Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil | Mary Del Priore
Recentemente a teledramaturgia brasileira protagonizou o primeiro beijo lésbico: representada em Amor e Revolução, a cena durou aproximadamente cinqüenta minutos. Os pontos a mais na audiência que a cena garantiu para o SBT mostram como este gênero televisivo, bem como os demais meios de comunicação, sempre funcionou como termômetro da sexualidade brasileira. Se em Amor e Revolução a temperatura subiu, em 2005 a temperatura despencou devido ao que deveria ser o primeiro beijo gay da televisão brasileira: a Rede Globo chegou a gravar a cena, mas não a levou ao ar no último capítulo de América. Caso se volte mais de duas décadas, contudo, o termômetro registrou novamente elevada temperatura: em 1979 o seriado Malu Mulher, também da Rede Globo, apresentou o primeiro orgasmo da televisão brasileira.
Os exemplos acima não escapam ao olhar atento do historiador que procura compreender as mudanças da sexualidade brasileira: não é por acaso, portanto, que os meios de comunicação ganhem destaque no mais recente livro de Mary del Priore dedicado ao tema, Histórias íntimas (2011). Caso se considere algumas obras anteriores da autora, como História do amor no Brasil (2005) e História das mulheres no Brasil (1997), se percebe que Histórias íntimas são mais um passo para esclarecer como as questões de gênero se transformaram no país, visto que durante quatro séculos da história brasileira, as mulheres foram restringidas à intimidade, ao espaço privado, enfim, ao lugar privilegiado das relações amorosas e sexuais. Neste sentido, a autora também acompanha de perto as mutações da historiografia que não mais favorecem a “narrativa política”, a troca de poderes que se faz aos olhos de todos, publicamente, ignorando o que acontece às escondidas, intimamente. Ou melhor, como as teóricas do feminismo, a nova historiografia reconhece que o poder, talvez o mais despótico, também se desenvolve na esfera privada. Contudo, quais são os registros históricos da esfera privada? Se a “narrativa política” encontra fartamente documentos oficiais, as histórias íntimas de del Priore não possuem a mesma sorte: como afirma a autora, “o historiador pouco sabe sobre como se comportavam, na cama, homens e mulheres” (p. 77). Restam então observações religiosas, tratados médicos, pinturas e poesias, mas principalmente, os meios de comunicação. Como se procura demonstrar no resumo de Histórias íntimas, o historiador da mídia tem nas mãos o objeto mais preciso para estudar a sexualidade.
Histórias íntimas se dividem em cinco capítulos, cada qual abrangendo um período da história brasileira: “Da Colônia ao Império” aborda os séculos XVI, XVII e XVIII; “Um século hipócrita” questiona o século XIX; “Primeiras rachaduras no muro da repressão” enfocam as três primeiras décadas do século XX; “Olhas indiscretos” se concentram no período do Estado Novo e nos anos 1950; e “As transformações da intimidade” concluem abarcando desde o regime militar até os dias atuais. A participação dos meios de comunicação se destaca, evidentemente, nos capítulos finais, mas alguns exemplos já despontam no segundo capítulo. Entretanto, foi a voz do poeta que ganhou força no Brasil Colônia para cantar sobre a intimidade: Gregório de Matos pedia às mulheres para “Lavai-os quando o sujeis / E porque vos fique o ensaio / Depois de foder lavai-o / Mas antes não o laveis” (p. 22). Para o Boca de Inferno, lavar as partes íntimas é desgraça que acomete às mulheres do hemisfério norte, pois nisto perdem o sal, a graça; daí recomendar que elas lavem depois das relações sexuais. Para del Priore, “a sensibilidade olfativa dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa, que tinha a preocupação de ‘oxigenar os ares’ e de banir definitivamente o mau cheiro” (p. 21). Esta tolerância aos odores estava diretamente ligada à pobreza do Brasil Colônia, também responsável pela falta de pudor e de intimidade. Com índios e escravos andando seminus, a nudez demorou a se tornar sinônimo de luxúria, sendo mais de inocência ou de pobreza. A pobreza também impediu a intimidade nas camas e nos quatros, pois eram poucas as portas com fechadura. Logo, “para suas intimidades, os casais sentiam-se mais à vontade ‘pelos matos’, nas praias, nos campos, na relva” (p. 24). Ainda que a Igreja vigiasse a intimidade, vários fatores contribuíram para que os colonos, inclusive o clero, apresentassem comportamentos condenáveis: a falta de clérigos, a precária estrutura paroquial em um imenso território de ocupação populacional dispersa, o despejo de criminosos e marginais da metrópole, o abuso dos senhores em relação aos escravos, etc.
Mary del Priore denomina o século XIX de “século hipócrita”, pois tanto reprimiu o sexo quanto foi por ele obcecado. Homens tementes a Deus praticavam o adultério: como ilustra a autora, João Simões Lopes, político importante do Rio Grande da segunda metade do século XIX, freqüentava as missas dominicais com a esposa sentada de um lado da igreja e com a amante sentada do outro. A constância do adultério neste período se justifica, segundo del Priore, devido ao “desequilíbrio demográfico”, pois havia mais mulheres residindo nas regiões interioranas e mais homens trabalhando nas cidades litorâneas (p. 66). Tantos casos logo se tornaram assunto nos jornais que começavam a surgir: “A imprensa que se multiplicou a partir da segunda metade do século costumava trazer uma ‘sessão de boatos’ ou crônicas onde as traições eram abertamente comentadas”. Uma destas crônicas, por exemplo, informava que, na “festa da padroeira, certo moço de família fazia brincadeiras com a esposa de um amigo. E o dito fingia não perceber” (p. 71). Mas não apenas edições de jornais eram impressas nas tipografias recém-chegadas ao país, mas também livros pornográficos: os principais temas destas “leituras para homens”, como se chamavam no século XIX, eram o adultério feminino e as relações homossexuais. Apesar do conteúdo incendiário, todos apresentavam finais moralistas, punindo as adúlteras ao definhamento precoce, como acontece em O primo Basílio (1878), de Eça de Queirós, considerado “romance para homens” para os padrões da época.
Se as roupas pesadas do século XIX deixavam mostrar poucas partes do corpo feminino, sendo zonas eróticas o rosto, os pés e as mãos – o ato de retirar as luvas era um notável strip-tease –, a agitação nas metrópoles do início do século XX exigia roupas leves que exibiam o corpo plenamente. Esta agitação, além de recomendações médicas a favor dos exercícios físicos, garantia movimento ao corpo, transformando o ideal de beleza: as madames cheinhas do século XIX cederam lugar às moças esbeltas do século XX. Desta modificação surgiram os produtos para mulheres, anunciados nas revistas femininas: “Nas revistas femininas, multiplicaram-se anúncios de produtos de incentivo ao narcisismo, antes esmagado pelo pudor. A mulher ousava olhar-se no espelho. Ela constava suas imperfeições e corria para corrigi-las” (p. 108). As primeiras décadas do século XX também aproveitaram o desenvolvimento em técnicas de reprodução de imagem que datam do final do século XIX, como a fotografia e o cinema, para produzirem revistas de nu feminino e filmes pornográficos. A primeira revista brasileira do gênero foi Rio Nu, sendo publicada entre os anos de 1900 a 1916. Inicialmente publicando charges de mulheres despidas, a partir de 1910 surgiram as primeiras fotografias de nu feminino, retiradas de revistas e coleções francesas. As imagens eram acompanhadas de poemas e contos eróticos ou eram apresentadas em série compondo pequenas narrativas, antecedendo assim em duas décadas os dirty comics, os quadrinhos pornográficos norte-americanos. Ao contrário de anúncios de produtos de beleza, os remédios para “saúde do homem” eram o que ganhavam as páginas de Rio Nu: “O Rio Nu difundia, também, muitas propagandas de remédios contra doenças sexualmente transmissíveis, em especial gonorréia e sífilis. Ou daqueles que garantiam infatigáveis ereções, como ‘A Saúde do Homem – o único que cura a impotência’” (p. 134-135). Se a ousadia de Rio Nu despertou o desejo do público masculino, ela também alarmou os defensores dos “bons costumes”: em 1910 os Correios proibiram o trânsito de Rio Nu e outras “publicações obscenas” em suas repartições. Ainda que os jornalistas da época classificassem o caso como “atentado à liberdade de imprensa” (p. 137), trata-se, antes de tudo, de censura às diversões públicas que, como afirma Carlos Fico em Além do golpe (2004), nunca deixou de existir legalmente no Brasil, enquanto a censura à imprensa ocorreu em momentos específicos, como durante o Estado Novo e o regime militar.
Por falar em Estado Novo, o regime ditatorial de Getúlio Vargas, juntamente com a Igreja, também se intrometeu na intimidade dos brasileiros, principalmente através de campanhas que incentivaram o casamento entre as classes subalternas – o movimento do “casa ou larga” (p. 121) – e também o aumento da prole, visto que o desenvolvimento nacional dependia do crescimento populacional. Após o fim do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial, ainda que a urbanização e a industrialização em curso no país aumentassem as oportunidades para estudar e trabalhar, não se notou grandes transformações em relação à distribuição de papéis entre homens e mulheres: “As distinções entre os papéis femininos e masculinos, entretanto, continuavam nítidas; a moral sexual diferenciada permanecia forte e o trabalho da mulher, ainda que cada vez mais comum, era cercado de preconceitos e visto como subsidiário ao trabalho do ‘chefe da casa’” (p. 160). A revista O Cruzeiro era o termômetro da vez, registrando a “caretice” dos anos 1950, como diriam os jovens da “revolução sexual” que estava por vir: em suas páginas se soube que “a natureza dotou especialmente o espírito feminino de certas qualidades sem as quais nenhuma espécie de sociedade matrimonial poderia sobreviver bem. Qualidades como paciência, espírito de sacrifício e capacidade para sobrepor os interesses da família ao interesses pessoais” (p. 166).
O essencialismo que se divulgou em O Cruzeiro, relacionando o sexo biológico a qualidades inatas, é duramente criticado pelo movimento feminista que conquista espaço a partir dos anos 1960-70. Não apenas o feminismo, mas também o fim do casamento e da família, a revolução sexual (graças à pílula anticoncepcional), a homossexualidade e o uso de drogas eram temas constantes da revista Ele & Ela. A atualidade dos temas não garantiu, contudo, a quebra de certos preconceitos e conservadorismos: sobre a mulher, por exemplo, a revista Ele & Ela continuava a afirmar que “a imagem da mulher emancipada não suprime a imagem da mulher essencialmente pura, fiel” (p. 181); sobre o gay power, movimento que a revista preferiu traduzir como “poder alegre”, a postura era ainda pior, tachando a homossexualidade de “desvio” e de “doença” (p. 183). Tudo isto demonstra que a revolução de costumes promovida pela contracultura não atingiu sucesso relevante no Brasil. Portanto, talvez o que de mais revolucionário se produziu neste período foram as pornochanchadas, gênero cinematográfico que correspondeu a 40% dos filmes nacionais exibidos nos anos 1970: para del Priore, “o gênero apenas refletia as mudanças da década: pílula anticoncepcional, movimento feminista e liberação de costumes. Afinal, as atrizes excessivamente maquiladas e seminuas mexiam com o imaginário do homem brasileiro, rompendo com a representação tradicional da sedutora ingênua, heroína dos romances de então” (p. 187-188). É claro que, do mesmo modo que Rio Nu, as pornochanchadas também sofreram censura, desta vez amparada pelo regime militar. Aliás, este é o único caso de censura às diversões públicas durante o regime militar que a autora aborda, passando por cima, por exemplo, dos cerca de 100 livros pornográficos censurados nos anos 1970, segundo levantamento da pesquisadora Sandra Reimão. Cassandra Rios e Adelaide Carraro, escritoras que amargaram, respectivamente, 18 e 13 livros censurados, tronaram-se, inclusive, heroínas para os editores d’O Pasquim, celebradas em entrevistas exclusivas.
Os anos 1980 trouxeram a AIDS e o medo e preconceito em torno da doença: jornais, como o baiano A Tarde, chegaram a propor a erradicação dos “elementos que podiam transmitir a peste gay” (p. 216). Para os jornais, gays e drogados eram as únicas vítimas da doença, sendo necessário que algumas celebridades se declarassem publicamente como portadoras do vírus para alterar este quadro, como fez Michael Jordan em 1991. Ao contrário de grupos religiosos e conservadores que pensavam na doença como maldição capaz de reverter os avanços nos costumes sexuais, o medo não foi suficiente para impedir modificações profundas nas relações entre homens e mulheres: “Com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e nas universidades e a adoção de novos comportamentos sexuais, os homens sentiam-se mais pressionados. Afinal, as conquistas femininas estavam ocorrendo na prática” (p. 233). É o funk de Tati-Quebra-Barraco que del Priore elege para ilustrar estas modificações: “Se eu pago o hotel / Ele faz o que eu quiser”, denominado-o acertadamente de “machismo de saias e rolo de pastel na mão” (p. 234). Como diriam as teóricas da terceira onda do feminismo, o modelo binário que estabelece as relações de gênero não é rompido, mas apenas invertido.
Chama a atenção del Priore se referir a Michel Foucault já nas primeiras páginas de Histórias íntimas, gerando a expectativa de um trabalho semelhante ao do autor de História da sexualidade (1976-1984). Entretanto, se Foucault desenvolve a sexualidade de forma articulada e consistente, del Priore esboça vários casos isolados que compõem justamente o que Focault procura evitar, ou seja, “uma história das condutas e das práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas, sua evolução e difusão” (História da sexualidade, v. 2). O resumo acima bem demonstra isto. Não se quer aqui, contudo, propor o trabalho de Foucault como modelo soberano para qualquer história da sexualidade, mas o contrário: Carlos Roberto Winckler, em Pornografia e sexualidade no Brasil (1983), apresenta um desenvolvimento igualmente articulado e consistente, mas apoiado em referencial teórico diverso (a união entre Freud e Marx realizada por Herbert Marcuse, principalmente). Sobre o incentivo do Estado Novo ao casamento entre as classes subalternas, por exemplo, Winckler percebe como este adiamento do princípio de prazer para se adequar ao princípio de realidade corresponde às expectativas de expansão do capital: o pai de família é mais dedicado ao trabalho que o homem solteiro. É através da delimitação do referencial teórico, portanto, que Winckler consegue articular os vários momentos da história da sexualidade brasileira. Ecoando o dulce et utile horaciano, Moacyr Scliar afirma, no prefácio de Histórias íntimas, que “a erudição não impede, contudo, que seu texto seja agradável, fascinante; pelo contrário, Mary del Priore sabe como prender nossa atenção” (p. 7). Bem se sabe que não falta erudição nos trabalhos de Mary del Priore, mas parece que em Histórias íntimas o agradável tomou a dianteira, o que talvez se justifique pelo tema: como falar do prazer se não prazerosamente?
Referência
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011.
Resenhista
Rodolfo Londero – Jornalista, doutor em Letras. Universidade Federal do Pará (Pará).
Referências desta Resenha
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. Resenha de: LONDERO, Rodolfo. Histórias íntimas publicadas na mídia brasileira. Revista Brasileira de História da Mídia. São Paulo, v.1, n.1, p.107-110, 2012. Acessar publicação original [DR]