O ano de 2016 será para a historiografia brasileira um divisor de águas, profundas e turvas, inscrevendo-se numa dolorosa cronologia do Brasil contemporâneo: 1954, 1955, 1961, 1964, 1968-69 e, agora, 2016. São anos de crise, de tentativas – de sucesso e fracasso, como 1961 e 1964 – de excluir o povo brasileiro do protagonismo da ação política nacional. Se, em 1954, 1955 e 1961 foram tentativas de golpe de Estado fracassadas, 1964 foi, então, sua realização, aprofundada em 1969.
2016: toda a questão, e debate, se dará em torno da caracterização do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) – iniciado em dezembro de 2015, aprovado pela Câmara dos Deputados em 17 de abril e consumado, em julgamento no Senado Federal, em 13 de maio de 2016. O processo, conduzido no Senado Federal por um juiz-presidente do Supremo Tribunal Federal, acatou regras e dispositivos – maioria já praticados no caso do impedimento de Fernando Collor em 1992. No entanto, ao contrário do impedimento precedente, o caso de Dilma Rousseff foi marcado, ao longo de todo o seu desenrolar, por fortes acusações de “Golpe”, com os ritos jurídicos encobrindo uma vasta coalizão de interesses derrotados nas eleições de 2014. Desde o primeiro momento em que se declarou a reeleição da Presidenta – por uma diferença de três milhões e quinhentos mil votos. É interessante comparar a vitória de Mauricio Macri ou Donald Trump por ínfima, ou mesmo inferior, número de votos, sem o “clamor” que a posição brasileira fez desde a zero hora da vitória de Dilma.
No mesmo dia da vitória do PT e sua coligação, a oposição declarou sua intenção de invalidar a eleição – com um furor só visto antes na eleição de Getúlio Vargas em 1951 – em todas as instâncias e formas possíveis. Neste sentido, a oposição pediu recontagem de votos, denunciou a chapa no Superior Tribunal Eleitoral, junto ao Tribunal de Contas da União e apresentou dezenas de pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados.
Ao mesmo tempo, a atuação do Congresso Nacional, Câmara e Senado, sob a liderança do deputado Eduardo Cunha, mais tarde impedido e preso por corrupção, foi o mais inusitado possível: ora a Câmara Federal agia como um regime parlamentar, ora seguia procedimentos absolutamente parciais e arquitetados para impedir a ação administrativa do governo – isso em face de uma tremenda crise econômica mundial – através da notória “pauta bomba”.
Da mesma forma, o conjunto do sistema de Justiça do país – desde juízes de Primeira Instância, como em Curitiba, promotores, procuradores, até os magistrados do STF disputavam papéis incabíveis de protagonismo político. O sistema judiciário brasileiro permitiu-se uma íntima associação com a mídia, via entrevistas para veículos de comunicação de massa sobre temas que estavam, então, transitando em Justiça e prejulgando de forma sistemática, e, ao mesmo tempo, um crescente processo de politização da Justiça, incluindo absurdas medidas contra nomeações de ministros (em especial da Justiça) ou de pessoas para o ministério (como no caso do ex-presidente Lula da Silva), chegando-se ao extremo permitir e divulgar escutas nas linhas da Presidência da República.
Ao mesmo tempo a mídia – em sua massacrante maioria monopolista e politicamente orientanda – martelou defeitos, erros, inconsequências e indecisões – reais ou vergonhosamente inventadas – não só contra a Presidenta, bem como contra o conjunto dos ministros (em especial, quando do Partido dos Trabalhadores). Reafirmava-se, assim, o padrão da imprensa brasileira e, mesmo, latino-americana: partidária, arrogante e antipopular, como já havia sido o caso nos Governos Vargas e Jango e ao longo das administrações de Leonel Brizola no Rio de Janeiro.
Mesmo os aparelhos do Estado, as típicas burocracias profissionais de tipo weberiano, mostraram-se rapidamente inclinadas a assumir o protagonismo no processo de desconstrução do Governo. Em pouco tempo a administração pública, em especial a Polícia Federal, começou a agir de forma muito próxima aquela dos cofiais da Aeronáutica em 1954, a famosa atuação “República do Galeão”. Denúncias, interrogatórios, delações premiadas “vazavam” seletivamente para certos órgãos da mídia oposicionista.
Concomitante, o governo federal, já em meados de 2015, uma coalizão minoritária formada pelo PT, PCdoB e PDT – embora o PMDB e o PP tenham ficado até o fim com os cargos do governo que acusam de inapto e de corrupto – foi se tornando cada vez mais inoperante.
Todo este processo, que nos remete tão claramente as análises que os historiadores, na contramão do discurso político e jornalístico vigente, apresentam no presente livro: a fragilidade das instituições democráticas no Brasil e a persistência dos grupos oligárquicos e corporativos no Estado.
O debate que, acreditamos, no futuro marcará a historiografia deste ano de 2016, e suas profundas consequências, em face do exposto, centrar-se-á na questão básica: houve um golpe de Estado em 2016?
A iniciativa das três historiadoras que organizaram o presente livro é uma parte fundamental, original e “no calor da hora”, na definição deste debate. Os tem-nas abordados – a persistência de um passado oligárquico e de uma elite antinacional e antipopular que pensávamos superada depois da “Constituição Cidadã de 1988 – é um trágico encontro de uma geração que lutou pela democracia com a força do passado”.
A herança do regime civil-militar de 1964-1985, com seus atos truculentos e o frequente uso de tropas – desde a madrugada de 1o. de abril de 1964, mas também em 1968, 1969 ou 1974 até o final, como na tentativa de ocupar Brasília e impedir as manifestações pró-eleições “Diretas Já” entre 18 e 25 de abril de 1984 – marcou a memória popular brasileira. Talvez por tal razão, a natureza do golpe de 2016 não seja tão óbvia. A inexistência, em 2016, de tropas e carros de combate nas ruas, deveria apontar para a inexistência de um “Golpe”.
Golpe para ser golpe necessitaria de carros de combate nas ruas.
Vemos assim, e o livro em pauta enfrenta de frente esta questão, uma guerra de narrativas sobre a natureza dos eventos de 2016: o presente livro, com paixão e engajamento, mas com o método rigoroso do historiador, é parte desta batalha das narrativas. Os discursos, abundantes e constantes na mídia, da corrupção sistêmica dos últimos governos nunca atingiu, em verdade, a Presidenta Dilma Rousseff. O que não se pode dizer de muitos de seus oponentes, por exemplo, de seu principal inimigo, o presidente da câmara federal hoje na prisão. Há claro, narrativas “anedóticas” sobre o caráter rígido, duro, e mesmo autoritário da Presidenta. Bom, isso implicaria num longo debate sobre a representação do papel feminino no ambiente político brasileiro e no convívio com os políticos do país, com suas tradições de mando e da cultura machista, misógina e falocrata do poder no Brasil. Significativamente o governo que sucedeu Dilma Rousseff não possui nenhuma mulher (e nem negros ou quaisquer outras minorias) entre seus ministros e secretárias!
Sabemos, por outro lado, que reformas e medidas de governo Dilma Rousseff, algumas de cunho civilizatório chocaram-se com os interesses, hábitos e, mesmo, com a cultura vigente das classes médias e superiores da sociedade brasileira. Foi assim com o Código Florestal, o combate aos juros estratosféricos do país, a mensagem (ignorada pelo Congresso Nacional) pela Reforma Política depois das Jornadas de Junho-Julho de 2013, as medidas anticorrupção e, principalmente, a chamada “Pec do Trabalho Doméstico”, que dignifica o trabalho de mais de oito milhões de pessoas no país, quase todas mulheres. Tais medidas, em especial aquelas de cunho “civilizatório” como a regulação do Trabalho Doméstico, quebraram hábitos exploradores de caráter multissecular do país.
Todas estas reformas teriam um preço.
Na verdade, coube a uma revista de grande circulação na Alemanha (sic!) a criação de um termo especial para o que se passou no Brasil em 2016: “ein Kalter Putsch der Elite” – literalmente um Golpe “Frio” conduzido pela elite!
Mas, num exame simples da História do tempo presente no Brasil, o protagonismo dos militares – embora sempre presente na História da República – nem sempre se fez ator no proscênio: o Golpe de 1937, estabelecendo o Estado Novo, foi um “Golpe Frio”, conduzido, então, pelo próprio Presidente da República; o Golpe de derrubada deste, em 1945, foi imediatamente “civilizado” com a posse do, então, Juiz-Presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares; o Golpe de 1961, falhado em face da resistência popular liderada , foi conduzido em conjunto pelos militares e as frações parlamentares de direita, em especial a UDN e em 1964, mesmo rompendo os véus que ocultavam os verdadeiros donos do poder, o “movimento revolucionário” se caracterizou, desde o dia 9 de abril de 1964, quando editou o Ato Institucional (viria a ser o “Número I” de 17 outros “Atos Institucionais”, além de 104 “Atos Complementares”, que montaram o arcabouço da Ditadura brasileira entre 1964 e 1985) como um movimento “cívico-militar” em nome da Nação.
Assim, cinco generais-presidentes se sucederam, uma junta militar exerceu o poder – em 1969 – e um vice-presidente foi impedido de assumir o seu posto, ainda em 1969. Tratava-se, desta forma, de manter uma fachada constitucional, obedecendo-se a regras de apresentação e unção dos generais-presidentes, num calendário eleitoral respeitado, perante um Congresso Nacional eleito pelo voto direto – algo inédito na história das ditaduras latino-americanas. Entendemos, assim, que a comparação entre 1964 e 2016 é, não só descabida, como reducionista, ao estabelecer um tipo de “golpe” e um tipo de “Estado de Exceção”, como metro e compasso de todas as formas de ditaduras ou Estados de Exceção. Na verdade, a ditadura militar – como foram comuns na América Latina entre os anos de 1960 e 1990, ou na Grécia e Turquia à mesma época, são formas “radicais”, quase extremas de Estado de Exceção. A materialização da forma extrema de exceção seria, por sua vez, os fascismos. Assim, Itália, Japão e Alemanha tiveram no século XX “Estados de Exceção” sem serem necessariamente “ditaduras militares”, embora os militares tenham desempenhado um papel central. Contudo, coube aos partidos fascistas e seus sucedâneos, o papel central nas ditaduras fascistas. Há, ainda, outros modelos: os “Estados de Exceção” que bordeiam o fascismo e o bonapartismo: o Estado Novo português ou o Regime Franquista na Espanha.
Assim, não são necessários carros de combate nas ruas para termos um Golpe de Estado. Outras corporações do Estado podem substituir, de forma eficaz, as FFAA.
Outra objeção, frequentemente colocada hoje em face do que denominamos de “Politização da Justiça”, onde tribunais e juízes anseiam em assumir a condução dos negócios políticos da República, é a condução e verificação constante do processo de impedimento de Dilma Rousseff pelo Poder Judiciário.
Tal argumentação é, contudo, também ela, frágil em face da, ainda uma vez, da originalidade de nossa história recente. Durante todo o Estado Novo (1937-1945) não só o Supremo Tribunal Federal funcionou plenamente, como ainda o instituto do Habeas Corpus foi mantido. Contudo, mesmo assim, a temível Policia Especial de Filinto Müller pode, impunemente, prender, torturar e matar oponentes políticos, em ações, muitas vezes, próximas das milícias integralistas – pelo menos até o Levante Integralista em 1938. Da mesma forma, não só o Regime Civil-Militar de 1964 conviveu com o STF, como este aprovou, por voto de seu Juiz-Presidente Ribeiro da Costa, a vacância da Presidência da República na madrugado de 1o. de abril de 1964, com o presidente legalmente eleito ainda no exercício pleno do cargo e presente no país. Somente em 1965, em artigo para A Folha de São Paulo, o ministro do STF fará uma defesa da casa e, assim mesmo, será uma defesa de suas prerrogativas corporativistas.
Ao longo de toda a Ditadura, nem os atos discricionários do poder, nem as torturas e nem mesmo o estrupo da Constituição de 1946 – a qual deveria ser defendida pelo STF – foram temáticas recepcionadas pelo “Egrégio Colégio”. Assim, mais uma vez, a “especificidade”, ou o “jeito brasileiro”, mostraram-se originais em relação a ditaduras como no Chile, Argentina ou Paraguai.
Ao longo das páginas do “Historiadores Pela Democracia” tais questões vão se tornando claras e a narrativa “do Golpe” se impõe. Talvez seja cedo para a caracterização da natureza do regime que emana do 13 de maio de 2016: já sabemos, contudo, tratar-se de um regime de forte ímpeto regressista, antipopular e antinacional. A agenda colocada em prática desde mudança do titular da Presidência, já em abril de 2016, não seria de forma alguma aceita e votada em eleições livres e isentas no Brasil. Talvez resida aqui o significado maior de 2016: a troca da agenda política e social do país sem consulta às urnas.
Como se chama isso?
Referência
BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz G.; MATTOS, Hebe (org.). Historiadores pela Democracia – O golpe de 2016: a força do passado. Editora Alameda, 2016.
Resenhista
Francisco Carlos Teixeira da Silva – Formado em História e Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui Especialização em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense, Mestrado em História do Brasil na mesma instituição e Magisterwissenschaft pela Universidade Livre de Berlin. É doutor em História pela Universidade Livre de Berlim, Alemanha e UFF e possui Pós-Doutorado em História Política e Social na USP, na Universidade Técnica de Berlim e na Universidade Livre de Berlim. Atualmente é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: chicotempo@uol.com.br
Referências desta Resenha
BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz G.; MATTOS, Hebe (Orgs.). Historiadores pela Democracia – O golpe de 2016: a força do passado. Editora Alameda, 2016. Resenha de: SILVA, Francisco Carlos Teixeira. No olho do furacão 2016: historiadores pela democracia. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 08, p. 267-273, dez. 2016. Acessar publicação original [DR]
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