Histórias da arte sem lugar, tal como nomeamos esta edição especial, propõe o exame da disciplina História da arte à luz dos principais problemas que se apresentam hoje ao campo da arte. Fundamentalmente, perguntamos sobre a relevância (ou não) da História da arte no debate contemporâneo da arte e da cultura, motivados pela constatação de que as últimas décadas testemunharam o surgimento de novas práticas de escrita sobre arte, dificilmente assinaláveis ao modelo tradicional da disciplina. A iniciativa de organizar um número especial da ARS sobre o tema surgiu da proposta das editoras Liliane Benetti e Sônia Salzstein e dos doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (PPGAV-ECA) da USP Leonardo Nones e Lara Rivetti, junto a um grupo de estudantes de graduação e pós-graduação em artes visuais do Departamento de Artes Plásticas da ECA. As discussões realizadas pelo grupo desde o início de 2020 também contribuíram, de modo decisivo, para a realização desta edição.
Em meio a tais discussões, nos dávamos conta, com certa perplexidade, que muito da melhor literatura produzida entre as décadas de 1990 e 2010 sobre arte – tomemos como exemplo a arte moderna, um dos objetos caros à historiografia, notavelmente revisitado no período – não havia sido produzida sob os auspícios de uma literatura acadêmica, mas aparecera em catálogos de exposições, isto é, em contextos que impunham o confronto rente com as obras, e que levavam os autores à revisão ad hoc dos métodos e pressupostos consagrados na abordagem histórica da arte moderna – como também, e por consequência, à construção de novos instrumentos de análise. Ficava claro que dessa experiência haviam resultado leituras estimulantes da arte, e o formato ensaístico dos textos certamente terá permitido incursões sem muita cerimônia por outros campos disciplinares, sem as mediações e protocolos que a pesquisa acadêmica impunha.
O fenômeno permitia supor a aspiração dos autores daqueles textos (que eram, muitas vezes, também os curadores das exposições) de inquirir as obras à luz dos problemas do presente, de observar esses trabalhos enquanto expostos às pressões do ambiente cultural contemporâneo, de sondar sua resistência em meio a um jogo renhido de forças, a disputar-lhes o sentido que finalmente triunfaria nas engrenagens do complexo econômico-institucional que gere a cultura na atualidade. De todo modo, era inquietante o fato de que textos cruciais produzidos em décadas recentes na área não se originassem, em sua maior parte, no campo disciplinar tradicional da história da arte, e que este parecesse mesmo dar mostras de olímpica isenção em face das transformações conceituais profundas que se haviam imposto à arte desde os anos 1980.
Tais transformações, observáveis a olho nu, estimulariam, a propósito, uma profusão de teorias da arte moderna e contemporânea, um resultado tão mais notável quanto mais se o compara à produtividade minguante em história da arte. Mas ao lado dessa impressão, também se mantinha forte em nós a convicção de que uma inteligência histórica rigorosa era componente essencial não apenas nos textos que se reconhecem cingidos pelo escopo da disciplina, mas também em textos sem vinculação imediata com a história da arte, textos de ambição crítica ou teórica – ou talvez em qualquer escrita que se empregue à reflexão sobre arte. Perguntávamo-nos, principalmente, se a moldura histórica marcada pela associação entre colonialismo, etnocentrismo e patriarcalismo que havia marcado a disciplina em seu surgimento, nos meados do século XIX, poderia ser rompida em prol da renovação do campo disciplinar.
Foi esse, em termos gerais, o horizonte de questões que levou à proposta desta edição especial da publicação, cujo título – Histórias da arte sem lugar – busca sintetizar as dificuldades que cercam uma disciplina fundada na tradição do humanismo clássico, numa época que há mais de meio século vem desentranhando os tantos vieses mascarados sob o princípio da universalidade e a ordem totalizadora que a ele subjaz. O enunciado pretendeu também chamar a atenção para o problema – de lida um tanto difícil, sobretudo à luz da desconstrução da premissa da universalidade – de se saber quem fala a história e de possibilitar que esse falar pudesse sempre declarar e problematizar o ponto de vista que ele necessariamente funda. Para o número especial, contamos com as contribuições de um conjunto de autores selecionados mediante edital de chamada pública de textos, e de autores convidados, críticos e historiadores da arte atuantes no Brasil e no exterior, em diferentes áreas de especialização.
Tal conjunto de textos revela uma escrita rigorosa e diversificada, incursionando por sendas tão contrastantes como a teoria e a história da arte moderna e contemporânea; a reflexão sobre as possibilidades de se formular uma história da arte global; o exame dos fluxos culturais globais complexos e multidirecionais que influíram na produção artística colonial da América espanhola; a discussão do tipo de sociabilidade auspiciada pelas grandes exposições contemporâneas que se anunciam como “imersivas”; a reflexão, registrada em primeira pessoa, sobre a experiência profissional (e afetiva) longeva de um curador negro diplomado em artes visuais pela ECA, a mesma instituição da qual sai esta publicação – para citar apenas algumas das contribuições desta quadragésima segunda edição da ARS.
Aos colaboradores havia sido proposto que discutissem os desafios e impasses que hoje se apresentam à disciplina; que se lançassem a tal tarefa, fosse a partir de uma discussão epistemológica, sondando as possibilidades teóricas e conceituais do campo disciplinar em seu confronto com o cenário contemporâneo (mesmo quando se tratasse de lidar com objetos do passado), fosse pragmaticamente, já testando novas modalidades e métodos de abordagem da produção artística, buscando a renovação (ou revisão radical) do campo disciplinar da história da arte, algo que certamente não se fará sem que a escrita em que ele se traduz seja também posta em questão (o que conduziria ao exame – que não é objeto desta publicação – dos possíveis gêneros e estilos de escrita numa história da arte revitalizada, o ensaio sendo talvez o mais fascinante mas também o mais banalizado desses gêneros). Cabe dizer, finalmente, que o balanço proporcionado pelo processo de produção deste volume mostrou-nos uma história da arte vibrante – mormente a que veio se produzindo nas três últimas décadas. E tal vitalidade certamente só pôde vir à tona porque os autores interessados na história da arte deixaram de observar as fronteiras do campo disciplinar tradicional.
Somos profundamente gratos aos historiadores, teóricos, críticos, curadores que responderam ao nosso convite para colaborar nesta edição especial, como também aos autores que participaram da chamada pública especialmente aberta para a publicação. Do mesmo modo, deixamos registrada nossa gratidão a Ana Maria Belluzzo, Amanda Carneiro, Tadeu Chiarelli, Roberto Conduru, Lorenzo Mammì e Fernanda Pitta, que generosamente integraram o comitê de seleção dos trabalhos inscritos na chamada pública de textos. O volume organiza-se em quatro partes, antecedidas por uma Introdução, na qual se examinam os desafios e dilemas que se apresentam à disciplina, na atualidade:
– Caderno de ensaios 1, trazendo textos inéditos, de colaboradores convidados, do Brasil e atuantes no meio internacional;
– Caderno de ensaios 2, apresentando ensaios inéditos escritos por autores selecionados mediante chamada pública;
– Caderno de traduções – Textos essenciais, disponibilizando ao leitor brasileiro publicações de referência no debate da disciplina hoje;
Caderno especial – Referências bibliográficas, trazendo uma constelação ampla e diversificada de títulos em história, teoria e crítica de arte, como também em diversas outras áreas adjacentes, especialmente das humanidades – estudos brasileiros, psicanálise, feminismo, antropologia, sociologia, estudos culturais entre outras – que se tornaram material indispensável aos pesquisadores interessados nos problemas do campo disciplinar. O Caderno resultou de pesquisa exaustiva realizada para esta edição especial pelo grupo de alunos e ex-alunos de graduação e pós-graduação do Departamento de Artes Plásticas da ECA, também parte da equipe editorial do volume 42, do qual fazem parte Beatrice Frudit, Caio Vinicius Bonifácio, Paula Mermelstein, Leandro Muniz e Janaína Nagata Otoch.
Agosto de 2021
Organizadores
Sônia Salzstein
Liliane Benetti
Leonardo Nones
Lara Rivetti
Referências desta apresentação
SALZSTEIN, Sônia; BENETTI, Liliane; NONES, Leonardo; RIVETTI, Lara. Editorial. ARS. São Paulo, v.19, n. 42, p. 6- 8, 2021. Acessar publicação original [DR]
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