Poucas obras na história se tornaram tão indispensáveis para a compreensão de determinados temas como fora Historia rerum in partibus transmarinis gestarum para análises acerca das cruzadas. Este trabalho se faz presente na bibliografia de qualquer livro que se propõe abordar o referido assunto; invariavelmente, a obra do cronista Guilherme de Tiro, descrito por Steven Runciman (2003, p. 409) como o maior dos historiadores cruzados e “um dos maiores historiadores medievais”, estará citada. Em diversas ocasiões, inclusive, o autor se torna ator da própria história que narra.
Não encontramos a referida crônica de Guilherme de Tiro em idioma português. Acreditamos que, de fato, não exista. Recorremos, dessa forma, a uma tradução em espanhol, intitulada Historias de Ultramar, elaborada por Lorenzo Vicente Burgoa, doutor em Filosofia, Teologia e Letras. Além de traduzir, Burgoa, que é professor emérito da Universidade de Múrcia, na Espanha, enriqueceu a obra ao inserir notas, apêndice e introdução.
O livro abordado nesta resenha foi lançado na Espanha no ano de 2015. Descreve os momentos que antecederam a Primeira Cruzada até a conquista de Jerusalém. Trata-se do primeiro tomo, de uma série de três. Em contato, via e-mail, com Lorenzo Vicente Burgoa, o professor espanhol nos informou que a tradução de toda a obra está concluída e que o lançamento dos dois tomos restantes está a cargo da editora. Os dois volumes seguintes narram as cruzadas subsequentes e demais eventos ocorridos no Oriente Cristão, muito dos quais testemunhados por Guilherme de Tiro.
Pouco se sabe sobre os primeiros anos de vida de Guilherme de Tiro, os dados que obtivemos foram através de renomados historiadores que o citam em seus respectivos trabalhos e de informações pessoais fornecidas pelo próprio Arcebispo no decorrer de sua narrativa, como cargos por ele exercidos e as motivações que o levaram a escrever suas crônicas referentes às cruzadas. Mesmo com poucas referências disponíveis, é possível traçar uma breve biografia de nosso cronista.
Guilherme de Tiro nasceu em Jerusalém, por volta do ano 1130; começou a ser educado na escola do Santo Sepulcro (MAYER, 2013, p. 233), instituição que visava instruir jovens que pretendiam seguir carreira eclesiástica. Presume-se que na adolescência Guilherme já havia aprendido os idiomas árabe e grego, além do latim (RUNCIMAN, 2003, p. 408). Prestes a completar dezesseis anos de idade viajou para a Europa com intuito de prosseguir com seus estudos. Em Orleans cursou Artes Liberais; em Paris aprofundou-se nos aprendizados teológicos. Fora, então, para Bolonha, à época um renomado centro de estudos jurídicos, onde recebeu instrução em Direito (BURGOA, 2015, p. 26).
Devido ao longo período que permaneceu em solo europeu, cerca de 15 anos, é possível que nessa época, precocemente, já havia começado a exercer funções sacerdotais em alguma das cidades em que estivera, pois assim que regressa ao Oriente, por volta de 1160, torna-se cônego em Acre2 e arcediago de Tiro3. Sua formação intelectual o credenciaria para ascender na hierarquia da Igreja e também a ocupar cargos na administração do Estado; em 1170 fora nomeado chanceler do Reino de Jerusalém4 pelo rei Amalrico, função que exerceu até 1174. Outra incumbência delegada ao clérigo foi cuidar da educação do filho do monarca; Guilherme se tornou tutor da criança que mais tarde se tornaria Balduíno IV, o Rei Leproso. Fora o Arcebispo, inclusive, a descobrir que o príncipe havia contraído lepra, uma das doenças mais temidas na Idade Média.
Dentre os trabalhos diplomáticos sabe-se que, em 1168, Amalrico enviou uma embaixada liderada por Guilherme de Tiro à Constantinopla com a finalidade de solicitar o apoio do Imperador bizantino, Manuel Comneno, para uma ação conjunta contra o Egito. Foi recebido com cortesia e firmou um acordo com Manuel no qual estabeleceram as divisões de uma eventual conquista; entretanto, quando Guilherme regressou a Jerusalém Amalrico já havia levado seu exército em direção ao Cairo, antes mesmo de saber a resposta do Imperador (RUNCIMAN, 2003, p. 327).
Como mencionamos, nosso cronista era membro do clero. Dito isto, pode-se imaginar, a priori, que Guilherme de Tiro compusera algo como uma epopéia com o propósito de enaltecer e justificar os atos dos cruzados. Ledo engano. Em diversas situações é possível observar críticas feitas a comportamentos de seus correligionários, bem como enaltecer atitudes de líderes maometanos. O texto deixa transparecer que o objetivo era, de fato, informar seus leitores acerca do que acorrera no Oriente àquela época, bem como o trajeto feito pelos cruzados para essa região. Guilherme de Tiro, aliás, se apresenta como historiador; esse é o tratamento que recebe de autores que o mencionam em trabalhos acerca das cruzadas. Já no século XII apresentou uma perspectiva que consideramos bastante plausível na atualidade: considerava parte do ofício de um historiador entender cada indivíduo de acordo com os costumes de suas respectivas nações (GUILHERME DE TIRO, 2015, p. 35).
O Arcebispo de Tiro mostra comprometimento com a ocupação que admite desempenhar. Nota-se que os cargos de arcebispo e chanceler se restringiam para as questões do Estado ou da Igreja, na construção de sua narrativa assume, com efeito, a função de historiador. Em seus escritos mostra uma excessiva preocupação com o que supunha ser a verdade e que essa, na concepção deste cronista, deve ser inerente ao trabalho de um historiador; Guilherme (2015, p. 35) acreditava que “[…] deixar de lado a verdade dos fatos e ocultar algo intencionalmente, é atuar contra seu próprio ofício. Afastar-se do ofício é, sem dúvida, algo culpável5 ”. Guilherme de Tiro (2015, p. 36) condena historiadores que escrevem com o intuito de simplesmente agradar o leitor, bem como os que mesclam veracidade e ficção na elaboração de textos. O abuso de elementos literários nas narrativas, conforme concepção deste cronista, induz o leitor ao ócio. Esses artifícios podem enganar as futuras gerações de leitores e, portanto, vão em direção contrária às suas funções.
Para Guilherme de Tiro, um historiador no exercício de suas atividades pode despertar os mais variados sentimentos, principalmente quando o leitor se identifica com o objeto de estudo do escritor. Nessa circunstância, surgem duas opções para o autor: escrever de forma verídica, de acordo com o que seja sua compreensão da verdade, ou escrever de forma com que os fatos se apresentem agradáveis, tanto para quem o lê, como para aqueles que tem suas histórias narradas. De acordo com o cronista e dentro do contexto em que sua narrativa fora construída, a verdade e o agradável são inconciliáveis.
Os dilemas mencionados pelo autor talvez tenham sido originados por causa de sua proximidade da corte, como exigia sua incumbência de chanceler. Guilherme de Tiro (2015, p. 37) menciona que inseriu em seus escritos “muitas coisas acerca da vida e costumes dos reis […], tanto o recomendável como o oculto6 ”. A forma como esse cronista escreve sugere que, possivelmente, sofreu retaliações por parte da elite ierosomilitana e dos reis latinos de Jerusalém.
Originalmente escrita com o título de Historia rerum in partibus transmarinis gestarum, algo como “História dos eventos ocorridos no Ultramar”, foi redigida entre 1170 e 1184 e narra desde o início da Cruzada até o reinado de Balduíno IV. Runciman (2003, p. 295) a classifica como “tremenda e importante fonte”. Por solicitação de Amalrico, o Arcebispo também elaborou uma série de crônicas que expunha a história do Oriente desde o tempo do Profeta Maomé até o ano de 1184 (GUILHERME DE TIRO, 2015, p. 38); contudo, infelizmente, essa obra se perdeu no tempo.
Nota-se algumas diferenças entre o Arcebispo de Tiro e outros autores das cruzadas. Os textos de Guilherme apresentam a perspectiva de um indivíduo inserido na cultura oriental, ao passo que os demais cronistas cristãos eram sujeitos nascidos no Ocidente, que se dirigiam à Síria e Palestina como integrantes dos séquitos de nobres senhores europeus. No início do movimento cruzadista até a tomada de Jerusalém, os cristãos tinham o hábito de destruir todos os livros e manuscritos muçulmanos encontrados, pois consideravam diabólicos os caracteres árabes (MICHAUD, 1956, p. 317). O próprio Guilherme de Tiro (2015, p. 38) menciona que, além dos fatos que pôde presenciar e relatos dos primeiros cruzados, fez uso de manuscritos árabes para construir sua narrativa. Kostick (2010, p. 209) ressalta que Guilherme de Tiro “teve acesso a uma tradição oral relativa à cidade de Jerusalém e era extremamente cuidadoso no uso das fontes escritas”.
Guilherme de Tiro (2015, p. 37) diz que, em princípio, não pretendia escrever acerca daqueles acontecimentos, contudo, o medo de que aquelas histórias não chegassem à posteridade o motivou a registrá-las. De forma humilde, Guilherme (2015, p. 37) diz que havia preparado uma obra superior à sua capacidade e inferior em relação à importância dos assuntos tratados. Aparentemente, Guilherme de Tiro compreendia a relevância que as gerações posteriores dariam para o tema. Além disso, demonstra total respeito com seus futuros leitores ao explicar que havia dividido sua obra em vinte e três livros com seus respectivos capítulos, com o intuito de que “[…] o leitor possa encontrar facilmente o que considerar necessário sobre fatos particulares desta história7.” (GUILHERME DE TIRO, 2015, p. 39).
Ocorria eventualmente na Idade Média um escritor fazer uso de obras de terceiros para elaborar outros textos e crônicas; faziam-se algumas adaptações e omitia-se o autor e título original. A crônica de Guilherme de Tiro serviu de base para a criação de, pelo menos, outras duas obras muito relevantes, trata-se de Histoire d’ Eracles, crônica escrita em francês (RUNCIMAN, 2003, p. 409) e La gran conquista de Ultramar, produzida em castelhano, por encomenda de Alfonso X, o Rei Sábio8. Essas adaptações talvez expliquem o fato do pouco número de traduções dos textos originais da referida crônica.
No momento em que compilou suas crônicas, Guilherme de Tiro diz que essas abrangiam até o ano de 1184 (2015, p. 38) e manifesta o desejo de continuar a escrevê-las enquanto a vida lhe permitisse (2015, p. 39). Por opção própria ou por motivos de força maior, deixou de desempenhar o ofício que exerceu com muito apreço, competência e imensa erudição. Sua narrativa encerra-se quando o cronista abordava sobre os momentos ainda, de certa forma, estáveis da gestão de Balduíno IV. O Arcebispo de Tiro faleceu em Roma, por volta de 1186. A história, contudo, relegou a Guilherme de Tiro grande importância, assim como os acontecimentos narrados com tanto respeito, por esse historiador.
Notas
2 Cidade então localizada na costa da Palestina.
3 Cidade Localizada na região costeira do Líbano.
5 Tradução livre.
6 Tradução livre.
4 O Reino Latino de Jerusalém foi um dos quatro Estados cristãos que surgiram no Oriente em decorrência da Primeira Cruzada; os outros foram: Principado de Antioquia, Condado de Edessa e Condado de Trípoli.
5 Tradução livre.
6 Tradução livre.
7 Tradução livre.
8 Segundo o historiador e bibliografo Pascual de Gayangos, La gran conquista de Ultramar foi composta no século XIII, provavelmente a pedido de Alfonso X, rei de Leão e Castela. Contudo existem divergências se essa crônica fora produzida a partir dos textos de Guilherme de Tiro ou de alguma tradução francesa.
Referências
BURGOA, Lorenzo Vicente. El autor de esta obra. In: GUILHERME DE TIRO. Historias de Ultramar: Antecedentes y proclamación de La Primera Cruzada. El camino y La conquista de Jerusalén. Tradução em espanhol por Lorenzo Vicente Burgoa. Murcia: ADIH, 2015, pp. 25- 26.
GUILHERME DE TIRO. Historias de Ultramar: Antecedentes y proclamación de La Primera Cruzada. El camino y La conquista de Jerusalén. Tradução em espanhol por Lorenzo Vicente Burgoa. Murcia: ADIH, 2015.
KOSTICK, Conor. 1099 – A Primeira Cruzada e a dramática conquista de Jerusalém. Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Rosari, 2010.
MAYER, Hans Eberhard. Historia de las cruzadas. Traducción de Jesús Espino Nuño. Madrid: Istmo, 2001.
MICHAUD, Joseph François. História das Cruzadas, Vol. 1. Tradução de Vicente Pedroso. São Paulo: Editora das Américas, 1956.
RUNCIMAN, Steven. História das Cruzadas Vol. II: O Reino de Jerusalém e o Oriente Franco. Tradução de Cristina de Assis Serra. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
RUNCIMAN, Steven. História das Cruzadas Vol. III: O Reino de Acre e as últimas cruzadas. Tradução de Cristina de Assis Serra. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
Resenhista
Jeferson Dalfior Costalonga – Graduado em História pela Faculdade Saberes, Vitória-ES; Bacharelando no Curso de Biblioteconomia pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: j.costalonga@hotmail.com
Referências desta Resenha
GUILHERME DE TIRO. Historias de Ultramar: Antecedentes y proclamación de La Primera Cruzada. El camino y La conquista de Jerusalén. Traduzido ao espanhol por Lorenzo Vicente Burgoa. Murcia: ADIH, 2015. Resenha de: COSTALONGA, Jeferson Dalfior. Histórias de Ultramar: Antecedentes e proclamação da Primeira Cruzada. O caminho e a conquista de Jerusalém. Ofícios de Clio. Pelotas, v. 4, n. 6, p. 242- 246, jan./ jun. 2019. Acessar publicação original [DR]
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