Histórias e conversas de mulher | Mary Del Priore
A historiografia contemporânea tem focado cada vez mais nos estudos acerca da história das mulheres, principalmente pondo-as como sujeito histórico, consciente ou não de sua condição de submissão e passividade ao longo da história, e que hoje já se percebe transitando espaços antes ocupados pelos homens. Nesta seara, a historiadora Mary Del Priore tem se debruçado em arquivos diversos, traçando assim a história do Brasil desde o período colonial aos nossos dias, com foco em questões tidas como tabu, como é a questão da sexualidade e do erotismo; as mulheres na sociedade; enfatizando os acontecimentos com riqueza de detalhes, prendendo assim seu leitor até o final.
A autora é referência em história das mulheres, tendo publicado os clássicos: História das Mulheres no Brasil, Ao Sul do Corpo, Corpo a Corpo com a Mulher, Histórias Íntimas, Histórias e Conversas de Mulher e contribuiu na organização de outras obras sobre a História do Brasil.
Em sua obra Histórias e Conversas de Mulher, a historiadora trata de diversas temáticas importantes acerca das infinitas histórias da vida privada das personagens brancas; negras; das parteiras; das mulheres no esporte; do corpo feminino; da sexualidade; do casamento entre outros temas, traçando assim um panorama de 200 anos de história, enfatizando as diversas mudanças e conquistas da figura feminina, desde o período colonial até os dias atuais.
Com uma linguagem simples, literária e pouco acadêmica, a autora consegue alcançar o grande público leitor, por outro lado, faz pouca menção aos arquivos e acervos consultados para a escrita do livro, tendo sido percebido a utilização de jornais; relatos de viajantes; poemas; revistas; teses médicas; cartas; correspondências; testamentos; romances/literatura dentre outros. Como ela própria ressalta em entrevistas, o grande objetivo é de que suas obras sejam lidas não somente por seus pares, os historiadores, mais também pelo público de não historiadores e não acadêmicos. Devido à ampliação das pesquisas no campo da História Cultural, os livros da autora estão entre os mais vendidos, justamente por se encaixar nesse viés historiográfico de debate acerca do cotidiano e das minorias sociais.
A autora dialoga com romancistas, como é o caso de Machado de Assis, José de Alencar, também busca analisar teses médicas do final do século XIX, como por exemplo, as de Frederico Augusto dos Santos Xavier, do médico Italiano Cesare Lombroso, além de estudos realizados em 1913 por João Passos, Gilberto Freyre dentre outros.
A autora divide o livro em três partes: Da mulher na família a família da mulher; Mães – as boas, as más e as outras e Corpo feminino: paisagens e passagens. Na primeira parte da obra, Da mulher na família a família da mulher, a autora elenca cronologicamente o papel da mulher no seio familiar, traçando assim um panorama do casamento desde o período colonial até a contemporaneidade, trazendo à tona mudanças e permanências quanto à noção e o sentido do casamento. Enfatiza questões pertinentes ao lugar ocupado pela protagonista feminina no espaço privado; sua inserção no mercado do trabalho e a dupla jornada dentro e fora do lar.
Neste sentido, tanto a igreja quanto o estado, defendiam a ideia de que a mulher tinha a função puramente da procriação e submissão ao marido, enquanto que este era considerado o chefe da casa, o que contribuiu para a construção imaginária dos papeis femininos na sociedade: “[…] Esposas: mulheres corretas. Concubinas, imorais, que viviam “meretrizmente”, cúmplices de “tratos ilícitos”: as erradas” (DEL PRIORE, 2014, p. 20). Não obstante, hoje ainda percebemos certos padrões e valores morais e éticos carregados de vestígios desse passado, pondo a mulher em uma situação de dualidade, ora passiva e decidida a casar-se, visando à felicidade duradoura, ora não abre mão de sua independência financeira, mesmo estando vivendo uma relação estável, pois defendem ideais de uma “liberdade”, tanto de ir e vim, como também de expressão de suas opiniões e idealizações, já se percebe as mulheres transitando em espaços antes não notado sua presença, ainda assim, muito precisa ser conquistado.
A autora trata também acerca da sexualidade, sendo as moças brancas vigiadas a todo tempo e tendo que se resguardar, trancadas dentro de casa e reprimidas até pela própria igreja. Já as mulatas ou mulheres de “cor”, como ressaltou Gregório de Matos, citado pela autora, o qual, em seus poemas, mostra que estas serviam para a “fornicação”, pondo em debate a questão do racismo e da violência sexual. Ainda nessa primeira parte, trata sobre a moral, onde é definido a partir da designação “mulher de casa”, “mulher da rua”, sendo as brancas associadas ao padrão moral disseminado na época, que passavam da tutela do pai para o domínio do marido, enquanto que as negras, mestiças ou mulatas eram associadas à figura de “mulher da rua”, estavam sujeitas ao trabalho e a todo tipo de exploração sexual, sem muita proteção judicial. A contribuição da autora nesse sentido é que, traz uma importante reflexão acerca da importância do casamento e da família ainda nos dias atuais, onde para algumas mulheres configura-se em uma realização de um sonho, enquanto que para os homens uma prisão.
Na segunda parte, Mães – as boas, as más e as outras, a autora discute a questão da maternidade, enfatizando assim as influências da igreja, do estado e dos saberes medicinais. O destino natural da mulher estava associado a seu dever de procriação, papel determinado para a boa esposa. Ressalta as perseguições de médicos e também do próprio Estado às parteiras, benzedeiras e erveiras no século XIX, momento em que as crianças nasciam em casa por mãos de parteiras e eram cuidadas por benzedeiras e erveiras. Nesse período, o saber médico masculino começa a se destacar na arte de partejar, sendo incorporadas novas práticas e tecnologias médicas, surgindo assim o parto de césarea e as parteiras foram praticamente extintas. Na atualidade, nas escolas de enfermagem e os pesquisadores da área da saúde veem defendendo o retorno do parto natural, pondo em discussão o modelo obstétrico atual.
Se na atualidade estamos vivenciando uma discussão acerca do aborto, visando a sua proibição, no século XIX era uma prática aceita e tolerada pela igreja, tendo várias receitas abortivas feitas com ervas propagadas nos jornais da época, o caso se complicava quando o aborto estava relacionado a relações extraconjugais. Já nos anos 1890, o código penal republicano começa a punir a mãe que tirasse o filho. No Estado Novo, em 1940, houve uma alteração no Código Penal, pondo a mulher como responsável pelo cuidado com sua prole, sendo esta a mantenedora da família e caso cometesse o aborto seria reclusa há um ano ou mesmo três anos de prisão. Nota-se que, desde o período colonial que as decisões acerca do corpo da mulher não pertencem a ela própria, mas ao estado e ao saber médico, essencialmente masculino, colocando ao longo da história a figura feminina como “incapaz” de decidir sobre si.
Por fim, na terceira e última parte, Corpo feminino: paisagens e passagens, a autora traz cronologicamente questões históricas sobre o corpo feminino. As temáticas giram em torno do corpo ideal, padrão de beleza, o esporte que a mulher deveria ou deve praticar, o que precisa fazer para ter um corpo feminino, consequentemente desejado.
Enfatiza questões atuais sobre a condição social da mulher e a relação com o próprio corpo, buscando sempre atingir um padrão idealizado, normalizado. A autora nos mostra que, mesmo diante da pobreza material característica do período colonial, havia certa preocupação das mulheres com a aparência corporal, embora que, a igreja controlava até mesmo questões pertinentes ao corpo, pois a beleza quando muito ressaltado era sinal de perigo e associado assim ao pecado: o sexo. Evidencia-se que, o ideal de beleza do século XIX era pautado em um corpo branco, delicado e tendo cabelos loiros e longos, ou seja, um modelo de mulher europeia, reafirmando os traços que se buscavam legitimar como significativos e civilizatórios da nação, uma herança da colonização portuguesa.
O que nos faz compreender que, na atualidade as protagonistas femininas estão cercadas de dietas e exercícios físicos com o intuito de obter um corpo magro e esbelto.
A todo e qualquer custo a mulher hoje busca realizar procedimentos naturais e cirúrgicos para se livrar das gorduras, que é associado a feiura, resquícios do século XIX. A busca pela beleza corporal está intimamente associada à ideia de felicidade, por isso muitas meninas passam por problemas alimentares para que tenham um corpo ideal, seguindo assim um discurso midiático normalizador do modelo estético aceitável socialmente, desenvolvendo assim diversos distúrbios, como bulimia e anorexia, tudo pela não aceitação do corpo. Além dessas questões, a autora põe em debate também questões sobre a definição da feminilidade e da masculinidade, associando assim o fato de travestis, transexual, homossexual e prostituta serem deixados à margem, pois não são considerados como um modelo de homem ou mulher como predeterminado historicamente, estes sofrem violências e preconceito, além da não aceitação social por não se encaixarem num modelo de corpo.
Por fim, ressalta que, o que deve haver é um rompimento com a noção definida que se propaga de um modelo sobre o que é ser mulher e o que é a feminilidade, e sobre o que é ser homem e o que é a masculinidade. Contudo, a presente obra traz uma linha cronológica com riqueza de detalhes de cada época, pondo em cheque o que mudou, as rupturas como também as permanências, tidas como motivo das lutas feministas ainda na contemporaneidade.
Resenhista
Vanessa Nascimento Souza – Licenciada em História (UniAGES) Pós-graduada em Biblioteconomia (FAVENI) Mestranda em História (PROHIS/UFS). E-mail: nesajuliao@gmail.com.
Referências desta resenha
DEL PRIORE, Mary. Histórias e conversas de mulher. 2ed. São Paulo: Planeta, 2014, 303p. Resenha de: SOUZA, Vanessa Nascimento. Horizontes Antropológicos. São Cristóvão, v.2, n.1, 2020. Acessar publicação original [IF]