a natureza controversa da própria noção de literatura. Como Lionel Gossman e Hayden White têm reiteradamente documentado, o século XIX não abrigou somente a disciplinarização da história, mas também a das belas-letras. O que é literatura? O que é uma obra literária? Quem pertence a um cânone? O impressionante desenvolvimento durante o século XX da teoria literária coloca aos historiadores e aos filósofos da história um desafio incontornável, pois esse outro (a obra de ficção) da qual a história quer se distinguir não é um todo homogêneo. Esse é o desafio que Roland Barthes, Arthur Danto, Michel de Certeau, Lionel Gossman, Paul Ricouer, Paul Veyne e Hayden White, para nomear alguns, têm assumido seriamente, isto é, pensar a noção de historicidade centrando-se na própria atividade da escritura da história e a partir daí indagar, não a modo de confronto ou de maneira excludente, as formas pelas quais as obras literárias (romances, dramas, roteiros de filmes, poemas, diários, cartas) permitem pensar a historicidade da experiência humana. Não se trata de uma abordagem documental da literatura, já sedimentada na história social, mas de uma que privilegie seu caráter cognitivo, na medida em que o texto literário, por meio de procedimentos que lhe são próprios, permite produzir um saber particular a respeito da experiência humana e sua(s) temporalidade(s). Desse modo, talvez seja possível elucidar diferentes aspectos de tal experiência, como as dimensões éticas da ação e do conhecimento histórico, as restrições e as (im)possibilidades de representação do passado, a problematização dos critérios que presidem as fronteiras discursivas da história disciplinar, entre tantos outros temas afins à reflexão teórica.
Os trabalhos aqui publicados abordam o objeto literário em sua diversidade histórica nos quadros de uma série de problemas que vêm guiando as reflexões historiográficas, não só para encontrar ilustrações ou exemplos extraídos dessa agenda, mas também para enriquecê-la e complexificá-la. Desse modo, o leitor deste dossiê poderá encontrar, por um lado, artigos que, a partir de uma reflexão filosófica sobre a relação entre história e literatura, questionam a alegada distinção entre o real e a ficção e suas certezas epistemológicas; por outro lado, terá a oportunidade de ler uma variedade de contribuições imersas na análise de obras literárias em suas interrogações específicas. Nesse sentido, o dossiê é aberto com os escritos de Máximo Yolis e Jocelio Zalla, que analisam o papel que teve a denominada literatura “gauchesca” na constituição dos relatos regionais e nacionais da Argentina (o primeiro) e do Brasil (o segundo). Yolis rastreia, ao longo de uma série de obras canônicas da literatura argentina, a construção do conceito de “gaúcho” como uma classe de pessoa em extinção devido ao processo de modernização que atravessou o país entre o final do século XIX e o início do XX. Partindo das considerações do filósofo Ian Hacking sobre o estatuto e funcionamento das classificações sociais, pensadas sob os rótulos de “nominalismo dinâmico” e “ontologia histórica”, Yolis mostra a interação que a classe “gaúcho” teve não apenas com aqueles para os quais se aplicou e aplica o termo, mas também com as elites (econômicas e culturais) que contribuiram para sua tipificação como grupo representativo de uma etapa da nacionalidade argentina já distante. Jocelito Zalla, por sua vez, concentra-se nas intervenções de Luiz Carlos Barbosa Lessa – folclorista e militante fundador do movimento tradicionalista gaúcho – na polêmica ocorrida nos anos 1950, no Rio Grande do Sul, em torno da conveniência de incorporar a experiência missioneira guarani na narração do passado gaúcho. A comunidade acadêmica nucleada no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) era, nas décadas de 20 a 60, refratária à ideia de que a história das reduções indígenas sob o controle jesuíta e comando do império espanhol pudesse ser agregada à história do Rio Grande luso e brasileiro.
Yolis e Zalla analisam, pois, modos de configuração dos valores sociais e da memória coletiva retomando textos, autores e polêmicas não como simples reflexos de um contexto, mas como elementos capazes de produzir efeitos sobre a realidade, razão pela qual também tangenciam outro tema central deste dossiê: a reconsideração sobre a própria ideia de realismo. Esse é o caso, certamente, da análise de Raquel Campos, que, a partir da poética da nomeação de Balzac, retoma a onomástica literária para investigar modos de descrição ou configuração da história que inventam a própria realidade que reproduz, superando leituras que se restringiam a buscar “fora-do-texto as fontes biográficas ou geo-históricas” do romancista. As formas de representação da realidade também são investigadas, neste dossiê, sob a luz da dimensão “ético-filosófica” da ficção, que se afirmaria não apenas – nem principalmente – na proposição realista de certos conteúdos, mas numa literalidade “inseparável da dimensão estético-formal”, como enuncia Luiza Laranjeira em seu texto sobre Henry James. De resto, questões dessa natureza já estiveram presentes, nota Paulo Haiduke, entre os primeiros intérpretes de uma literatura que, a partir do início do século XX, engendrou uma nova sensibilidade marcadamente modernista. Esse é o eixo de análise de Haiduke em seu texto sobre a recepção de Em busca do tempo perdido, cujo primeiro volume, publicado por Proust no final de 1913, suscitou em muitos de seus primeiros leitores a necessidade de repensar a linguagem e suas formas de representação sob a luz de um empreendimento literário que desestabilizou hábitos tradicionais de ver, pensar e compreender a realidade.
Em certo sentido, todas essas questões tratam de um tema comum a muitas contribuições deste dossiê, que, a partir da prosa romanesca e das diferentes modulações das personagens literárias, analisam as (in)adequações “do espírito à forma de um destino a ser desvendado, cuja relação determina a forma de cada romance em particular”, segundo Gustavo Naves Franco em sua investigação sobre os modos ficcionais e a historicidade em Dickens, Kafka e Carver. As modulações da personagem literária também estão no centro da análise de Pedro Caldas sobre A montanha mágica, de Gilda Bevilacqua sobre Austerlitz e de Mariela Solana sobre A pastoral americana e Flesh and Blood. Em Caldas, o protagonista do romance de Thomas Mann – Hans Castorp – é analisado não na chave já consolidada da paródia do Wilhelm Meister, de Goethe, mas sob o prisma da angústia. Assim, se o romancista pensa literariamente as estruturas temporais da modernidade, Caldas procura repensar filosoficamente a própria literatura de Mann. Bevilacqua, por sua vez, investiga os procedimentos literários a partir dos quais Sebald, na composição da personagem que dá título ao livro – Jacques Austerlitz, um judeu exilado pela ocupação nazista de Praga –, entretece diferentes extratos de temporalidade, num particular jogo entre memória, tempo e história. A autora explora, notadamente, o modo como a ficção – ou a “metaficção histórica”, para lembrar aqui um termo usado por Linda Hutcheon – poderia indagar aquilo que Hayden White chamou de “acontecimento modernista”. Solana, por fim, também recupera White e suas reflexões sobre literatura testemunhal para analisar os componentes afetivos da consciência temporal. E faz isso articulando o aporte da filosofia da história ao universo semântico dos “mapas afetivos”, noção chave em seu estudo sobre dois autores – Philip Roth e Michael Cunninghan – que colocaram, na cena romanesca, choques intergeracionais no fim dos anos 60 e princípios dos 70.
De fato, muitas contribuições estão atentas aos procedimentos literários de figuração da subjetividade, figuração analisada a partir de sua capacidade de orientar a ação ou fornecer quadros simbólicos de reelaboração da identidade pessoal. Ricardo Benzaquen de Araújo, por exemplo, recupera a correspondência de Mário de Andrade com Carlos Drummond de Andrade como forma privilegiada para se entrar em contato com textos impregnados de subjetividade. Mais ainda, a partir de uma ‘afinidade eletiva’ entre Gumbrecht e Benjamin, e sem perder de vista o colorido modernista que envolve as cartas entre Mário e Drummond, seu artigo investiga a “presença aurática” de um universo que também pode ser caracterizado pela autenticidade, amizade, crítica, dor e felicidade. Já Omar Murad tem como objeto de estudo as representações do passado elaboradas por filhos de desaparecidos na última ditadura argentina. O autor analisa os procedimentos narrativos mobilizados pelos discursos da memória (às vezes abertamente ficcionais), fundamentando seu artigo numa interpretação estética do próprio acontecimento histórico, tal como sugerido pelo figuralismo de Auerbach e Hayden White. E é assim que, sob o modelo estético de um “giro subjetivo”, Murad analisa as ambiguidades morais e epistemológicas sobre a “verdade” em documentários cujos autores são, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da representação. O regime militar na Argentina também delimita os quadros do artigo de Moira Pérez sobre a “dissidência sexual”. Trata-se de tomar essa “dissidência” não como mais um objeto de estudo, mas como uma forma alternativa de representação do tempo, da espacialidade e das identidades. Pérez também analisa as ambiguidades morais e epistemológicas da verdade histórica (em romances e uma autobiografia), mas com o intuito de repensar as condições de possibilidade da queerização da própria historiografia, nem tanto para dar à representação queer uma aura de “autenticidade” ou “marginalidade”, mas por percebê-la como uma “lógica” que faz da ambiguidade dos sexos, dos gêneros e das identidades fonte de reflexão sobre a própria condição humana.
Se o dossiê soube abarcar um amplo conjunto de artigos que a) problematizam a relação entre história e literatura a partir do realismo oriundo do século XIX; b) analisam como o modernismo pôs em questão o realismo literário e histórico do século XIX; c) investigam as formas literárias de reconfiguração do tempo, da história e das identidades por meio de mapas – ou descaminhos – subjetivos lidos em cartas, documentários, polêmicas e discursos de memória; d) reconhecem em ficções e “metaficções históricas” ambiguidades morais e epistemológicas que abrem novos inquéritos sobre a verdade histórica, a escolha ética e a representação da realidade; enfim, depois desse amplo percurso e da pluralidade de perspectivas que informam seus autores, o dossiê se encerra com dois textos cujo ponto de partida é a obra de Hayden White, por ser aquela cuja consideração meta-historiográfica, mais que colocar em dúvida a possibilidade de conhecer o que realmente ocorreu por meio da investigação histórica, examina as potencialidades que os escritos literários e as grandes obras da literatura de qualquer cultura oferecem para compreender e dar sentido ao passado. No primeiro texto, Aitor Bolaños analisa tentativas de reconfiguração da escrita historiográfica e de seus pressupostos realistas a partir de experimentos historiográficos pós-modernos, cujos autores (Robert Rosenstone e James Goodman) buscam “expandir as possibilidades de representação da história” por intermédio de uma complexa articulação de fontes com procedimentos literários. Já o artigo de Lavagnino, elaborado conforme uma perspectiva teórica, reconstrói como o debate tradicional em torno da relação entre história e literatura e dos intentos da história de eliminar a ideologia é radicalmente transfigurado a partir das indagações e da apropriação, por parte de Hayden White, dos teóricos literários e de seus aportes à reflexão metateórica sobre a natureza do discurso histórico.
Como visto, ao privilegiar o aspecto cognitivo da literatura, que, pelos seus procedimentos textuais, produz saberes particulares sobre a experiência humana, os textos aqui publicados investigam um amplo conjunto de aspectos caros à reflexão teórica e historiográfica. Na variedade dos objetos literários e das reflexões teóricas que o acompanham, este dossiê, enfim, pretende enriquecer a própria experiência reflexiva em torno da relação entre literatura e história.
Verónica Tozzi – Professora Universidad de Buenos Aires. E-mail: veronicatozzi@gmail.com
Henrique Estrada Rodrigues – Professor Adjunto Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: henriqueestrada@hotmail.com
TOZZI, Verónica; RODRIGUES, Henrique Estrada. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.7, n.16, dez., 2014. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.