A vida só é possível reinventada…
Cecília Meireles (2001)1
A proposição do presente Dossiê inscrevese em movimentos diversos. Quando iniciamos o processo de organização, a vida e seus desafios corriam em intensos acontecimentos na política, na educação e no cotidiano do trabalho de professores/as e educadores/as sociais. A etapa de sua finalização, entretanto, se colocou para nós em meio à perplexidade da maior crise humanitária já vista pelas últimas gerações da qual não sairemos ilesos, não sairemos os mesmos. O que fazemos, lemos, organizamos traz a marca do que nos atravessa e é assim que nos colocamos frente aos textos que aqui apresentamos e que tematizam a vida. A vida de mulheres e homens comuns, ordinários no dizer de Certeau2, alguns com grande referência entre nós como Anísio Teixeira, mas todos igualmente destacados educadores, na acepção de Abrahão (2001, 2018)3. Vidas autobio-grafadas que, no limite da luta pela (re) existência física, emocional, profissional nos fazem, ao menos, dois convites: o da permanente reinvenção da vida e de sua também permanente narrativa como caminho coletivo de reafirmação das lutas que nos movem.
Embaladas por esses desafios, temos o prazer de apresentar o Dossiê com textos de colegas pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras que laboram com o método (auto)biográfico, em especial com Histórias de Vida, conhecidas como uma das possibilidades metodológicas que operam, dentre outras e diversificadas fontes, com a narratividade (auto)biográfica em educação.
Bolívar, Domingo e Fernández (2001)4, com clareza, definem narrativa, per se, na qualidade de relato oral ou escrito; investigação narrativa, como o trabalho com narrativa segundo o modo de construir/reconstruir reflexivamente o relato para dele elicitar sentido e utilização da narrativa como dispositivo promotor de mudança, no caso da prática educativa. Explicando a abrangência desse entendimento, esses mesmos autores conceituam a narrativa como acontecimento, isto é, como fenômeno de estudo; como método de investigação e como instrumento promotor de desenvolvimento e de identidade.
Nessa perspectiva, Abrahão (2008)5 e Souza, Passeggi, Vicentini (2013)6 têm explicitado nas próprias pesquisas como entendem esses constructos, a seguir resumidos.
Abrahão considera a narrativa (auto)biográfica na tríplice dimensão epistemológica de uma mesma totalidade: como fenômeno, ato narrativo a ser perscrutado mediante estudos que questionem as possibilidades heurísticas da formação do sujeito da narração, tanto na vertente da construção de uma História de Vida, quanto na vertente de Investigação-Formação; como metodologia de pesquisa, em ambas as vertentes, na qualidade de fonte privilegiada do método (auto)biográfico, processualmente entrelaçada com outras fontes, para a construção de uma história de vida ou de um memorial de vida, conforme o caso e, ainda, como experiência formativa de (re)significação do vivido, na qualidade de dispositivo de autoconhecimento e de construção identitária evolutiva de cuja reconfiguração da experiência, em processo reflexivo, participam narrador/a e pesquisador/a.
Souza, Passeggi e Vicentini concebem a pesquisa (auto)biográfica segundo vertentes que consideram o ato da narração como fenômeno antropológico e civilizatório produzido especialmente pela linguagem oral e escrita; como método que se propõe a investigar aspectos históricos, sociais, multiculturais, institucionais da formação humana; como práticas de (auto)formação, mediante a reflexividade (auto)biográfica, com repercussão na constituição da subjetividade e da inserção social do sujeito da narração e, ainda, na qualidade de elemento investigativo do uso das narrativas como dispositivo de intervenção educativa.
A narrativa (auto)biográfica no âmbito da pesquisa educacional, balizada por esses constructos, sem elidir outros de equivalente valor heurístico, tem produzido estudos que tematizam trajetórias vivenciais, em tramas singulares/plurais, tecidas na dinâmica do tríplice presente que envolve passado, presente e futuro em uma relação espaço temporal da experiência humana não apenas em termos cronológicos, mas, especialmente, em termos de significações produzidas “ […] entre o presente do futuro, o presente do passado e o presente do presente […]’’ (RICOEUR, p. 41)7 .
Essas tramas são uma construção fruto do processo peculiar de intercâmbio entre pesquisador/a e narrador/a que implica um círculo virtuoso entre enunciação e escuta atenta e sensível, visando à partilha de uma história que se faz em movimento. Além das narrativas enunciadas oralmente ou, até mesmo por escrito, se fazem úteis outras fontes como as documentais e imagéticas que, em diálogo com os referenciais epistemológicos e teóricometodológicos do/a pesquisador/a, muito auxiliam na interpretação e significação de uma vida para os partícipes dessa aventura (auto) biográfica.
A significação do vivido pelos sujeitos históricos da educação, em passado distante ou não tão distante, mostra-se crucial na atualidade, razão pela qual se fazem no Brasil e no exterior estudos cada vez mais voltados para produções que dão a ver novas histórias e versões que na contemporaneidade lhes proporcionem o indagar sobre si mesmo e sobre o outro, no âmbito de uma sociedade que se quer mais humanizada.
Tendo em vista a significação das Histórias de Vida de intelectuais e educadores(as) sociais – de qualquer área, acadêmicos ou exteriores à academia, atuantes em sistemas educacionais formais ou informais – para a tessitura dessa humanização do social nos tempos hodiernos, o Dossiê recebeu contribuições, mediante textos que compartilham uma história de vida ou narrativas (auto)biográficas, bem como artigos relativos à discussão do método e possíveis desenvolvimentos teóricometodológicos em pesquisas dessa natureza.
Iniciamos o Dossiê com um conjunto de artigos que tematizam o método e dão especial visibilidade a múltiplas dimensões epistemometodológicas.
O texto Experiencias pedagógicas de educadores sociales: aportes a la formación técnico-profesional desde la investigación autobiográfica y narrativa, de Paula Valeria Dávila e Agustina Argnani, analisa as possíveis contribuições que o dispositivo da documentação narrativa das experiências pedagógicas pode oferecer quando se trata de reconstruir e manter a memória sobre as experiências que alguns educadores sociais realizaram no campo da formação técnico-profissional de pessoas jovens e adultas na Argentina, na última década. As autoras apresentam uma série de reflexões e perguntas sobre como esse dispositivo é reconhecido na tradição da pesquisa biográfica e narrativa em educação, reconstruindo as experiências pedagógicas de educadores dos mais variados campos e territórios educacionais. Nesse caminho, começam pela discussão teórica e metodológica da documentação narrativa, fazendo descrição sintética da composição do dispositivo e problematizando seu potencial. No segundo momento partilham a análise interpretativa de algumas das histórias de experiência pedagógica escritas por educadores sociais no âmbito da implementação de itinerários de documentação narrativa.
Marie-Christine Josso participa do dossiê tematizando as relações entre Histórias de vida e formação: suas funcionalidades em pesquisa, formação e práticas sociais. O artigo apresenta uma tentativa de delimitar os contornos atuais e as possíveis aberturas do uso da (auto)biografia nos campos da educação, formação, saúde e diversas áreas sociais e do mundo do trabalho, seja quais forem as formas metodológicas e as maneiras de dar a ver (as artes incluídas) que serão proporcionadas por pesquisadores, autores, professores e formadores. As funções construídas referem-se às premissas de uma epistemologia meta-disciplinar do sujeito de cognição que ainda precisa ser construída pelas novas gerações.
Ancoragem de uma política de pesquisa em ciências humanas: histórias das novas profissões socioeducativas em formação é o título do texto de Gaston Pineau. O autor socializa em sua discussão três dispositivos franceses que visam trazer a público os caminhos das novas profissionalizações para formadores-educadores sociais, nas fronteiras de indivíduos e instituições: a primeira parte é um dispositivo de ancoragens documentais nos itinerários de leituras, de pesquisas e de práticas de professores-pesquisadores inovadores; a segunda consiste em um apelo dirigido às autobiografias profissionais de instrutores adultos pioneiros e, finalmente, a terceira parte apresenta o uso pessoal de quatro portas para adentrar em si mesmo e tentar cultivar os tesouros ocultos da autoformação que toda a vida esconde.
Ana Margarida da Veiga Simão e Lourdes Maria Bragagnolo Frison focalizam Histórias de Vida em pesquisa (Auto)biográfica: circuito que inclui tempos, lugares e autorregulação da aprendizagem. No texto discutem e aprofundam o conceito de tempo/lugar biográfico que inclui, no tempo da narrativa, o tempo objetivo e o tempo subjetivo. Tempos, esses, que são vividos por educadores que percebem o seu tempo/lugar de diferentes maneiras, mas que, para eles, se constitui em um tempo/lugar de realizações, as quais influenciam reflexões que permitem ao sujeito aprender sobre si e sobre seu fazer, entendimento relevante para a autorregulação de ações direcionadas a uma vida mais profícua e feliz. Dessa forma, as autoras estabelecem um elo entre narrativas em Histórias de Vida, (auto)formação e autorregulação da aprendizagem, uma vez que no percurso da vida, as pessoas encontram desafios, tensionamentos, alegrias e preocupações, os quais, ao serem narrados reflexivamente, contribuem para entender as vivências, desafios, obstáculos de ordem pessoal/profissional e autorregulá-los. Essas dimensões foram empiricamente observadas mediante o estudo da História de Vida de uma destacada educadora/pesquisadora sul-rio-grandense – Maria Helena Menna Barreto Abrahão.
O artigo “Oi, Iv, como vai? Boa sorte na escola!”: notas (auto)biográficas constitutivas da história de vida de um educador, de Ivor F. Goodson e Maria Inês Petrucci-Rosa, aborda as relações entre estórias e histórias de vida, destacando a interlocução entre aprendizagem narrativa e a experiência benjaminiana. Em seu desenvolvimento aborda, pelo menos, duas vertentes teórico-metodológicas que operam com conceitos de narrativas que são conjugadas: aquela proposta por Ivor Goodson e aquela advinda da contribuição intelectual de Walter Benjamin. Como empeiria, revisita notas (auto)biográficas de um dos autores, originadas de uma entrevista concedida e publicada em 2015, onde a infância narrada aponta para um tempo futuro no qual o educador mantém seu senso de propósito de justiça social. A história de vida desse educador, configurada em mônadas benjaminianas, possibilita reflexões sobre a natureza da (auto)biografia que se fortalece como ponto de partida no sentido da luta por uma educação que favoreça a valorização de aprendizagens tribais transmutadas em aprendizagens narrativas calcadas em sentimentos, sonhos e compaixão.
Em Sustentar a empregabilidade mediante a aprendizagem ao longo da vida. Uma abordagem em história de vida para empregabilidade, Henning Salling Olesen apresenta o desdobramento prático de um método de história de vida em um amplo projeto empírico sobre empregabilidade. O discurso da empregabilidade, entendendo-se o trabalhador como força de trabalho universalmente adaptativa, é contextualizado historicamente em uma fase tardia da modernização capitalista. Uma discussão crítica do conceito predominante de competência para negligenciar a dimensão subjetiva do aprendizado e do desenvolvimento de competências leva a considerações e decisões metodológicas tomadas na elaboração do referido projeto de pesquisa, suas questões, seu entendimento teórico e a escolha do método. As histórias narrativas da vida devem esclarecer as experiências dos trabalhadores sobre mudanças substanciais em sua carreira e o desenvolvimento de competências que estes experimentaram nessas situações. O artigo antecipa como uma interpretação psicossocial das histórias de vida pode trazer informações valiosas na dimensão subjetiva do desenvolvimento de competências no contexto da vida dos trabalhadores como um todo.
Wolney Honorio Filho e Rita Tatiana Cardoso Erbs partilham o artigo Aproximações entre pesquisa (auto)biográfica e história da educação. O objetivo do texto consiste em discutir as aproximações entre pesquisa (auto)biográfica e história da educação, por meio de uma pesquisa bibliográfica, bem como de reflexões dos autores, no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão (PPGEDUC/UFG/RC), na linha de pesquisa Políticas Educacionais, História da Educação e Pesquisa (Auto)Biográfica. Como resultado, os autores constatam tanto aproximações quanto distanciamento entre as práticas de pesquisa (auto)biográfica e história da educação. Distanciam-se quando em pesquisa (auto)biográfica a produção de fontes orais visa também à formação do sujeito narrador e aproximam-se, de formas múltiplas, especialmente ao trabalharem com memórias possíveis em contextos históricos.
A seguir, o presente Dossiê socializa um conjunto de artigos que entrelaçam (auto)biografias, história e memória, por meio de uma história de vida ou narrativas (auto)biográficas.
O vivido e o concebido na história da educação brasileira: a biografia intelectual de Sud Mennucci e a formação de professores rurais, de Fernando Henrique Tisque dos Santos e Dislane Zerbinatti Moraes busca compreender a natureza do pensamento educacional de Sud Mennucci a partir da construção da sua “biografia intelectual”. Sua atuação no campo educacional está marcada pela defesa da criação de Escolas Normais Rurais. O corpus documental da pesquisa é composto por 5 livros publicados por Sud Mennucci e seus textos escritos na Revista do Professor (1934-1939) e Educação (1929-1948). O referencial teórico trabalhado pelos autores consistiu na leitura de François Dosse (2009), que entende a biografia como uma entrada para a reflexão historiográfica a partir da singularidade da vida de um indivíduo, Pierre Bourdieu (1998), a partir de suas análises sobre o capital cultural e Roger Chartier (1990, 1991), que tem permitido pensarmos na relação entre o capital cultural e social como fundamentos de representações.
Silmara de Fatima Cardoso tematiza Narrativas de viagem nos escritos de um educador viajante – Anísio Teixeira: memórias, formação, modelos de educação e saberes. No artigo encontramos narrativas e representações de um modelo educacional considerado como ideal na escrita de viagem de Anísio Teixeira e a busca por compreender como Anísio se apropriou desse modelo colocando-o em prática no seu percurso pela educação pública. Para tanto, a autora utiliza como fonte de estudo dois diários e um relatório que foram produtos de suas viagens à Europa, em 1925, e aos Estados Unidos, em 1927, que tinham como propósitos conhecer e estudar modelos pedagógicos e práticas educativas consideradas inovadoras. Este trabalho pretende contribuir para a reflexão de apropriações e possíveis leituras de um modelo de ensino estrangeiro na formação e atuação de Anísio Teixeira, e ainda, dar visibilidade às ações concretas e modos de compreender esse modelo educativo considerado referencial. A escolha da temática do presente trabalho se justifica na medida em que os estudos historiográficos têm voltado o interesse para pesquisas sobre viagens e os escritos produzidos pelos viajantes, os quais contemplam discursos, representações e imagens da sociedade, da cultura, da educação, de ideias, etc.
Em A memória de uma mestra: trilhas de um pensamento pedagógico, Adrianne Ogeda Guedes e Iduina Chaves apresentam a memória e o ideário pedagógico de uma mestra – Célia Linhares. É um estudo de sua trajetória como educadora com vistas a apreender as ideias-forças, a forma como elas foram se construindo e se constituindo ao longo do tempo, a presença das questões que circulavam nos diferentes tempos históricos vividos por ela e a potencialidade de sua atuação. Articulando as questões que a mobilizavam, à sua história profissional e à sua prática pedagógica, foi possível identificar a marca da relação mestre e aprendiz como a sabedoria e a arte do mestre em se reconhecer no aprendiz, e, ainda, se reconhecer um aprendiz. O referencial teórico-metodológico se fundamenta na epistemologia da complexidade de Edgar Morin e na pesquisa narrativa de Chaves, Passeggi, Catani, Nóvoa e Josso. Toda a obra de Célia Linhares ressalta a necessidade de agirmos contra a barbárie, convocando a educação a constituir-se como uma promotora da solidariedade, do sentimento de pertença nos estudantes, no exercício da escuta e do diálogo, no acolhimento e no estabelecimento de relações pautadas pelo amor e pelo afeto. Envolvimento num processo formativo que se desenvolve pelo cultivo de almas.
O texto Sentidos ao seu viver: Jessy Cherem uma educadora em trânsito (Santa Catarina, 1960/1980), de Susane da Costa Waschinewski e Maria Teresa Santos Cunha, apresenta aspectos e constrói sentidos sobre a trajetória de Jessy Cherem (1929-2014), uma professora catarinense que protagonizou deslocamentos – tanto em âmbito nacional como estadual – que tiveram como intuito tanto seu aperfeiçoamento profissional como sua atuação posteriormente dedicada à formação de educadores e diretores escolares em diversos municípios catarinenses e em outros estados brasileiros. Analisar os deslocamentos dessa profissional criou possibilidades para observar brechas tanto para recompor questões mais gerais sobre campanhas de formação de professores como para problematizar a presença de mulheres viajantes e das redes que fomentaram em seu trânsito. Considerando as potencialidades e limites do tema, a investigação contou com documentos que integram o seu arquivo pessoal, entrecruzados com as próprias entrevistas dadas em vida, pela professora, sobre este tema.
Regina Maria de Souza, Morena Dolores Patriota da Silva e Cristiane Maria da Silva socializam o artigo intitulado Recortes literário e biográfico de Monteiro Lobato na defesa da eugenia e do fascismo racial, que tem como objetivo discutir as bases do processo eugênico contra a raça negra, defendidas na obra O presidente negro, de Monteiro Lobato (primeira edição em 1926). A análise da obra realizou-se a partir de defensores da eugenia, dentre eles Renato Kehl, e de trabalhos acadêmicos atuais que demonstram o tributo deixado pela eugenia no olhar e nas ações voltados à população negra. A conclusão é de que o projeto eugênico, proposto por Francis Galton, em 1883, que chegou ao Brasil no início do século XX, mantém-se presente, escancarado no significativo número de negros assassinados no Brasil, em relação ao de brancos, escamoteado em produções acadêmicas e livros didáticos que ainda reverberam e exaltam as ideias de Lobato; mascarado na formação universitária de pesquisadores, no Brasil e no exterior. Formação fragmentada e fragmentária que, sem um olhar histórico diacrônico, acaba por alimentar, em gerações futuras, a crença na possibilidade de uma organização social e instituições sem conflitos, propostas e governadas, em sua maioria, por brancos que ouvem as diferenças, mas não transformam essa audição em escuta que possa romper a lógica de branqueamento e de controle sobre elas.
Maria Grasiela Teixeira Barroso: desenvolvimento profissional na enfermagem cearense, artigo de Mariza da Costa Pereira, Silvia Maria Nóbrega-Therrien e Andréa da Costa Silva, compõe uma trajetória de vida pessoal e profissional, evidenciando sua implicação constante e dedicada à formação e ao ensino do profissional enfermeiro. Conforma uma investigação com abordagem qualitativa, cuja metodologia utilizada foi do tipo História Oral, combinando fontes orais com uma documentação densa paralela, escrita ou iconográfica. Com base nas análises, constatou-se que Grasiela Barroso teve intensiva participação na história da Enfermagem no Ceará, visto que trabalhou incansavelmente pelo crescimento desse ofício-arte, preocupando-se com o ensino dos novos enfermeiros, dedicando-se a constituir saberes e modernizar as referidas práticas, com âncora em concepções e promoção da saúde. A pesquisa conclui que se faz necessário registrar a história e a memória de profissionais que consolidaram as bases desse relevante mister, preservando e enaltecendo os feitos e ações dessas personalidades.
Delmary Vasconcelos de Abreu apresenta a História de vida de uma intelectual brasileira: Jusamara Souza e seus desafios epistemológicos com a Educação Musical, artigo elaborado no âmbito de uma pesquisa de pós-doutorado realizada no ano de 2018, na Universidade Federal de Pelotas. A construção da História de Vida de Jusamara Souza com o campo da Educação Musical esteve pautada nas obras do filósofo Paul Ricouer, com destaque para as obras Tempo e Narrativa e o Si mesmo como um outro, tendo como objetivo compreender a história de vida profissional da pesquisadora e tomando como pressupostos teóricos e metodológicos as Histórias de Vida. Os episódios foram construídos com temas que emergiram das fontes orais e documentais dentro da tríplice mímese da aventura (auto)biográfica, que consiste em fazer da história de vida um modo de exprimir-se, socializar-se e avaliar-se formativamente no contexto da área da Educação Musical. Ao tematizar a trajetória profissional desta educadora musical brasileira, é possível dizer que, nas várias histórias da educação musical no Brasil, há um esforço a ser empreendido nos sentidos produzidos no campo da educação musical na tentativa de compreender na história de vida profissional de educadores, professores e pesquisadores a percepção da própria historicidade da área e suas epistemologias.
Insubordinação criativa como parte do legado científico de Beatriz Silva D’Ambrosio, de Josâne Geralda Barbosa e Celi Espasandin Lopes, apresenta uma biografia intelectual apoiada no método biográfico, especialmente nos estudos de Clandinin e Connelly (2011), Dominicé (2014), Dosse (2015), Ferrarotti (2014), Finger e Nóvoa (2014), Lani-Bayle (2008), Passeggi e Souza (2017) e Muñoz (1992). Neste artigo é abordado um dos assuntos que constituem parte do legado científico da biografada para a Educação Matemática brasileira: as discussões sobre a insubordinação criativa na prática do professor e do pesquisador. São apresentadas algumas narrativas que elucidam a insubordinação criativa na concepção de Beatriz como um conceito que leva os profissionais a ter sensibilidade para entender o outro e o contexto no qual está inserido, honrar o compromisso assumido no exercício das atividades diárias, mobilizar saberes de forma a proteger a integridade dos estudantes e dos espaços formativos, neutralizar os efeitos desumanizadores da autoridade burocrática.
Fernanda Ielpo da Cunha, Ana Maria Eugênio da Silva e José Gerardo Vasconcelos são os autores do artigo Ana Maria Eugênio da Silva: uma quilombola que venceu o câncer escrevendo e dançando com São Gonçalo. O processo da descoberta do câncer de mama, os impactos, as angústias, o medo e ainda a discriminação foram os assuntos discorridos nesta pesquisa. A autobiografia de uma mulher negra quilombola revela os caminhos percorridos para o tratamento realizado através do Sistema Único de Saúde e a importância da autobiografia e espiritualidade na superação de sua enfermidade. O estudo chama a atenção para a importância do recorte étnico-racial frente às políticas públicas de saúde destinadas à população negra, especialmente à mulher quilombola, cujas singularidades e particularidades não são compreendidas nem respeitadas por grande parte dos profissionais de saúde, o que repercute na fragmentação de ações pontuais se comparadas àquelas destinadas a mulheres brancas. A metodologia é exploratório-descritiva, com revisão de literatura e análise autobiográfica da autora em questão. Os resultados revelam o quanto foram importantes a autobiografia e a dimensão da espiritualidade para a autora, ressignificando sua vida positivamente e fazendo-lhe protagonista de sua história.
O artigo Memória coletiva e biografias educativas de alfabetizadores em movimentos sociais de Sandra Mabel Llosa tem como objetivo compartilhar aspectos metodológicos de uma linha de pesquisa em andamento, enfocando desafios de uma abordagem coletiva e participativa para reconstruir a memória coletiva e as biografias educacionais de educadores alfabetizadores de jovens e adultos em organizações e movimentos sociais da Argentina. Primeiro, é apresentada a linha de pesquisa geral na qual este trabalho está inserido. Esta pesquisa enfoca, por meio de uma estratégia metodológica combinada, qualitativa e participativa, o estudo dos processos pedagógicos e psicossociais que fazem a construção coletiva do conhecimento, em experiências político-pedagógicas desenvolvidas por organizações e movimentos sociais, em torno de áreas problemáticas da vida cotidiana; uma delas se refere à alfabetização de jovens e adultos. Após a localização desse problema, são desenvolvidas e fundamentadas as principais decisões epistemológicas, teórico-metodológicas e técnicas dessa linha de pesquisa, bem como os primeiros avanços realizados. Por fim, são feitas reflexões sobre a busca da consistência dessas decisões em relação aos pressupostos gerais da pesquisa-ação participativa e da educação popular, considerados relevantes para os problemas urgentes do contexto atual do país e da região.
Pirilampo, lamparina: lumezinho de mim, céu pintado de história, de Rosvita Kolb Bernardes, apresenta algumas histórias da infância da autora, vividas no Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, e que a compõem como aprendiz ao longo da vida. Para dar forma e sentido a essa experiência, a autora toma como inspiração o “ateliê biográfico de projeto”, tal qual formulado pela pesquisadora Christine Delory- Momberger (2006). A autora, movida pela certeza de que é preciso fazer conhecer-se a si mesmo para conhecer o outro, partilha texto de uma pesquisa autobiográfica, feitura que começou durante o processo de doutoramento, caminhando para a prática como professora, artista e pesquisadora.
Finalizando a leitura dos textos do dossiê e a composição que ora socializamos, encontramos a força de sentidos da pesquisa narrativa (auto)biográfica: como fenômeno presente na prática social, como método de construção partilhada de conhecimentos e como formação humana. Os artigos partilhados reafirmam a riqueza de desdobramentos teórico-metodológicos que nos encantam e animam na continuidade da permanente reinvenção da vida e da pesquisa.
Porto Alegre, Campinas, 05 de abril de 2020
Notas
1 MEIRELES, Cecília. Vaga Música. Rio de Janeiro, Pongetti, 2001. p. 411.
2 CERTEAU, Michel de. As artes de fazer: invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1998.
3 ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (org.). História e Histórias de Vida: destacados educadores fazem a história da educação rio-grandense. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. Prefácio: António Nóvoa. ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (org.). Memórias, identidades, experiências... destacados educadores brasileiros em histórias de vida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2018. Prefácio: Jorge Luiz da Cunha.
4 BOLÍVAR, Antonio; DOMINGO, Jesús; FERNÁNDEZ, Manuel. La investigación biográfico-narrativa em educación: enfoque y metodología. Madrí: La Muralla, 2001.
5 ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Le récit autobiographique – temps et dimensions de l’invention de soi. In: SOUZA, Elizeu Clementino de (org.). Autobiographies, Écrits de Soi et Formation au Brésil. Paris: L’Harmattan, 2008, p. 125-146.
6 SOUZA, Elizeu Clementino de; PASSEGGI, Maria da Conceição; VICENTINI, Paula Perin. Diálogos sobre pesquisa (auto)biográfica: percursos de formação, profissionalização e cooperação acadêmica. In: SOUZA, Elizeu Clementino de; PASSEGGI, Maria da Conceição; VICENTINI, Paula Perin (orgs.). Pesquisa (auto)biográfica: trajetórias de formação e profissionalização. Curitiba: CRV, 2013, p. 15-23.
7 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas/SP: Papirus, 1994, tomo I.
Organizadores
Maria Helena Menna Barreto Abrahão – Universidade Federal de Pelotas.
Inês Ferreira de Souza Bragança -Universidade Estadual de Campinas.
Referências desta apresentação
ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. Salvador, v. 05, n. 13, p. 16-23, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]
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